O desafio político da gestão hídrica no Brasil

Ao completar 12 anos de existência, a Agência Nacional de Águas, ou simplesmente ANA, entra na adolescência, ao mesmo tempo em que a economia brasileira dá saltos de competitividade e desempenho no campo e nas cidades. Se na gestão de recursos hídricos o país tem um pé na modernidade, com avanços na legislação e na atuação das empresas hidrointensivas, por outro lado ainda carrega ranços do Século 19, ao não oferecer a universalização da coleta e tratamento de esgotos domésticos, uma mancha no caminho das pretensões do país a protagonista global e que, principalmente, espanta os operadores de rotas internacionais de turismo.

Desde a segunda metade do Século 20, o Brasil vem mudando o perfil de sua economia e de sua ocupação. Tornou-se um país urbano, com mais de 85% da população concentrada nas cidades, mas fez do campo um vetor econômico importante e com grande demanda de água. A ANA foi criada neste início de Século 21, justamente para atuar na mediação dos conflitos pelo uso de um recurso aparentemente abundante, mas cheio limitações na hora de usar. Na geografia, por exemplo, a maior parte da água doce disponível no Brasil escorre pelos rios da Amazônia, onde vivem menos de 25% dos brasileiros, enquanto as regiões Sul, Sudeste e Nordeste têm de conviver com limitações impostas ou pelo clima, ou pelas disputas pelo uso.

Desde 2010, a Agência Nacional de Águas é presidida pelo estatístico Vicente Andreu Guillo, que vem de uma carreira ligada à gestão de recursos hídricos. Participou das articulações das bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ), uma das mais ativas mediações do uso da água como um recurso escasso, foi presidente da empresa de águas e secretário de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente de Campinas (SP). Para ele o Brasil está sob os holofotes para tudo que se trata de meio ambiente, não é diferente em relação à água. Nessa entrevista Guillo traça um panorama da gestão da água no país e aponta os principais desafios para os próximos anos. E a água já está no centro das atenções do futuro, uma vez que se estima um aumento da demanda pelo recurso para uso agrícola, que hoje já responde por 70% da água utilizada na economia e o impacto da escassez hídrica sobre pelo menos 50 milhões de pessoas, como resultado das mudanças climáticas.

Carta Verde – Com a crescente escassez e contaminação dos recursos hídricos, a preocupação com o manejo sustentável da água ganha relevância em todo o mundo. Qual tem sido o papel da ANA neste cenário?

Vicente Andreu Guillo – Há vários níveis. Em primeiro lugar, estimular a consolidação dos órgãos gestores de água nos diversos Estados. A gestão hídrica no Brasil, segundo a Constituição, é dividida entre rios federais, responsabilidade da ANA, rios estaduais e subterrâneas. A gestão da água era restrita à emissão de outorgas de uso pelos Estados e, por muitas vezes, sem base técnica. Os cadastros eram praticamente inexistentes e havia um baixo nível de informações hidrológicas sobre as bacias, além da ausência de planos estaduais de recursos hídricos. Numa segunda esfera, ainda no nível mais geral, temos buscado fortalecer os comitês de bacias hidrográficas. Hoje são cerca de 160 comitês estaduais e oito federais. Esta é uma experiência que poucos países têm e um ponto extremamente relevante. Como a Lei das Águas, de 1997, determina que a gestão seja feita de forma descentralizada e participativa, os comitês de bacias são os fóruns da gestão local destes recursos.

Como está a qualidade das águas dos rios brasileiros?

Está melhorando, principalmente nas grandes regiões metropolitanas, por conta de um processo curto, mas vigoroso de investimentos em estações de tratamento de esgoto. Em 2011, fizemos o Atlas Nacional de Abastecimento de Água, que apontou a preocupante perspectiva de que 55% dos municípios brasileiros carecem de investimentos em recursos hídricos para não enfrentarem problemas de escassez. Tradicionalmente se imagina que é na área de saneamento onde estão os maiores problemas. Nossa rede de esgoto atende 56% dos municípios, nos quais 30% são realmente tratados. Além disso, temos aquela ideia de que a cobertura da rede de água nas áreas urbanas do país é universal. Porém, esse estudo demonstra que não se trata de um problema da rede, mas sim da qualidade da água no manancial, na natureza e no sistema produtor de água. Isto chamou a atenção para problemas de distribuição que podem aparecer até 2025, em especial nas regiões metropolitanas.

Vamos ter uma revisão do Plano Nacional de Recursos Hídricos com impactos entre 2012 e 2015. O que está sendo planejado?

Durante as consultas públicas foram identificadas 22 prioridades, entre elas a inclusão de um capítulo voltado para a questão das mudanças climáticas e recursos hídricos. Apesar de haver ainda um nível de incertezas com relação a esse tema, porque os modelos climáticos são aplicados em escala global, quando você traz o modelo para as bacias hidrográficas, os resultados podem não ser tão confiáveis. Mas esta é uma perspectiva interessante, já que aponta para a importância do aumento dos reservatórios e mais cuidado com a qualidade da água.

Com relação à cobrança pelo uso pelo uso da água, há alguma dificuldade?

Esta é uma questão fundamental! Os usuários e a sociedade em geral imaginam que a cobrança pelo uso da água é uma taxa a mais a ser aplicada diretamente sobre a tarifa do usuário. Além disso, este instrumento de gestão tem um nome não muito atrativo, porque quando falamos em cobrança, todos são contra. Mas os usuários precisam compreender que esta cobrança é virtuosa e que ela retorna integralmente para a bacia hidrográfica, sendo aplicada segundo as prioridades dos planos de recursos hídricos. A água é um bem público e o Estado permite que os comitês façam essa cobrança, defina o valor em seu nome e aplique segundo as regras definidas pelos usuários que os compõem.

Por que motivo não se supera os gargalos existentes na gestão dos recursos hídricos?

O prejuízo acumulado ao longo dos últimos anos na máquina pública é muito grande, em dinheiro e em tempo necessário para se recuperar o atraso. Além disso, temos nas cidades um processo muito grande de poluição, degradação das bacias e melhorias ainda pequenas, além de novos problemas, como por exemplo, a irrigação sem outorga e a contaminação dos rios por agrotóxicos e fertilizantes. Os valores definidos pelos comitês de bacias, apesar de importantes, são pequenos em relação aos desafios postos. O Plano de Recursos Hídricos do Rio Doce, por exemplo, aponta para investimento da ordem de R$ 5 bilhões e conta com uma arrecadação de R$ 13 milhões ano, por meio da cobrança. Portanto, o que vai promover a melhoria da qualidade do corpo hídrico é um conjunto de outras medidas setoriais para coibir e impedir ações de degradação e o estímulo à melhoria da condição do rio. O governo federal vem disponibilizando grandes quantidades de recursos, enquanto os municípios não têm a capacidade de aplicá-los. Antes, o problema era a falta de dinheiro. Hoje, é a baixa capacidade de execução.

E as outorgas para irrigação em rios federais, como vem se dando?

Este é um processo que envolve uma maior qualificação e melhoria nos critérios gerais. A cobrança, em alguns aspectos tem estimulado os produtores a usar métodos e tecnologias mais eficientes, reduzindo a quantidade de água na irrigação. Hoje, como entidades financeiras exigem a outorga para o financiamento, vemos uma grande disposição dos irrigantes em busca da regularização. Isto nos possibita melhor qualidade de informação porque esses usuários recorrem ao órgão gestor do recurso hídrico para obter essa autorização.

O Brasil é o primeiro país a desenvolver uma Política Nacional de Segurança de Barragens. Como tem se aplicado esta regulamentação?

Uma resolução do Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) foi constituir um grupo para apresentar os critérios que devem compor o plano de segurança de barragens. A barragem, em última instância, é de responsabilidade do empreendedor. O que está sendo instituído no país é um plano para estabelecer normas em relação aos procedimentos de fiscalização dos usos múltiplos das barragens. Um país como o nosso, de características hidráulicas específicas, e que tem em sua base econômica o uso da água, seja para agricultura, abastecimento, produção de energia, ter uma norma que garanta a melhor qualidade do recurso hídrico nas barragens é extremamente positivo. O conjunto de regras está sendo definido pelo CNRH e deve entrar em vigor ainda esse ano.

O Atlas Brasil, do ano passado, aponta que o país precisa investir R$ 22 bilhões até 2015 para garantir abastecimento de água. O que tem motivado esse déficit?

O Atlas revela que 55% dos municípios respondem por 73% da demanda por água no país. Os maiores investimentos são necessários nas regiões metropolitanas e nas regiões Norte e Nordeste. As obras nos mananciais e nos sistemas de produção são fundamentais para evitar déficit no fornecimento de água nas localidades indicadas, que, em 2025, vão concentrar 139 milhões de habitantes, ou seja, 72% da população. Concluídas até 2015, as obras podem garantir o abastecimento até 2025. Chama a atenção a precariedade dos pequenos sistemas de abastecimento de água do Norte, a escassez hídrica no semiárido e a baixa disponibilidade de água das bacias hidrográficas litorâneas do Nordeste. No Sudeste, os principais problemas estão na elevada concentração urbana e da complexidade dos sistemas produtores de abastecimento, que levam muitas vezes a disputas pelas mesmas fontes hídricas.

Quais são os principais desafios relacionados à gestão da água nos próximos anos?

O principal desafio é fazer com que a agenda da água seja uma agenda política relevante. Infelizmente ela ainda não é. Ela não está no centro da tomada de decisões. O saneamento, parte fundamental para o fornecimento de água com qualidade, é importante, mas tem uma polarização muito grande. Portanto, devemos fazer com que esse sentimento de valorização da água se transforme numa força política e que os dirigentes tenham uma sensibilidade maior para a gestão dos recursos hídricos. Por exemplo, são pouquíssimos prefeitos que participam de comitês de bacias, são raríssimos secretários de Estado que participam de comitês e nenhum governador ou ministro participa de comitês de bacias hidrográficas. Por fim, água é um assunto essencialmente local. Para enfrentar o desafio de sua gestão, com impacto direto nas pessoas, são necessárias ações de gerenciamento da demanda, obras para ampliar a oferta de água e de saneamento. (Envolverde)

* Efraim Neto é jornalista e colaborador da Envolverde.