O dia em que faltou água na torneira

Foto: Pedro França/Agência Senado
Foto: Pedro França/Agência Senado

Em um dia comum, previsto para ser como tantos outros, um cidadão acorda e, como de costume, vai escovar os dentes. Abre a torneira e cadê? Abre o chuveiro e cadê? Vai para a cozinha e nada de água na torneira. Será que não pagou a conta de água?, pensa ele. Não, não é possível, a conta de água está no débito automático, reage. Será alguma obra na rua?, indaga.

Nada disso, o inimaginável aconteceu: acabou a água na cidade de São Paulo e não houve nenhum alerta. Os cidadãos não foram informados.

Essa situação, que mais parece um desses recentes filmes de ficção que tratam dos riscos de um futuro apocalíptico que ronda a humanidade, aconteceu de verdade em São Paulo, uma das maiores metrópoles do mundo.

Mas, afinal, o que explica essa dramática situação a que chegamos, e que põe milhões de pessoas em situação de enorme vulnerabilidade?

A partir de fevereiro de 2013, notícias sobre uma provável crise sem precedentes no abastecimento de água em São Paulo passaram a ocupar espaço cada dia mais relevante nos veículos de imprensa, até se tornarem destaques nas manchetes, quando a questão assumiu contornos políticos, de mobilização social e repercussão internacional.

A maior parte das matérias, no entanto, não se aprofundou na análise dos fatos, repercutindo quase que executivamente a visão de representantes dos órgãos públicos que insistem em atribuir à estiagem a principal causa do problema.

Diante disso, para o público em geral, o que prevalece é associação do foco da crise hídrica com a falta de chuva, sem que se perceba que os fatores que contribuem para o desabastecimento são anteriores a essa fase de estiagem severa pela qual estamos passando.

Fatores como poluição dos rios e mananciais urbanos; desmatamento; falta de planejamento no uso dos reservatórios existentes e na construção de novos; falta de manutenção no sistema de abastecimento de água, gerando enormes perdas; desperdício; reduzida capacidade de planejamento e poder de coordenação institucional; e falta de investimentos em infraestrutura de água e saneamento não estão sendo apresentados como elementos que constituem as verdadeiras causas da crise hídrica.

O fato é que a forma exaustiva de se apropriar da água de nossos mananciais ultrapassou em muito a capacidade natural, levando ao uso do que equivocadamente passou a ser chamado de “volume morto” –o que deveria ser chamado de “volume vivo” dos reservatórios–, pois é nele que sobrevive a biota aquática essencial para a manutenção da qualidade da água quando as chuvas voltarem. Agindo desta forma, o poder público está deliberadamente esgotando nossos reservatórios e escondendo a crise da população.

Isso revela, além da inconsistência nas mais elementares práticas de governança de um recurso natural vital, o fato do governo estadual não ter transparência nem diálogo efetivo com a população. Ao invés de esconder a gravidade da situação, deveria estar apresentando propostas objetivas de gestão da crise, enfrentando os problemas acima elencados e promovendo a corresponsabilização dos cidadãos, no sentido de convocar e comprometer a todos em um real esforço redução do consumo, parte fundamental da solução.

Entendemos que a transparência na apresentação das informações e das ações que estão ao alcance do cidadão é o principal meio de sensibilizar a população e é a forma mais eficaz para esse momento emergencial. A transparência gera a conscientização, a sensibilização e estimula o esforço de todos no uso racional e sustentável da água.

O maior desafio é avançar em ações que promovam a cooperação, a solidariedade e, principalmente, a percepção de que a água será um bem cada vez mais escasso, o que exigirá mudanças radicais na forma de tratar os mananciais, reservatórios, e sistemas de distribuição, além dos hábitos e práticas de consumo.

Uma coisa é certa: a chuva não acabará com a crise.

* João Paulo Capobianco, 57, é biólogo e presidente do Conselho Diretor do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS). Pedro Roberto Jacobi, 64, é professor titular do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP.

** Publicado originalmente no site Folha de S. Paulo.