O 'milagre da multiplicação dos lixos' e a encruzilhada da Política Nacional de Resíduos Sólidos

Foto: Shutterstock
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“Uma das encruzilhadas da gestão dos resíduos sólidos sinaliza para uma transformação radical da forma de fazer política e a reestruturação funcional do Estado. O Estado que está aí apenas serve a si mesmo. 

Apesar de os dados sobre o número de pessoas que trabalham como catadores no Brasil não serem exatos e variarem entre 400 e 800 mil, segundo as instituições que os monitoram, “ninguém nega o vulto dessa massa de trabalhadores” e tampouco o que ela representa. Ou seja, “o quanto este número escancara a persistência das desigualdades sociais, cuja persistência expõe a fragilidade de medidas de cunho paliativo e desmoraliza a criatividade das narrativas oficiais”, declara Maurício Waldman, em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.

Segundo o pesquisador, embora a realidade vivida pelos catadores evidencie algo comum entre eles, como condições de trabalho precárias associadas à exclusão e à escassa ou nula proteção social, “a inserção sociológica destes trabalhadores varia enormemente” e, portanto, há uma “heterogeneidade cabal” entre os grupos que sobrevivem da recuperação de materiais. “Daí que a denominação ‘catadores’ transita de modo difuso, alheia a qualquer cientificidade”, explica.

Waldman esclarece que atualmente a categoria é dividida em ao menos três grandes grupos: catadores de rua, catadores cooperados e catadores de lixão, “neste último caso incluindo dezenas de milhares de crianças e adolescentes vivendo e trabalhando em lixões”. Esse quadro geral, frisa, “apresenta indiscutível relevância social, acentuada pelo elevado número de catadores de materiais recicláveis operando em todo o país”.

Na entrevista a seguir, o pesquisador também comenta a proposta da ONU, que sugere “empoderar” os catadores propondo que eles atuem como “empresários recuperados informais”. Na avaliação de Waldman, “factualmente, este debate termina de um modo ou de outro por focar a questão das cooperativas, um tema impregnado por forte conotação política e ideológica”. Entre os exemplos, cita o das 1.100 cooperativas existentes no Brasil, que agregam entre 30 e 50 mil catadores, ou seja, “no máximo 10% dos catadores”, e “existem discrepâncias quanto à logística, equipamentos e nível de eficiência”. “Várias análises apontam que 60% das cooperativas vivenciam más condições de trabalho e baixa remuneração para seus integrantes, na melhor das hipóteses com ganhos médios pouco acima do salário mínimo. Por conseguinte, existe certa dose de arroubo de oratória nas terminologias e nos conceitos empregados”. E reitera: “Na melhor das hipóteses os catadores são aceitos por conveniência, em razão da importância objetiva da catação para a indústria recicladora”.

Ele lembra ainda que a reciclagem no Brasil está muito aquém do que já é feito em outros países. “Para citarmos alguns índices de reciclagem, excluindo a compostagem, tais seriam: Alemanha, 48%, Bélgica, 35%, Suécia, 35%, Irlanda, 32%, Países Baixos, 32%. Para os EUA, considerados com toda razão os campeões mundiais do desperdício, o reaproveitamento alcança 31% do total dos resíduos urbanos. No Brasil, os índices de recuperação são incomodamente baixos. Estes correspondiam em 1999 a 4% dos resíduos sólidos urbanos (RSU), sendo que as porcentagens para os anos seguintes seriam: 5% em 2000, 6% em 2001, 8% em 2002, 10% em 2003, 11% em 2005 e 13% em 2008”, compara.

Maurício Waldman é doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo – USP, Pós-Doutor em Geociências pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP e em Relações Internacionais pela USP. Em Janeiro de 2014 iniciou o terceiro Pós-Doutorado, pesquisa com foco na questão dos catadores, incineração e reciclagem do lixo, investigação com respaldo institucional da Universidade do Oeste Paulista – UNOESTE. É autor de dezenas de artigos, entre eles, Lixo: Cenários e Desafios (Cortez Editora, 2010).

Foto: arquivo pessoal
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Confira a entrevista.

IHU On-Line – Segundo o Banco Mundial, em todo o planeta cerca de 15 milhões de pessoas ganham a vida recuperando material reciclável do lixo. Na América Latina, este número é de quatro milhões. Quais as estimativas para este número no Brasil? O que ele representa?

Maurício Waldman – As estatísticas relativas ao contingente de catadores atuantes no país são fortemente discrepantes entre si. Algumas ONGs estimam a população catadora em 500 mil pessoas. Já o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis – MNCR afirma que os catadores ativos são 800 mil. Um intervalo proposto pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, levando em consideração todas essas fontes, sinaliza um conjunto formado por 400/600 mil catadores nas cidades brasileiras, 15% do total latino-americano. Por fim, temos os catadores que operam em cooperativas, cerca de 40/60 mil pessoas. No mais, independentemente das querelas numéricas, ninguém nega o vulto dessa massa de trabalhadores. E complementando, o quanto este número escancara a persistência das desigualdades sociais, cuja persistência expõe a fragilidade de medidas de cunho paliativo e desmoraliza a criatividade das narrativas oficiais.

IHU On-Line – Relatório da ONG Natural Resources Defense Council sobre o trabalho com resíduos sólidos aponta que, enquanto a coleta de lixo gera menos de um emprego para cada mil toneladas, o processamento e a manufatura de produtos com materiais reciclados como matéria-prima geram, dependendo da sucata em questão, entre seis e treze empregos.

Maurício Waldman – Os desdobramentos positivos da reciclagem têm sido recidivamente destacados por inumeráveis pesquisas acadêmicas. Nesta perspectiva, a resistência das autoridades em incentivar e implantar de fato a recuperação dos materiais é uma das mais claras evidências da cegueira da classe política e da capacidade de pressão das empresas de coleta de lixo. Remuneradas por cada tonelada de saquinhos de lixo que retiram das calçadas, é evidente que as empreiteiras não têm qualquer interesse em programas de Coleta Seletiva de Lixo – CSL. Paralelamente, são estes mesmos interesses que estão na vanguarda de medidas que buscam desconstruir os movimentos em prol de uma gestão justa, séria e decente dos resíduos sólidos.

IHU On-Line – Por que o senhor utilizou o termo “decente”?

Maurício Waldman – Porque o que está acontecendo no mundo atual relativamente aos refugos é uma imoralidade. Para termos ideia da encrenca, devemos ter em mente que a natureza movimenta 50 bilhões de toneladas de materiais por ano. Com base em informação consignada na obra do lixólogo norte-americano William Rathje, é possível sinalizar para pelo menos 38 bilhões de toneladas de resíduos geradas anualmente pela humanidade. Os humanos estão pondo em movimento uma montanha de rebotalhos que a qualquer momento pode equivaler ao que a natureza desloca para manter os dinamismos naturais. Simplesmente não existe planeta para tanto lixo. Portanto, seria pertinente enquadrar o que está acontecendo na prédica do ativista libertário Murray Bookchin, que certa vez definiu o mundo contemporâneo como “repertório cotidiano da imoralidade”. Neste imbróglio — assim entendo eu — os catadores cumprem função estratégica em fazer retroagir o mundo Lixo.

IHU On-Line – Em qual sentido esta afirmação poderia ser justificada?

Maurício Waldman – Exemplificando, é inadequado restringir a análise da reciclagem a uma lógica exclusivamente econômica, avaliando a questão em termos do número de pessoas que obtém renda e trabalho a partir da atividade. Este ponto de vista não contempla de modo algum a plenitude do potencial da reciclagem. Isso porque a recuperação de materiais envolve diversos outros desdobramentos. Dentre estes podemos citar a reinserção de grupos excluídos, elaboração das políticas públicas, a revisão do estilo de vida da modernidade e é óbvio, interfaces como a economia dos materiais e conservação dos recursos naturais. Contudo, e sem esquecer que a temática da sobrevivência econômica promovida pela catação é de importância matricial — tendendo inclusive a ser reforçada num cenário econômico povoado por incertezas de todo tipo —, não há como dissociar a reciclagem do matrimônio sagrado que mantém com a defesa do meio ambiente. Nesta declinação, os catadores desempenham papel fundamental.

IHU On-Line – O senhor notou mudanças na forma como a sociedade percebe o lixo reciclado?

Maurício Waldman – Na realidade o que mais chama a atenção é a audiência relativamente escassa obtida pelos benefícios promovidos pela atividade recicladora. Claro que mudanças existiram nas últimas décadas quanto à importância em recuperar materiais que, por sinal, estão minguando numa velocidade sem precedentes. Estamos na antessala da era da escassez dos recursos. Em suma: os progressos vieram a conta-gotas enquanto a devastação avançou a passos de gigante. Isso também interfere — e de modo gritante — na relação mantida com os catadores.

IHU On-Line – Como isso muda o cotidiano de quem trabalha na coleta?

Maurício Waldman – Numa sociedade hierarquizada como a brasileira, a longa série de preconceitos alimentados pelos setores afluentes a respeito dos seus compatriotas mais pobres, incide com especial contundência na população catadora. Nesta linha de abordagem, temos que, apesar do seu papel econômico e ambiental, a capital importância do trabalho dos catadores encontra forte resistência em muitos setores da sociedade. Não há dúvida alguma, trata-se de uma força de trabalho necessária para o funcionamento da economia urbana, mas cuja presença visual precisa ser reduzida o máximo possível. Uma pregação constante e apaixonada, eventualmente apelando para um receituário com óbvias conotações racistas, pode ser notada no discurso de muitos setores de classe média e alta contra os catadores. Algo por sinal plenamente coerente com o longo histórico escravagista que vigorou no país, condizente com o exercício de privilégios e das regras de exceção.

IHU On-Line – A discussão sobre o que fazer com os grupos sociais que dependem da coleta de resíduos sólidos é antiga. Como está estruturado este segmento da sociedade?

Maurício Waldman – A heterogeneidade dos grupos que sobrevivem da recuperação de materiais é cabal. Embora a realidade vivida pelos catadores de materiais recicláveis como um todo evidencie condições de trabalho precárias em função do contato direto com rejeitos em áreas de descarte, aterros, lixeiras e ruas das cidades, associadas à problemática da exclusão e com uma escassa ou nula proteção social, a inserção sociológica destes trabalhadores varia enormemente. Daí que a denominação “catadores” transita de modo difuso, alheia a qualquer cientificidade.

Nesta ordem de argumentação, a literatura especializada subdivide os trabalhadores do lixo em três categorias básicas: catadores de rua (ou “avulsos”), catadores cooperados (ou autogestionários) e catadores de lixão (também conceituados numa coletânea de trabalhos como população de lixões), neste último caso incluindo dezenas de milhares de crianças e adolescentes vivendo e trabalhando em lixões. Portanto a temática apresenta indiscutível relevância social, acentuada pelo elevado número de catadores de materiais recicláveis operando em todo o país.

IHU On-Line – A ONU, visando empoderar os catadores, propõe que sejam tratados como “empresários recuperadores informais.” Como vê esta colocação?

Maurício Waldman – Factualmente, este debate termina de um modo ou de outro por focar a questão das cooperativas, um tema impregnado por forte conotação política e ideológica. De acordo com o MNCR, hoje o país possui mais de 1.100 cooperativas, as quais agregariam 30-50 mil catadores. As cooperativas existentes acredita-se que agrupem no máximo 10% dos catadores, contudo existem discrepâncias quanto à logística, equipamentos e nível de eficiência. Várias análises apontam que 60% das cooperativas vivenciam más condições de trabalho e baixa remuneração para seus integrantes, na melhor das hipóteses com ganhos médios pouco acima do salário mínimo. Por conseguinte, existe certa dose de arroubo de oratória nas terminologias e nos conceitos empregados.

IHU On-Line – Há quem qualifique os catadores como expoentes do empreendedorismo. O senhor concorda?

Maurício Waldman – Quinhão ponderável dos catadores é composto de ex-desempregados, sem teto e vítimas da exclusão social. Em larga medida enfrentaram a solidão do desamparo, a falta de oportunidades e a agressão contínua das instituições. Deste modo, o suposto “empreendedorismo” que alguns textos identificam na postura da categoria nada mais configura do que um comportamento adquirido em função dos catadores terem sido alijados da economia formal e do código de valores legitimador do padrão social hegemônico. Portanto, os catadores aprenderam a agir por conta própria não enquanto membros de uma escola do pensamento empreendedor, mas, sim, pelo inconformismo diante da expropriação de sua cidadania. Uma reação reforçada pela especificidade objetiva do trabalho dos catadores.

IHU On-Line – Como tais peculiaridades contribuem para materializar este quadro?

Maurício Waldman – Note-se, por exemplo, que o cotidiano dos catadores “avulsos”, embora gravado por uma atividade extenuante e insalubre, é percepcionada por estes trabalhadores como um trabalho com “liberdade” de horário, inexistente em empregos fixos ou nas cooperativas. Por esta razão, não poucos catadores recusam oportunidades de emprego no mercado formal de trabalho, optando pela segregação autônoma de recicláveis. Ademais, a catação — atividade desigualmente integrada aos circuitos superiores da economia de mercado — não suscita propriamente o surgimento de empresários. E quando isto acontece, o que se tem enquanto ator social é alguém que acima de tudo deixou de ser um catador.

IHU On-Line – Mas e as cooperativas, estas entidades não poderiam fortalecer a atuação dos catadores?

Maurício Waldman – Cabe aqui destacar que os catadores cooperativados prestam serviços de CSL com maior valor agregado, de forma articulada e organizada, gerando trabalho e renda de modo mais sistematizado. No geral, as cooperativas permitem a absorção de trabalhadores egressos do mercado formal de trabalho, inserindo-os no interior de uma estrutura institucional, lhes assegurando, mesmo que minimamente, a consecução de alguns direitos, renda e cidadania. Contudo, ressalve-se que as cooperativas existentes, após décadas de pregação em favor do modelo, agrupam no máximo 10% dos catadores, existindo igualmente discrepâncias no tocante à logística, equipamentos e nível de eficiência. Embora proposta entronizada por muitos setores da academia — particularmente por aqueles que cultivam autoimagem de engajamento político —, o fato é que as cooperativas enfrentam problemas, entravando sua expansão e consolidação.

Dentre os obstáculos, o histórico de vida de muitos dos catadores é um dado essencial para compreender a resistência de setores da categoria em organizar-se institucionalmente. Por fim, entidades como o IPEA tem chamado a atenção para as limitações de determinadas políticas públicas. Dentre estas, está o desenho proposto para uma gestão cooperativa, que pode mostrar-se demasiadamente complexo para ser operacionalizado. Além disso, existem os riscos inerentes associados às atividades de financiamento e microcrédito, caracterizadas por elevadas taxas de inadimplência e conflitos potenciais com as agências financiadoras, cujos riscos devem ser administrados. E isso sem contar as contradições estruturais que regem a catação no relacionamento mantido com os polos dinâmicos da economia.

IHU On-Line – Por exemplo?

Maurício Waldman – Detalhando na direção de um olhar crítico, não nos está permitido se deixar contaminar com interpretações que mascaram o conteúdo de dominação existente na relação dos catadores com os cartéis da reciclagem. Na melhor das hipóteses os catadores são aceitos por conveniência, em razão da importância objetiva da catação para a indústria recicladora. Na verdade, a conectividade que une numa ponta uma verdadeira legião de trabalhadores informais e desprotegidos, que abastecem na outra ponta setores poderosos, influentes e altamente capitalizados da indústria, clarifica uma relação funcional — desigual e combinada — estabelecida entre o que o geógrafo Milton Santos categorizou como um circuito inferior com outro superior ou moderno, atuando e interagindo entre si num relacionamento que, em suma, realimenta o processo de exclusão do circuito inferior e reafirma a hegemonia da comunidade superior.

IHU On-Line – No entanto, indiferentemente ao nome e à configuração do trabalho dos catadores, tais pessoas continuam expostas às inflexões da sociedade. Manter estes grupos trabalhando com lixo é de fato a solução mais digna?

Maurício Waldman – Devemos recordar que as afetações relacionadas com o lixo estão sempre assentadas em paradigmas sociais, culturais e religiosos. Expressando visões de mundo, tais noções jogam papel fundamental quando o assunto em pauta é a dignidade ou não do trabalho com os resíduos. Aliás, note-se que mesmo em tempos muito recuados identificamos definições endossando objeções quanto ao que sobra. Nesta ordem de considerações, atente-se que a palavra hebraica para inferno — gehinom ou gehena — refere-se a um antigo vale próximo de Jerusalém que antes da conquista judaica era dedicado a um culto sacrificial pelo fogo em honra ao deus cananeu Moloch. Neste sítio os lixos passaram a ser acumulados e queimados, frequentemente utilizando enxofre para atiçar as chamas. Ou seja: inferno e lixão são parceiros semânticos usufruindo manifesta intimidade histórica. Inclusive é desta sinonímia que surge a imagem do Demônio. Afinal, tal como Moloch, o Diabo possui rabo e traços antropozoomórficos, gosta do fogo e atormenta suas vítimas.

Mas ao mesmo tempo existem visões de mundo que aceitam uma convivência com os refugos com maior tranquilidade. No extremo oriente, tal como expressamente colocado por religiões como o Budismo, a matéria fecal é considerada parte de um ciclo maior, atinente a um dinamismo cosmológico, noção que inclusive facilita a aceitação dos dejetos como um recurso. Ao invés de ser vista como mero refugo é frequente a utilização dos dejetos como fertilizante. Portanto, conceitualmente não existe “dignidade” em si mesma. Considerar algo como digno ou não reflete introjeções de mote histórico, que modelam a percepção do real. Exatamente por isso entendo, por exemplo, que não há como progredir na questão do lixo dispensando a Educação Ambiental.

Do mesmo modo, não haverá progresso na catação se primeiramente não for modificado o modo como o catador é visto e percebido pela sociedade. Ele precisa ser entendido exatamente como ele é: um agente promotor e defensor dos equilíbrios ambientais urbanos, um ator indispensável na revisão dos parâmetros produtivos clássicos, assim como protagonista de formas inéditas de se pensar e atuar criativamente em conjunturas economicamente desfavoráveis. E para arrematar, é o trabalho dos catadores que impede que a incompetência dos gestores públicos na gestão do lixo não termine por submergir de uma vez as metrópoles num redemoinho incontrolável de uma avalanche de lixos.

IHU On-Line – O Plano Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS tem sido cumprido pelos municípios brasileiros?

Maurício Waldman – Aprovada em 2010, a PNRS acumula atrasos e protelamentos. Logo, com lixo gerado aos borbotões e inexistindo destinação correta dos resíduos, tudo parece conspirar para um cenário povoado das mais duras provas. Sem implicar em qualquer rompante verbal, utilizar a palavra “caos” seria uma verbalização simplória diante de um desastre de grandes proporções que nos aguarda, tanto em termos ambientais em geral quanto no da saúde pública em particular. O Brasil, mesmo em meio a um panorama mundialmente pavoroso quanto aos detritos, ainda assim dá um “show” em termos de façanhas impagáveis no tocante a uma gestão ultrapassada e incompetente dos resíduos urbanos. Atente-se que o país, sendo 3% do PIB mundial, gera 5,5% do lixo urbano planetário.

Para complicar assistimos a um verdadeiro “milagre da multiplicação dos lixos”. Nos últimos dez anos, a população do Brasil expandiu 9,65%. Contudo, no mesmo decênio a geração de lixo cresceu mais do que o dobro este percentual, batendo a casa dos 21%. As cidades brasileiras ampliaram os descartes no biênio 2012-2013, de 201.058 toneladas/lixo/dia para 209.280 t/lixo/dia. Uma expansão assombrosa de 4,1% em apenas doze meses! Uma calamidade se pensarmos as formas de gestão de resíduos em curso no país, a começar pelas 20 mil toneladas diárias que sequer são coletadas, dos mais de 2.500 municípios que seguem com lixões ativos e a continuidade do descaso com o trabalho dos catadores. O pior é saber que este conjunto de agravos, suscitando crescentes danos ambientais e problemas de saúde pública, não tem encontrado respostas dignas do desafio a ser enfrentado.

IHU On-Line – Nos Estados Unidos, alguns estados como a Califórnia assinaram planos de intenção de atingir 75% de reciclagem até 2020. Qual a proporção de resíduos sólidos atualmente reaproveitados no Brasil? Há planos para aumentar essa quantia?

Maurício Waldman – Seria meritório registrar que nos países centrais a CSL é fundamentalmente uma atribuição do poder público, que planeja e dá conta da logística de coleta e encaminhamento dos materiais reaproveitáveis. Para citarmos alguns índices de reciclagem, excluindo a compostagem, tais seriam: Alemanha, 48%, Bélgica, 35%, Suécia, 35%, Irlanda, 32%, Países Baixos, 32%. Para os EUA, considerados com toda razão os campeões mundiais do desperdício, o reaproveitamento alcança 31% do total dos resíduos urbanos. No Brasil, os índices de recuperação são incomodamente baixos. Estes correspondiam em 1999 a 4% dos resíduos sólidos urbanos (RSU), sendo que as porcentagens para os anos seguintes seriam: 5% em 2000, 6% em 2001, 8% em 2002, 10% em 2003, 11% em 2005 e 13% em 2008. Em tonelagem isto significa: 5 milhões/t de sobras, recicladas em 2003; 5,2 milhões/t em 2004, 6 milhões/t em 2005 e 7,1 milhões/t em 2008.

Em 2012 o país recuperou 18% dos descartes, encaminhados para o parque fabril reciclador. Mas, contrariamente aos países desenvolvidos, no Brasil a porcentagem recuperada pelos programas institucionais de CLS é pífia. No máximo a fração recuperada pelo poder público ronda os 2% do total de resíduos, coletados através de programas que funcionam — às vezes de modo inteiramente alegórico — em apenas 766 municípios brasileiros (14% das municipalidades). Na ponta do lápis, isto significa que 98% das sucatas ganham nova vida através dos catadores, conquista obtida a despeito do empenho de muitas administrações em criar dificuldades ao trabalho informal da catação. Com base neste pano de fundo, como imaginar na efetividade do planejamento da CSL pelo poder público?

IHU On-Line – Existem realmente produtos de uso doméstico não recicláveis, ou o que os torna aceitáveis para a indústria é a viabilidade econômica de seu processo? É possível pensar em incentivos para a reciclagem destes produtos?

Maurício Waldman – É válido recordar que a noção de “resto” vincula-se a contextos históricos específicos. Por conseguinte, é importante pontuar que a definição “inservível” insere caráter histórico, inviabilizando prontuários taxativos, genéricos e aleatórios. Para exemplificar, desde as décadas finais do século XX, o avanço da tecnologia da reciclagem continuamente tornou resíduos desprezados em materiais dignos de aproveitamento, caso do isopor, do PET, das “caixinhas” longa vida (denominação coloquial para embalagem cartonada, multicamada ou tetra pak) e de muitos outros materiais. Por outro lado, contrariando o mito do “aproveitamento total do lixo”, refugos inservíveis existem e continuarão a existir. Neste sentido, mais do que aos influxos de ordem econômica, a técnica dispõe aqui de foro privilegiado.

IHU On-Line – O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, afirmou em 2014 que um dos gargalos para a reciclagem de lixo na cidade era que as pessoas separavam mais resíduos do que as centrais manuais tinham capacidade de processar. Qual o limite humano para este tipo de trabalho? Quais as alternativas possíveis?

Maurício Waldman – A metrópole paulista é um caso verdadeiramente espantoso. A cidade atualmente ocupa a 6ª posição entre as urbes mais populosas do mundo e constitui o 13º PIB urbano mundial. Mas seus dejetos — 20 mil t/dia de refugos — correspondem ao 1ª lugar no ranking do lixo municipal entre as nações periféricas e 3º posto global. As ejeções de São Paulo são ultrapassadas unicamente por Nova York (1º) e Tóquio (2º). O pior é saber que São Paulo é uma das metrópoles em que menos se recicla no mundo: míseros 1,8%.

Saliente-se também que, de fato, um dos gargalos que de modo contundente tem colocado em xeque o sistema reciclador é a logística de recepção e de encaminhamento dos resíduos, um problema que não se circunscreve a São Paulo. Na realidade, a situação reporta à ineficácia a toda prova do poder público, que é tão ostensiva que não mereceria maiores comentários. Mas somos obrigados a tomar conhecimento de que, por incrível que pareça, o Brasil está importando PET do Paraguai para pôr em movimento a linha de produção de camisetas. Também adquire trapos no exterior para fazer estopa. Isso porque a captação no território nacional é simplesmente péssima.

Perdemos 50% do plástico PET e 90% dos resíduos têxteis, itens que virarão lixo. Em paralelo, atentemos que o Brasil importou mais de 223 mil toneladas de resíduos nos anos 2008-2009. Isso num país em que não falta lixo. Portanto, uma das encruzilhadas da gestão dos resíduos sólidos sinaliza para uma transformação radical da forma de fazer política e a reestruturação funcional do Estado. O Estado que está aí apenas serve a si mesmo. Necessário, pois, transformá-lo em expressão da vontade dos cidadãos.

IHU On-Line – Também em 2014, São Paulo inaugurou usinas de separação de resíduos sólidos focadas na eficiência, com maquinário capaz de separar resíduos com base no tamanho e em leitores ópticos. Existe risco de esta eficiência técnica levar a uma diminuição da mão de obra dos catadores?

Maurício Waldman – Com um panorama como o comentado na pergunta anterior, as medidas recentemente implantadas pelo prefeito Fernando Haddad são obviamente bem-vindas. Neste recorte, seria fundamental entender que, além das técnicas em si expressarem uma relação social, sua inserção na materialidade social é igualmente objeto de sanção e de comando por parte de forças sociais. Neste sentido, entendo que em princípio seria viável a coexistência de técnicas avançadas com ações voltadas para o fortalecimento da atuação e participação da população catadora. Isso em princípio. Contudo, precisamos de mais tempo para ter uma conclusão mais definitiva sobre o caso de São Paulo.

IHU On-Line – Como cada cidadão pode contribuir para a solução dos problemas relacionados ao lixo?

Maurício Waldman – Retomando um bordão que tenho repetido em muitos momentos, qualquer iniciativa ambiental bem-sucedida deve articular um Estado atuante, uma sociedade participante e um cidadão consciente. A cidadania ambiental é fundamental para enfrentarmos os problemas ambientais que rondam os dinamismos da Modernidade. E na caminhada pelo fortalecimento desta consciência passamos obrigatoriamente por caminhos trilhados faz décadas pelos catadores. Categoria que se distinguiu pelo denodo em reverter os sinais da catástrofe ambiental que se avizinha, os catadores aguardam pelo justo e merecido apoio e reconhecimento da sociedade.

* Publicado originalmente no site IHU On-Line.