TERRAMÉRICA - A pré-história verde de Puna

Os sistemas desérticos são muito frágeis, sem amortização possível diante de mudanças bruscas do clima. Foto: Juan Moseinco/IPS

A mudança do clima em Puna há milhares de anos pode ter sido determinante para que os povos caçadores adotassem a agricultura.

Buenos Aires, Argentina, 6 de agosto de 2012 (Terramérica).- A árida Puna do noroeste da Argentina era mais verde há milhares de anos. Transformações climáticas forçaram seus moradores originários a desenvolverem estratégias de adaptação que poderiam servir de lição, afirmam cientistas. “Puna sempre foi uma área desértica, mas até cerca de cem anos atrás havia maior cobertura vegetal e os lugares produtivos eram muito mais abundantes porque chovia o ano todo”, explicou ao Terramérica o arqueólogo Hugo Yacobaccio, da Universidade de Buenos Aires (UBA).

No transcurso de alguns milhares de anos ocorreram mudanças que acabaram impondo condições de extrema aridez. Segundo os registros do clima antigo, um dos fatores foi o fenômeno El Niño/Oscilação do Sul (Enos), que ocorre há pelo menos três mil anos. Parte do sistema que regula o calor no trópico oriental do Oceano Pacífico, o Enos está pautado por mudanças na temperatura da superfície oceânica e na pressão atmosférica.

O período entre os anos 6000 e 2000 antes de Cristo se caracterizou por uma intensa aridez nas latitudes baixas do planeta. “É o momento em que se forma o Deserto do Saara no norte da África, que antes era uma savana”, destacou Hugo. As populações precisaram se adaptar aos novos desafios. “Os grupos de caçadores-coletores diminuíram sua mobilidade – aumentou a densidade populacional relativa – e se agruparam em torno de pequenos oásis ou refúgios ecológicos”, acrescentou Marcelo Morales, também arqueólogo da UBA.

Diferentes estudos paleoambientais apresentam evidências de que nessa etapa diminuiu muito a presença humana nesses cenários, mas não desapareceu. “O objetivo final destes estudos é entender melhor como funcionava a sociedade há milhares de anos em torno das variações climáticas, e resgatar isto como experiência diante do aquecimento global atual, muito mais acentuado”, ressaltou Marcelo.

Os dois pesquisadores trabalham no Instituto de Arqueologia da UBA e no Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas, e se dedicam à arqueologia ambiental, que estuda as relações entre as sociedades do passado e o uso que faziam do meio ambiente. Já publicaram diversos trabalhos, concentrando-se em um cenário e uma conjuntura que é fundamental por diferentes motivos. Puna é uma meseta de alta montanha que, com diferentes nomes e características, se estende pelo sul do Peru, nordeste do Chile, ocidente da Bolívia e noroeste da Argentina. As áreas do lado argentino, salpicadas por “salares” (superfícies de puro sal), estão entre as mais áridas dos cenários de Puna.

Hugo também explicou que é uma das poucas regiões do mundo onde se pode registrar um processo autóctone de transição de grupos de caçadores-coletores para sociedades mais sedentárias e complexas dedicadas ao cultivo e ao pastoreio. “Esta passagem pode ser detectada em cinco ou seis lugares do mundo, e desses poucos locais se expandiu para o restante”, acrescentou. Os outros lugares onde se documenta essa transição são Oriente Médio (Israel, Turquia, Síria), China, Mesoamérica (sul do México e norte da América Central) e Peru, acrescentou.

Os sistemas desérticos são muito frágeis, sem amortização possível diante de mudanças bruscas do clima. “Por isso acreditamos que há um seguro impacto destas mudanças sobre as populações, porque desaparecem riachos e mangues”, afirmou Hugo. A flora foi rareando e os animais de caça se dispersaram. Alguns moradores migraram e outros começaram a ver que lhes convinha permanecer mais tempo em locais mais aptos, onde era mais seguro obter recursos básicos como água, alimento e fontes de energia, acrescentou Marcelo. Esses lugares estavam quase sempre a mais de quatro mil metros de altitude, onde subsistiam mangues e cursos de água.

“Se antes se moviam em grupos de 15, agora confluirão em grupos de 70 pessoas em torno destas áreas, e isso marca o começo da experiência com certas práticas econômicas como a domesticação de camélidos, guanacos e vicunhas que eram os mamíferos silvestres por excelência”, detalhou Marcelo. Em menor medida, adotou-se o cultivo de espécies como abóbora, quinoa, batata e outros tubérculos, e “tudo isto gera mudanças de hábitos porque estes refúgios onde se pode pastorear e cultivar, e onde se consegue lenha, agora são áreas isoladas entre si e separadas por desertos”, pontuou.

Em suas pesquisas de campo, encontraram evidências de aldeias incipientes, restos de instrumentos, bolsas tecidas com fibra vegetal e cultivos adaptados dos vales. “Até se caminha por diferentes lugares”, observou Hugo. Com a mudança de clima também variaram as estratégias de caça, que passou de ser solitária para em grupo. Começou um processamento mais intensivo das presas e maior planejamento no geral. Os grupos assentados em áreas úmidas “começam a intervir mais na seleção de animais para domesticar, deixando de lado os mais ariscos, e isso tem um impacto sobre o recurso”, definiu o arqueólogo.

Outros pesquisadores que trabalham em zonas muito áridas na parte salgada de Puna estão aplicando um sistema de manejo de irrigação que tem milhares de anos em cultivos atuais, e está sendo eficaz, contou Marcelo. “Há uma ideia de extrapolar a experiência passada, para somar alternativas e melhorar o manejo atual diante de condições climáticas que acentuaram suas características”, concluiu.

* O autor é correspondente da IPS.

 

LINKS

 

Povoados solares se acendem em Puna

Terras indígenas se transformam em desertos

Mulheres indígenas reativam economia local, em espanhol

Incansáveis guardiões da terra, em espanhol

O deserto é das tenazes, em espanhol

Males da altura ao norte do paraíso, em espanhol

Universidade de Buenos Aires, em espanhol e inglês

Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas, em espanhol

 

Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação dos Programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.