Internacional

TERRAMÉRICA - Diariamente o cólera faz vítimas

Manifestante carrega um cartaz, em um protesto em Porto Príncipe, contra a presença da ONU no Haiti. Foto: Ansel Herz/IPS
Manifestante carrega um cartaz, em um protesto em Porto Príncipe, contra a presença da ONU no Haiti. Foto: Ansel Herz/IPS

Enquanto recrudesce a epidemia de cólera no Haiti, as vítimas tentam levar a ONU à justiça por introduzir a bactéria nesse país, o mais pobre do continente americano. 

Nações Unidas e Porto Príncipe, Haiti, 4 de novembro de 2013 (Terramérica).- Cerca de 2.400 quilômetros ao sul de Nova York, onde vítimas do cólera no Haiti estão processando a Organização das Nações Unidas (ONU) em um tribunal federal norte-americano, a epidemia continua dizimando a população. Em uma única semana, entre 19 e 26 de setembro, a Organização Pan-Americana de Saúde registrou 1.512 novos casos e 31 mortos. As infecções são registradas nos dez departamentos do país.

No centro de tratamento do cólera dirigido pela organização Médicos Sem Fronteiras, em Delmas 33, uma comunidade de Porto Príncipe, a enfermeira Viola Augustine contou que a clínica está lotada e não pode aceitar mais pacientes. “Desde que abriu, o centro atendeu mais de 20 mil casos. Agora está lotado e não pode dar resposta ao aumento de pacientes contagiados devido à estação chuvosa. Somos obrigados a enviá-los para outras clínicas”, explicou à IPS.

A presença da bactéria do cólera, uma diarreia infecciosa que causou a morte de mais de 8.300 pessoas e contagiou mais de 680 mil desde outubro de 2010, é atribuída a soldados do Nepal que integram os 9.500 efetivos da Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (Minustah). A ONU rechaçou as demandas de compensação. Em outubro, um grupo de defensores legais introduziu um litígio por indenizações contra as Nações Unidas em nome das vítimas do cólera.

Felicia Paul, de 45 anos, vive em Saint-Marc, cem quilômetros a noroeste da capital. Contraiu a doença em 2010 e se recuperou graças a um tratamento com solução salina, que evita a desidratação. “Fiquei doente por 12 dias”, contou ao Terramérica. “Minhas duas filhas se contagiaram enquanto cuidavam de mim. A Minustah trouxe a doença, por isso pedimos que nos compense. Sempre bebemos água do rio e nunca ficamos doentes. Mas essa água foi contaminada porque descarregavam as fezes das forças de paz no rio. Ainda sinto os efeitos. Todos os dias a vista fica turva e me sinto fraca”, acrescentou.

Um ex-alto funcionário nepalês da ONU disse ao Terramérica que defende fortemente o pagamento das compensações. “Como nepalês que viveu e amou o Haiti, sinto uma empatia especial com as vítimas da epidemia”, disse o ex-secretário-geral adjunto das Nações Unidas, Kul Gautam. De certo modo, os próprios soldados nepaleses também são vítimas dessa forma de pobreza e débil governança que aflige tanto o Nepal quanto o Haiti, destacou. Ambos estão no grupo de 49 países menos adiantados, uma categoria que a ONU criou para descrever os mais pobres entre os pobres do mundo.

Ninguém discute que a falta de saneamento e água potável seja uma razão crucial para que a epidemia tenha se generalizado. “Tomara que se encontre uma solução criativa para que as vítimas obtenham um modesto apoio financeiro por razões humanitárias, sem que a ONU tenha que renunciar à sua imunidade diplomática”, afirmou Gautam. “Para isso, é preciso que governos e fundações iluminadas ofereçam sua ajuda, não como uma obrigação legal, mas por considerações humanitárias”, acrescentou o ex-funcionário, que foi vice-diretor executivo do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

O Escritório de Advogados Internacionais e o Instituto pela Justiça e a Democracia (BAI) no Haiti encabeçam o litígio. “O processo segue normalmente. Demos os primeiros passos para que a ONU assuma sua responsabilidade”, informou ao Terramérica o jurista Mario Joseph, que dirige o BAI desde sua criação em 1995. “Apresentamos nossa queixa ao secretário-geral, Ban Ki-moon, mas infelizmente a ONU disse que goza de imunidade”, acrescentou.

“Os especialistas das Nações Unidas estabeleceram claramente que os nepaleses trouxeram o cólera para o Haiti. É evidente que foi causado um dano, a negligência das Nações Unidas está provada e ela deve assumir a responsabilidade”, afirmou Joseph. “Uma organização como a ONU não deveria exercer uma política de discurso duplo quando avalia a si mesma perante seus Estados membros. O Haiti é membro fundador das Nações Unidas, e esta deve assumir a responsabilidade a respeito do cólera introduzido no país”, insistiu.

O porta-voz da ONU, Martin Nersiky, afirmou que a ONU continua comprometida em fazer tudo o que estiver ao seu alcance para ajudar o povo haitiano a superar a epidemia. “As Nações Unidas trabalham no terreno com o governo e o povo do Haiti para fornecer assistência imediata aos afetados e melhorar a infraestrutura e os serviços para todos”, afirmouaos jornalistas.

Kanak Dixit, veterano jornalista nepalês e ativista pelos direitos humanos, disse ao Terramérica que o fato de a contaminação ser rastreada como procedente do batalhão do Nepal é motivo de grande consternação. O Nepal realizará eleições no dia 19 e essa notícia não teve muita atenção nem houve discussão pública sobre ela no país, acrescentou. “Seria muito triste se for certo que um país pobre esteve envolvido na propagação da epidemia em outro país igualmente pobre em uma região diferente”, afirmou o jornalista, fundador da revista Himal SouthAsian.

A ONU tem a obrigação coletiva de apoiar o povo haitiano no combate ao cólera e no apoio às vítimas, em lugar de lavar as mãos de uma posição legalista, acrescentou Dixit. “Os nepaleses entenderiam a necessidade de responder à epidemia com valores humanitários e eficiência organizativa”, ressaltou. Para a enfermeira Augustine, “diante de uma doença que fez tantas vítimas, a ONU deveria compensar os que sofrem, porque o cólera é horrível. Uma coisa é falar do cólera, outra é viver com ele. Conviver com ele é verdadeiramente frustrante”.

A alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Navi Pillay, se afastou da posição oficial da ONU ao afirmar que as vítimas merecem indenização. “Usei minha voz dentro e fora das Nações Unidas para pedir uma investigação do fórum internacional e do país em questão, e apoiar o chamado que fazem as vítimas pelo direito daqueles que sofrem pelo cólera serem compensados”, afirmou.

Solicitado a falar sobre essa declaração, o porta-voz associado da ONU, Farhan Haq, disse que o papel da alta comissária é defender os direitos das vítimas e que seus comentários devem ser entendidos nesse contexto. “Enquanto o processo legal continuar, não podemos fazer mais comentários”, acrescentou. Envolverde/Terramérica

* Os autores são correspondentes da IPS.

 

LINKS

Combate ao cólera choca com a falta de dinheiro no Haiti, em espanhol

ONU cobrada para aumentar combate ao cólera no Haiti

Minustah acusada de importar o cólera – 2010, em espanhol

Cólera avança depois da passagem do furacão Tomás – 2010, em espanhol

 

Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação apoiado pelo Banco Mundial Latin America and Caribbean, realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.