América Latina: A democracia imperfeita

Oscar Arias Sánchez

San José, Costa Rica, fevereiro/2012 – A democracia na América Latina tem de lidar com todo tipo de experimento e ocorrências ideológicas. Algumas mais perigosas do que outras para os ideais de democracia, justiça e liberdade, bem como para o crescimento econômico. Hoje, muitos países latino-americanos deixam de compreender a urgência de preservar o Estado de Direito e, em especial, a segurança das pessoas e dos bens, sem os quais não há competitividade, nem democracia, nem paz.

Até há poucos anos, pensava-se que o desenvolvimento econômico e social era possível em um pobre contexto institucional. Mas as ficções da teoria tiveram que ceder ante o peso esmagador da experiência. Hoje é universalmente reconhecido que o desenvolvimento é impossível sem um desempenho institucional adequado, o que começa pela simples prática da democracia. Isto significa um governo democraticamente eleito, representativo e participativo. Mas também um governo onde os poderes do Estado sejam independentes entre eles e garantam um delicado jogo de pesos e contrapesos, algo que Montesquieu justificou magistralmente, mas que alguns políticos da região preferem ignorar. Uma das grandes falácias políticas na América Latina consiste em vender a ideia de que cada lugar pode desenvolver uma democracia específica ou um sistema de liberdades particular. Muito frequentemente, estas justificativas não são mais do que disfarces para ocultar uma vocação opressiva ou autoritária.

As regras democráticas são universais e os países são mais ou menos democráticos, dependendo de quanto se aproximam ou quanto se afastam desse sistema.

Entretanto, alguns governos latino-americanos caíram na armadilha de acreditar que ao receber o apoio eleitoral, o mandato do povo lhes permite modificar essas regras para levar adiante seu projeto político. Se um governante corta as garantias individuais, limita a liberdade de expressão e restringe injustificadamente a liberdade de comércio, subverte as bases da democracia que o fez chegar ao poder.

O dilema que isto apresenta, e que ainda não conseguimos resolver, é como lidar com democracias onde os governantes se comportam autoritariamente, mas não são ditaduras.

Porque, em nome da verdade, na América Latina só existe uma ditadura: a ditadura cubana. Os demais regimes, gostemos o não, são democracias em maior ou menor grau de consolidação ou deterioração. Pretender derrubar esses governos, ou removê-los de alguma forma violenta contraria a Constituição e as leis, é cair no mesmo jogo autocrático que pretendemos combater. Os próprios povos devem aprender a separar o conceito de demagogia e populismo, porque o problema não são os falsos Messias, mas os povos que aplaudem a sua chegada.

Um dos mais eloquentes casos do desprezo pelo Estado de Direito e da erosão das instituições democráticas é a Nicarágua. Com a reeleição de Daniel Ortega como presidente em 2006, começaram novamente a desaparecer nesse país os controles sobre o exercício do poder público e se esfumaçaram os limites desse poder sobre o exercício das liberdades individuais. Esta deterioração foi mais visível ainda na fraude das eleições municipais de 2008 e nas recentes eleições presidenciais.

De nada serve a América Latina se desfazer de líderes com delírios autoritários, apenas para serem substituídos por novas estrelas do teatro político. Apesar de nossos povos vencerem com valentia as ditaduras que marcaram com sangue a segunda metade do Século 21, ainda resta muito caminho pela frente para a democracia se assentar para sempre na região. Parafraseando Octavio Paz: em nossa região, democracia não precisa de asas, necessita é lançar raízes.

O único caminho para tirar poder dos que o concentram após receber o apoio popular é minando esse apoio com educação cívica, oportunidades e ideias. Infelizmente, nessas tarefas continuamos falhando. Seguimos adiando eternamente as grandes reformas políticas, educacionais e tributárias que por anos prometemos fazer. Nem o colonialismo espanhol, nem a falta de recursos naturais, nem a hegemonia dos Estados Unidos, nem nenhuma outra teoria produto da vitimização eterna da América Latina explica o fato de nos recusarmos a aumentar nosso gasto em inovação, a cobrar impostos dos ricos, a formar profissionais em engenharias e ciências exatas, a promover a competição, a construir a infraestrutura que construímos nos últimos 200 anos, ou a dar segurança jurídica aos empresários e investidores.

Com que direito a América Latina se queixa das desigualdades que dividem seus povos, se cobra quase a metade de seus tributos em impostos indiretos, e a carga fiscal de algumas nações na região só alcança 11% do Produto Interno Bruto? Com que direito se queixa da falta de empregos de qualidade, se é ela que permite que sua escolaridade média gire em torno de oito anos? Com que direito se queixa de sua desigualdade e de sua pobreza, se aumentou seu gasto militar a uma taxa média de 8,5% ao ano desde 2003, alcançando a cifra censurável de quase US$ 70 bilhões em 2010? Nossos líderes poderiam seguir o exemplo do presidente Obama que, para enfrentar a crise econômica em seu país, anunciou a redução de US$ 487 bilhões em gastos do Pentágono no prazo de dez anos. Estou consciente, porém, que aos Estados Unidos ainda resta muito a fazer para salvar sua dívida pendente com a paz e a segurança internacionais, pois continua sendo o maior exportador mundial de armas; é o momento de colocar os princípios acima do lucro em algumas corporações norte-americanas.

Esses dados sobre América Latina apenas demonstram a amnésia de uma região que alimenta o retorno de uma corrida armamentista, dirigida em muitos casos a combater fantasmas e miragens. Por isso, em meu último governo, propus à comunidade internacional e, muito especialmente, aos países industriais, que déssemos vida ao Consenso da Costa Rica, pelo qual são criados mecanismos para perdoar dívidas e apoiar com recursos financeiros internacionais os países em vias de desenvolvimento que invistam cada vez mais em educação, saúde, proteção do meio ambiente e moradia para seu povo, e cada vez menos em armas e soldados. É o momento de a comunidade financeira internacional premiar não só quem gasta com ordem, como até agora, mas quem gasta com ética. Envolverde/IPS

* Oscar Arias Sánchez é ex-presidente da Costa Rica (1986-1990/2006-2010) e Prêmio Nobel da Paz 1987.