O dinheiro sustentável

Vamos tomar como paradigma da história econômica, social e política da humanidade os critérios usados por Hazel Henderson, economia ganha/ganha, ganha/perde e perde/perde, completamente diferentes dos critérios economicistas usados pelos economistas convencionais. Segundo este critério só existem três tipos de modos de produção (ampliados e não marxistas). O primeiro toma toda a Pré-História, quando era usado por hominídeos e homo sapiens o paradigma ganha/ganha, isto é, o escambo simples e/ou o escambo mediado por um tipo de objeto, ou objetos, que servem como parâmetro para medir o valor dos produtos. Sejam eles conchas, pedras, gado, alimentos, sal (de onde a palavra salarium, que em latim designava o salário recebido por todos os assalariados) ou moedas de metal, mas que não geravam juros. Era então uma economia ganha/ganha, ou na qual ninguém saía perdendo nem ganhando. Era um preço assumido pelo comprador e pelo vendedor, ou melhor, aqueles que faziam o escambo.

Isso durou mais de dois milhões de anos, pois o Período Histórico começou no máximo há cinco mil anos. As moedas de ouro/prata foram inventadas pelos lídios no Século 6 a.C., e estas eram moedas que geravam juros e, portanto, desigualdade. Assim começou uma nova relação entre os seres humanos, a relação ganha/perde, na qual as guerras tomam um sentido completamente diferente das guerras em busca de território ou alimentos da pré-história e do início do movimento agrário que começou ainda no fim da Pré-História, isto é, dez mil anos atrás. Agora as guerras são muito mais frequentes e se fazem em busca não só mais de território, como também de poder e dinheiro. O poder é mais verticalizado do que nunca, até se formarem os grandes impérios da antiguidade, inclusive o Império Romano, a Idade Média, o Período Industrial, que intensifica muito a desigualdade entre os seres humanos e quando se criam os Estados, as leis, e um novo tipo de poder baseado no dinheiro. Agora se luta por dinheiro.

Ou melhor, quando um grande período termina e nasce outro período monetário, mudam-se todos os valores políticos e éticos. As relações não são mais de compartilhamento dos bens pelo grupo inteiro, mas de competitividade dentro dos grupos, o que cria um tipo de crueldade muito diferente, onde se cria a ganância e a avareza. E o Estado se torna a maneira legal de exercê-las. O período ganha/perde é um período em que o homem passa a ser o lobo do homem, de acordo com Thomas Hobbes. A principal diferença entre os dois paradigmas é que eles não nascem ao mesmo tempo, mas de acordo com a natureza da tecnologia inventada.

A tecnologia de fundir os metais torna, de dez mil anos para cá, os seres humanos capazes de se fixar na Terra, graças aos processos de cultivá-la e ara-lá, especialmente o arado que precisa de trabalho pesado para manobrá-lo. Nasce assim a sociedade escravista que não existia na Pré-História, e que de formas diferentes existem até hoje.

Na Pré-História não havia senhores e escravos, mas sim amigos e inimigos com o mesmo tipo de honra. E este tipo de relação que eu chamaria de guerreira, mas compartilhada, passa a ser dominada pela relação competitiva ganha/perde, senhores/escravos.

A natureza do Estado muda e os mais violentos ficam com a sua posse, e são endeusados. Eles se consideram deuses ou filhos de deuses. Para, mais tarde, estarem na realeza por direito divino.

Enquanto isto, a tecnologia vai se sofisticando e não é mais serva da vida humana como na sociedade cooperativa. Ela é mortal para as grandes maiorias dominadas, porque só serve àqueles que podem pagar, e até hoje é assim.

Há uma relação simbiótica entre tecnologia e dinheiro, e é aqui que queríamos chegar. Aqueles que são tecnologicamente menos avançados perdem sempre a luta para aqueles que têm o domínio da tecnologia. Citaremos um exemplo dos últimos séculos: os indígenas que habitavam as Américas e os negros, que em sua maioria foram escravizados e que ainda estão numa relação não competitiva entre grupos e, portanto, não podem resistir ao armamento pesado dos colonizadores.

Neste paradigma, quando se passa de uma fase para outra mais avançada, os que têm menos tecnologia acabam sempre perdendo, inclusive suas próprias vidas. E os que dominam a tecnologia acabam sempre ganhando. A natureza da simbiose entre tecnologia e dinheiro torna-se cada vez mais sólida e acelerada. Aqui podemos perceber muito claramente a relação de aceleração entre paradigmas: o período ganha/ganha tem aproximadamente dois milhões de anos, o período ganha/perde começa há vinte mil anos. A aceleração do período agrário dura quase todos os últimos dez mil anos, quando ele é substituído pelo poder industrial e o Estado industrial. Isto há trezentos anos apenas, desde meados do Século 18 (revoluções francesa, norte-americana e, já no Século 20, russa), mas a relação continua sendo a mesma de senhores/escravos nos dois subperíodos da relação ganha/perde: o agrário, o industrial e também o de depois da revolução russa, em que os oprimidos deveriam ser libertados como nas duas outras, mas também não foram. Pois não se tocou na principal relação que é a do dinheiro e da tecnologia.

O Século 21: uma nova economia ganha/ganha e um novo tipo de dinheiro

Isto vem durando até o Século 21, no qual a tecnologia dá um salto qualitativo enorme. Não é mais a tecnologia de baixa velocidade que se usava até a segunda metade do Século 20, mas as tecnologias de altíssima velocidade (a velocidade da luz), como os computadores e todas as invenções derivadas deles. Agora, os acontecimentos que se passam em uma parte do mundo são conhecidos em tempo real pelo mundo inteiro. Isto muda radicalmente as relações humanas e com elas a natureza da economia e da política.

Aqui temos que falar sobre o mesmo problema que apareceu quando o primeiro paradigma (ganha/ganha) foi sobrepujado pelo segundo (ganha/perde), que tinha maior conhecimento da tecnologia e, por isto, dominou os pré-históricos de outras etnias. Deles ainda hoje resultam alguns resquícios, mas sempre estão nas classes mais baixas. O grande fenômeno que agora já podemos perceber é que estes oprimidos e todos os oprimidos do mundo já podem adquirir consciência da sua opressão e reagir.

Como exemplo, tomaremos a primavera dos países árabes, em que a grande maioria da população rejeita a miséria, à qual são submetidos por alguns ditadores crudelíssimos e desumanos. Os oprimidos em geral vencem armas, pacificamente, exigindo democracia econômica, isto é, que o dinheiro e as riquezas não fiquem apenas em poucas mãos como nos sistemas anteriores, mas circulem pela população inteira, começando um movimento de ganha/ganha. A mesma coisa está acontecendo nos países europeus e nos Estados Unidos, onde os mais ricos manipularam as riquezas por meio das crises econômicas que não são naturais, mas sim fabricadas de acordo com seus interesses.

A finalidade dessas crises econômicas é reconcentrar a renda, por exemplo, na última crise de 2007-2008, 96% da riqueza do mundo se encontrava em poder dos 8% mais ricos e dentre estes, dos 1% extrarricos, uma classe que não existia antes.

Existe hoje uma classe dominante, uma classe dominada e uma classe superdominante, que domina dominantes e dominados, e à qual chamaremos de “senhores do dinheiro”, que se concentram, principalmente, no setor financeiro ou no pós-industrial das novas invenções eletrônicas.

Nos Estados Unidos e nos países europeus também vemos a mesma revolta dos países árabes. Eles vão às ruas para não serem obrigados a pagar “a farra” do setor financeiro das crises de 2001-2002 e 2007-2008, em que o FMI e outras instituições internacionais controladoras da economia do mundo inteiro lhes impõem: austeridade fiscal ao contrário da antiga frouxidão neoliberal, cortes de aposentadorias, salários e do bem-estar social, o que empobreceu enormemente estas nações que durante o período ganha/perde eram dominantes, mas hoje estão em rápido declínio.

O que temos a dizer agora é que a democracia política vem existindo nos últimos séculos, mas não a democracia econômica, e o que as novas gerações exigem é uma democracia econômica. Para isto, é preciso mudar a natureza do dinheiro, tornando-o outra vez um dinheiro ganha/ganha e, com isto, mudar a natureza do Estado, que volta para as mãos das grandes maiorias em detrimento dos senhores do dinheiro que são o alvo almejado por todos.

Na segunda década do Século 21, as populações estão na rua de praticamente todos os países do mundo, inclusive na América do Sul, que os especialistas denominavam de “miraculosamente” equilibrada. Em 2011, foram para a rua mais de um milhão de pessoas no Chile, principalmente jovens, exigindo maiores recursos para educação, e a revolta tornou-se uma exigência por democracia plena.

Na China, aconteceu uma revolução destas, mas foi impiedosamente massacrada (a Revolução Jasmin) e a mídia praticamente não mencionou por ser dominada pelas classes mais ricas.

Agora o desejo de igualdade, fraternidade e liberdade, finalmente, começa a se difundir em profundidade graças ao Facebook e outras ferramentas de comunicação, que não podem ser controladas e estão acelerando ainda mais estes movimentos.

Não sabemos onde isto vai parar. Mas tem que parar, porque agora, ou se transforma o mundo instalando-se o paradigma ganha/ganha, ou se instalará o violentíssimo paradigma perde/perde em que todos acabaremos perdendo, porque está sendo envolvido o excessivo uso dos recursos naturais.

Hoje, estamos usando uma Terra e meia, isto é, uma Terra e mais 50% do que ela pode dar. O preço das commodities não deve baixar mais, pois cada vez há mais habitantes e menos alimentos. Ou chegamos a um novo paradigma ganha/ganha, igual ao da Pré-História, mas infinitamente mais sofisticado, ou, se não, pereceremos todos.

Por isso, chamamos esse terceiro paradigma de vida, de paradigma ganha/ganha, que ainda pode ser substituído pelo terrível perde/perde.

As moedas complementares e a moeda universal

A primeira coisa que está se fazendo é mudar a natureza do dinheiro. Em todas as partes do mundo, principalmente nos bolsões de miséria, estão aparecendo moedas escriturais que são controladas pelas comunidades mais pobres e excluem os ricos.

Numa primeira fase, habitam em conjunto a moeda ganha/perde e a moeda ganha/ganha, e isto começa acontecer na segunda metade do Século 20. Vamos agora ver como funcionam estas moedas às quais chamamos de moedas ganha/ganha, ou moedas complementares.

As moedas ganha/ganha, fatalmente, terão que ser moedas locais e gerenciadas pelas próprias comunidades. E de locais vão passando a nacionais e, finalmente, a uma moeda universal complementar. Chamaremos a estas moedas todas de moedas complementares. Elas surgiram no Século 19, inventadas por Sylvio Gesell e, ao tomar conhecimento delas, o próprio John Maynard Keynes disse: “vocês vão dever a Sylvio Gesell muito mais do que deverão a Marx”.

Os primeiros casos verdadeiramente importantes foram os que se deram na Grande Depressão dos anos 1930, tanto na Europa, como nos Estados Unidos.

A primeira foi na Alemanha, ainda na hiperinflação em que o povo estava todo na miséria e faminto. Um dos empresários alemães, dono de uma indústria de carvão, e falido, não tinha dinheiro para pagar seus operários, e fez um acordo com eles. Deu-lhes um carnê com trinta selos que podiam ser usados como moeda em estabelecimentos conveniados com a fábrica, e chamou a esta moeda de wara. Os operários aceitaram e os selos que eram lastreados por carvão começaram a funcionar.

Cada vez que um wara do carnê circulava, uma vez dobrava seu valor, duas vezes triplicava, e assim por diante. E a população da cidade começou a circular cada wara trezentas ou quatrocentas vezes. E, assim, conseguiram construir pontes, ruas, estradas, e saíram da miséria absoluta. O êxito desta firma foi tão grande, que daí a dois anos, mais de duas mil firmas estavam usando o mesmo sistema com nomes diferentes, e todas estas moedas eram delimitadas localmente.

Quando o Banco Central alemão soube, ficou apavorado, temendo que a moeda oficial fosse substituída pela moeda complementar. E, assim, colocou-a na ilegalidade. E o povo voltou à miséria absoluta. E foram os operários e as mulheres que elegeram Adolpho Hitler em 1933.

Na Áustria houve caso semelhante: um prefeito de uma cidade falida só tinha quarenta mil schillings, que era a moeda austríaca e colocou em circulação não os schillings, mas quarenta mil worgls lastreados pelos schillings. E a Áustria também viveu um período de prosperidade até 1937, quando o Banco Central também colocou o worgls na ilegalidade pelo mesmo motivo.

Naquele ano deu-se o auschluss, isto é, a anexação da Áustria pela Alemanha por vontade do povo austríaco. Temos a dizer que Hitler foi financiado pelo dinheiro dos que ficaram extrarricos na Grande Depressão de 1929, vendendo suas ações no pico, e que também financiaram Lênin.

Na segunda metade dos anos 1930, a moeda chegou aos Estados Unidos, que estavam também na miséria, e se chamava stamp scrips e acabaram trazendo prosperidade a esta nação. Esta moeda chegou no fim da década às mãos de Irving Fischer, o maior economista da época e diretor de Harvard, que a levou a Roosevelt dizendo-lhe: “presidente, esta moeda pode acabar com a Grande Depressão em três semanas”. Roosevelt apavorado a pôs na ilegalidade, dando ao povo um pouquinho de dinheiro (New Deal), e um pouco mais tarde estourava a Segunda Guerra Mundial, e depois aconteceram os primeiros bombardeios de Pearl Harbor.

E foi após a Segunda Grande Guerra, por meio da maior violência e da criação do complexo industrial militar, que Estados Unidos e depois Europa se tornaram os países mais ricos do mundo.

Mas as moedas complementares locais continuaram agindo em alguns países europeus, principalmente na Suíça (wir), onde existe até hoje coabitando com a moeda oficial, o que tornou a Suíça o país economicamente mais estável do mundo, até recentemente. Mais tarde, no terceiro quarto do século, elas se espalharam pelo mundo inteiro, principalmente no “terceiro mundo”, onde pouco a pouco foram diminuindo a miséria. Hoje, já existem cerca de cinco mil moedas complementares no mundo inteiro.

No Brasil, nos anos de 1990 cria-se a primeira moeda complementar numa favela infecta de vinte mil habitantes, chamada Conjunto Palmeiras. Em dez anos, lutando contra tudo e contra todos, o seu introdutor, Joaquim de Melo, conseguiu introduzir o palma lastreado em reais (a moeda brasileira), onde um palma valia um real, começando com dois mil reais, uma quantia mínima. Pouco a pouco, a favela foi melhorando, foi sendo saneada (no inverno a chuva chegava até o pescoço das pessoas), ganhou mais lastro de organizações nacionais e estrangeiras, inclusive chegando ao conhecimento do presidente Lula.

O Banco Central brasileiro em vez de colocar a moeda na ilegalidade, incentivou-a e hoje já existem, com Joaquim de Melo, 53 bancos comunitários e locais no Brasil inteiro. E o Conjunto Palmeiras já é um bairro de classe média, totalmente urbanizado e ecológico. Além destes, há ao menos mais cem bancos também espalhados pelo Brasil, nos bolsões de miséria, ajudando os mais pobres a sairem dela. Todas lastreadas por reais emprestados à comunidade pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).

Esperamos que este número cresça exponencialmente. Já há países em que elas são adotadas com grande êxito. A Nova Zelândia, por exemplo, paga, e com muito êxito, todo o seu welfare com excelentes resultados em moedas sociais.

Com a chegada das crises de 2001 e 2007-2009, que ainda não acabou e está se tornando uma recessão mundial profunda, o valor do dólar está declinando como moeda de reserva internacional e já se pensa na criação de uma moeda universal, um pouco nos mesmos princípios que o Bancor proposto por Keynes em Bretton Woods, que seria uma moeda universal independente de todos os países, mas que o representante dos Estados Unidos, Larry White, trouxe para ser o dólar. E daí começou a história da grande potência hegemônica, que possuía a moeda universal hegemônica, que era moeda de troca para todo o comércio internacional.

Hoje, este quadro está sendo todo mudado e já se compram, com a chegada da Segunda Depressão, moedas internacionais denominadas em euro, em iene, e principalmente agora em ouro, que teve sua cotação exponencialmente aumentada, chegando a ser a maior da história.

Mas isto é apenas um paliativo. Já existem muitos economistas pensando numa moeda complementar internacional sustentável, independente de todos os países.

A moeda universal e o futuro: o terceiro paradigma

Como afirmamos, anteriormente, estão coabitando violência e pacifismo na maior parte do mundo neste momento, isto é, os métodos do segundo e os métodos ganha/ganha que formam o terceiro paradigma.

A partir da moeda social, as camadas mais baixas estão tomando consciência da sua opressão no mundo inteiro. E estas reuniões comunitárias estão formando uma nova consciência da sua dignidade, que não tinham no segundo paradigma.

A principal característica do terceiro paradigma (ganha/ganha) é a consciência da desigualdade e a luta concreta, contra ela, praticamente no mundo inteiro, muitas vezes sacrificando as vidas de centenas de milhares de pessoas como no mundo árabe. O que vale acentuar é que a moeda local tem que ser complementada por uma moeda universal que mude os parâmetros do comércio internacional. Caso contrário, este trabalho dos pobres levará muito mais tempo do que precisa.

O que escreveremos a seguir foi baseado no livro A Moeda Universal (Editora Ciência Moderna, 2011, Rio de Janeiro), de Geraldo Ferreira de Araújo Filho, ao qual acrescentamos nossos comentários para aproveitá-lo e ampliá-lo.

A moeda universal é o segundo item do terceiro paradigma. Ela seria mais ou menos uma ampliação do DES (Direito Especial de Saque, do FMI). Atualmente, este DES é uma composição de quatro moedas: dólar, euro, iene e libra, que são o lastro dos empréstimos feitos às nações. Cada país coloca uma pequena parte de suas reservas para fazer parte deste lastro, numa destas quatro moedas. Esta é a maneira de agir do segundo paradigma, que privilegia os países ricos em detrimento dos pobres, pois são as moedas mais caras que determinam o valor das moedas menores.

No terceiro paradigma, a moeda universal, que no momento chamaremos de criterium-conceptum, seria uma reunião das moedas dos primeiros trinta ou quarenta países, e depois, numa fase posterior, dos 192 países do mundo. Em que critério isto seria baseado?

Formando-se um lastro completamente novo para este Valor de Reserva do Desenvolvimento Sustentável (RVDS), que não teria mais o dólar como carro-chefe, mas sim uma média de todas as moedas do mundo. Não mais baseado no PIB, que é apenas a contagem econômica das riquezas e serviços do país, mas sim em um espectro muito maior e que abrange todas as necessidades humanas.

Alguns deles serão referidos a seguir, mas antes temos que ter consciência da mudança profunda que a soma de todos esses valores e a sua média, baseada na nova moeda, o VRDS, a que estamos chamando de criterium-concemptum, terá, pois, por exemplo, os países que têm maior PIB poderão estar em um ranking muito inferior de países mais pobres, porém muito mais equilibrados. Os valores principais serão os seguintes:

-a abrangência do comprometimento com a rejeição da guerra;
-o alcance do envolvimento com a preservação ambiental, incluindo a pesquisa de matrizes energéticas sustentáveis e o seu uso concreto;
-a disseminação do conhecimento e das relações dos povos dentro de suas próprias fronteiras e com os outros: guerra civil, terrorismo;
-investimentos em inovação na solidariedade para debelar a fome dentro e fora das suas fronteiras (ajuda humanitária a países em grave perigo de fome);
-implementação de programas de inclusão digital;
-desenvolvimento de estudos que visem a expandir a qualidade do conceito habitacional de massa, incluindo o nível de melhoria dessas habitações;
-financiamento de pesquisas em prol da melhoria da saúde e ações concretas nesse sentido.

E, também, elementos do PIB integrados a estes valores mais importantes: a produtividade industrial, a liquidez bancária, a idoneidade mercantil, o percentual de empregabilidade, a capacidade de autofinanciamento, a abrangência do mercado interno, o tamanho do PIB e o nível de renda per capita, o coeficiente de Gini, que mede o nível de desigualdade entre as classes sociais.

Obviamente, quando este consenso amadurecer e envolver todos os países do planeta, outros itens aparecerão. Por exemplo, concretamente: frente a esse cenário, a mesma medida que um país possa ganhar pontos por uma produção vigorosa (auto PIB), parte deles pode perdê-los pela não contemplação do respeito por determinados princípios ecológicos.

Na mesma linha, uma renda per capita pouco expressiva perde parte de sua dimensão negativa quando implementados investimentos voltados para o aprimoramento acadêmico em todos os níveis.

Melhor explicitando: a reserva de valor deixa de ser representada por pedaços de papéis ou de metais, e desloca-se para a efetiva capacidade de ajuste de cada uma das nações em cada um dos itens estabelecidos pela RVDS.

O somatório e os diversos pesos dados a cada item serão colocados na internet à disposição de qualquer cidadão que os queira conhecer, e o centro que deverá regê-los será semelhante ao FMI ou, particularmente, um novo FMI ,que vai atuar com esses novos valores. Como veremos adiante.

Antes de prosseguirmos vamos ver que o que afirmamos até agora já muda no antigo sistema. O mais importante de todos será a realidade concreta e uma governança mundial colegiada que até agora foi fruto de apenas alguns visionários. Em segundo, acabarão as reservas de valor, que hoje nada mais significam que um sorvedouro de recursos que ficam em stand by, sem qualquer vocação produtiva no país que a produziu, tais como o superávit primário e as reservas internacionais que todo país possui em dólares. Não haverá mais necessidade deles, que podem servir para o desenvolvimento pleno do trabalho de progressão da melhoria de vida dos povos, dentro do seu país.

Em terceiro lugar, acabarão as moedas hegemônicas que não existirão mais com todas as suas consequências: os países menores perderão ou ganharão ao sabor dos caprichos da moeda norte-americana, que hoje está fazendo o mundo inteiro pagar pela crise violenta que estamos vivendo.

Portanto, estas moedas locais e a moeda internacional serão fatalmente anticíclicas e as crises produzidas pelos senhores do dinheiro deixarão de existir. Aparecerá o seu caráter de crises fabricadas e não crises naturais, como querem os economistas conservadores.

Outro fator importante é que as nações passam a ser qualificadas unicamente pela abrangência de seus desempenhos internos. A derrocada de uma não trará mais como agora a derrocada de outras. Finalmente, acabará o efeito dominó. E um novo tipo de globalização estará vigorando.

Também nesse organismo internacional se concentrarão diversos técnicos que, em missões itinerantes, atenderão os governos que solicitarem apoio para o estabelecimento de planos diretores que contemplem metas plausíveis de desenvolvimento sustentável, sem, no entanto, exercerem qualquer papel coercitivo na implementação das providências sugeridas.

O que é na realidade o criterium-concempetum?

Agora vamos expor o que é na realidade a RVDS, ou criterium-concemptum. Este é apenas uma moeda virtual, e portanto ninguém pode comprá-lo ou vendê-lo. E servirá apenas como parâmetro para o comércio internacional, evitando todas as suas distorções como, por exemplo, o pagamento de porcentagens ao dólar na compra ou na venda.

Por isso, extiguem-se as aflitivas cotações diárias, ou até mesmo horárias, que hoje calculam o valor da cesta de moedas frente ao dólar.

Portanto, o criterium-conceptum não está sujeito a nenhuma especulação, é apenas um moderno mecanismo de ajustamento das relações cambiais no terceiro paradigma.

Em outros termos, cada moeda de cada país será isso mesmo. O dólar norte-americano, o dólar canadense, o euro francês, o euro grego e assim por diante para todos os países do mundo. Os blocos de nações serão transformados num bloco mundial colegiado e democrático. Esta é a verdadeira globalização, absolutamente necessária para que se desenvolva o terceiro paradigma.

Portanto, se desde o princípio do período de conversibilidade essas reservas começarem a ser utilizadas para suprir as deficiências de adaptação aos parâmetros garantidores do “novo dinheiro” –A RVDS–, os países aumentarão consideravelmente suas chances de as fermentarem e, consequentemente, de fazerem-nas valer mais do que representavam em dólar no início do processo, isto, obviamente, variando ao sabor dos resultados qualitativos dos investimentos aportados em suas respectivas economias internas.

Este período de adaptação será um período longo, mas muito importante para o diálogo internacional. Cada valor, uma vez convertido em criterium-conceptum, terá um valor X valendo 30% de 1 criterium-concemptum, Y valendo 78% e Z 13%, por exemplo.

Melhorá-las na classificação dependerá, exclusivamente, da atuação interna de cada nação frente aos fatores estabelecidos como sendo as metas universais a serem perseguidas.

Com todas essas considerações estaremos vendo como o dinheiro do antigo primeiro mundo já está acabando. Cada país deve mais do que seu PIB. Tudo isto poderá ser mudado quando for implantado o uso pleno do criterium-concemptum, a única Reserva de Valor do Desenvolvimento Sustentável, possível.

Como funciona o concreto?

Operacionalmente, a nova moeda pouco difere dos padrões que vigem hoje. O como “fazer” criteriuns-concemptuns, por exemplo, continua vinculado às operações de importação/exportação, ou seja, exatamente como hoje são “feitas” as divisas em dólar.

O que se altera, como já vimos, é o modo de cálculo do efetivo valor de cada uma das moedas nacionais frente a esse novo padrão, que se desvincula, por inteiro, das questões conjunturais da atual “nação-padrão”, nos caso os Estados Unidos da América do Norte, agregando, inclusive, forte blindagem, de forma a impedir que aquele país continue repassando sua inflação para o planeta, que compre petróleo com dinheiro do resto do mundo ou atrele ao seu mercado megaespeculativo –compulsivo inflador de bolhas– os esforços produtivos das demais nações.

Assim, o criterium-concemptum é um cartão de crédito virtual, que não gera juros, e que passa uma moeda imediatamente para o outro país, de acordo com os valores atribuídos a cada uma delas em RVDS pelo Comitê Colegiado de todos os países.

O contato entre uma moeda e outra, portanto, dá-se por intermédio de uma contabilidade virtual. E o valor, tanto de uma quanto de outra, não dependerá mais das conjunturas, quer do que restou da economia norte-americana, quer do que restou da do resto do primeiro mundo, Japão e União Europeia, mas sim dos específicos desempenhos individuais internos de cada país frente aos parâmetros da RVDS.

É claro que um investidor individual ou corporativo japonês, por exemplo, poderá continuar aplicando seus recursos nas bolsas de Nova York, de Londres ou de São Paulo. E sem dúvida que isso continuará acontecendo.

Só que, como é operação que tem como ponta aplicadora o espaço territorial japonês e como ponta tomadora o dos Estados Unidos, da Inglaterra ou do Brasil, a única forma de operacionalizar esta transação é via iene, que, contabilizado em criterium-concemptum, já aterriza por lá em dólares norte-americandos, libras esterlinas ou em real brasileiro.

Não há a menor hipótese de esse investidor fazer algum tipo de operação extrafronteiriça, relativamente ao que for, utilizando-se de alguma outra moeda que não seja a da origem territorial do recurso financeiro.

Uma futura desaplicação da totalidade ou de parte desse quantitativo, obviamente, seguirá a mesma rota: dólar norte-americano, libra esterlina ou real / criterium-conceptum / yen.

Da mesma forma, inexiste a hipótese de o país destinatário da remessa não receber o valor a ser creditado em outra moeda que não a sua própria. O dólar norte-americano circulará exclusiva e especificamente em território norte-americano, a libra esterlina no Reino Unido, e o real no Brasil. Idem para o iene, relativamente às ilhas japonesas.

Ou seja, ninguém, seja pessoa física ou jurídica, pode dispor, dentro dos territórios em que atuem, de outro tipo de moeda senão a daquele próprio país. Cremos que isto já ficou muito claro.

É obvio, no entanto, que o citado investidor japonês –ou qualquer outra pessoa física ou jurídica– poderá ter uma conta-corrente, em seu nome ou no nome de alguma organização, em dólares norte-americanos, canadenses ou em peso mexicano, por exemplo, desde que estejam depositados, especificamente, em alguma instituição financeira baseada no território dessas nações.

Evoluindo um pouco mais: se além do Japão, dos Estados Unidos, do Canadá e do México, esse investidor fictício também tiver conta-corrente em um banco no território francês e se predispuser a aplicar na Alemanha, o processo será exatamente o mesmo: euro francês / criterium-concemptum / euro alemão.

No caso do turista comum, assim como já acontece hoje, a utilização do cartão de crédito, de débito e de saque é a melhor pedida, haja vista que a única coisa que muda é o fator de conversibilidade que, pura e simplesmente, deixa de ser o dólar norte-americano.

Ou seja, não há solução de continuidade. Os mecanismos operacionais existentes, se aplicam todos eles ao criterium-concemptum.

Ratificando, o criterium-conceptum tem como finalidade precípua duas funções primordiais: erradicar do consciente coletivo planetário a noção de que moeda é algo diferente que um mero padrão de conversão, e de definir, territorialmente, o valor de cada uma das moedas regionais, que será determinado em função das análises dos aproveitamentos nos deveres de casa que deverão ser aprontados, especificamente, por cada país de per si.

No entanto, se for para melhorar o valor de cada moeda, nada impedirá cada país de copiar de outros as atitudes que melhorem a sua cotação, como, por exemplo, proteger mais as suas florestas ou diminuir a sua pobreza (índice de Gini).

Dá para ver agora como essa moeda é anticíclica, isto é, acaba com as crises, as bolhas, ou com que as moedas sejam obrigadas a ceder aos caprichos da moeda hegemônica, por exemplo, aumentar a sua inflação porque o dólar tem que pagar compromissos muito acima do seu poder aquisitivo, desvalorizando assim a sua moeda; comprar moeda com a valorização do dinheiro de outros países; e assim por diante.

Por isso, afirmamos que o criterium-concemptum acaba como moeda hegemônica e toma seu verdadeiro lugar. Ele será dólar norte-americano dentro dos Estados Unidos, dólar canadense dentro do Canadá, libra esterlina dentro do Reino Unido, real no Brasil, o efeito dominó das moedas, graças a existência do criterium-concemptum como RVDS.

Acabam-se assim, também, as torturantes variações de dólar no mercado de câmbio flutuante.

Nossa proposta é embrionária. É imperfeita. É conceitual. Longe de nós, portanto, estarmos pretendendo esgotar o assunto.

Pelo contrário. Somos, meramente, protótipos.

O primeiro minuto de uma partida que deverá arrastar-se por todo o seu tempo regulamentar, reservando-nos as emoções das grandes jogadas, dos erros e acertos dos árbritos e do virtuosismo dos profissionais que adentrarem o campo.

No entanto, urge que comecemos, com seriedade, a pensar na criação de uma moeda sem a face e os cacoetes de qualquer nação.

Como está, é injusto. Como está, é tortuoso. Como está, é censurável. Como está, é desonesto. Como está, não dá mais para ficar.

Como exemplo típico, vejamos o caso do real. Deflagrada a crise brasileira, no início de outubro de 2010, o dólar norte-americano variava por aqui no patamar de R$ 1,50. Desnudada a economia norte-americana –todo o sistema bancário no vermelho, toda a indústria automobilística quebrada, todo o comércio sem ter para quem vender–, em menos de um mês o dólar quase dobrou seu valor por aqui.

A entrada do Brasil nos organismos internacionais, juntamente com outros emergentes, não apenas colocou peso como desbancou o alquebrado G-8, até então o diretório econômico planetário, redefinindo toda a hierarquia de poder e contribuindo, sobremaneira, para a solidificação do G-20 como o centro das articulações econômicas globais.

Com o G-20 tomando parte, diretamente, dos processos de decisões do sistema financeiro global, na prática isso nada mais significa que já está em pleno andamento uma nova ordem internacional.

Em 2 de abril de 2009, aconteceu a primeira reunião do G-20 em Londres. Os tópicos dominantes versaram sobre uma regulamentação consistente para o mercado financeiro internacional, incluindo-se aí as chamadas zonas de paraísos fiscais e a revisão da própria conceituação filosófica de todo o sistema bancário, mais notadamente em relação aos da Suíça, Áustria e Luxemburgo, velhos conhecidos como os grandes estimuladores da evasão dos impostos que, obviamente, não lhes pertencem.

E, enquanto América e o Reino Unido uniam forças em defesa dos estímulos fiscais como mola mestra para a recuperação econômica, Alemanha e França contrapunham-se e exigiam maior regulação do sistema financeiro internacional.

De toda forma, o planeta Terra cansou de acalentar as ancestrais mesmices e se prepara para dar início a um desenvolvimento em bases sociomorais bem mais consistentes que as que vinham sendo exercitadas pelas, até então, nações líderes.

Portanto, não há hora, lugar e momento mais adequado para que a ideia da moeda universal seja apresentada e, seriamente, discutida.

Conclusão

Funcionam assim os três paradigmas da história da humanidade. Caso não tenhamos moedas locais e também uma moeda universal diferente da atual, que não gere juros, as coisas estarão como sempre foram: mais do mesmo. Só que piorando, exponencialmente, a cada dia até começarmos o violentíssimo paradigma perde/perde. Qual você prefere?

Quanto ao papel da mulher temos a dizer que este artigo foi todo escrito numa perspectiva de gênero. No primeiro paradigma, a mulher era o gênero dominante porque ela era quem paria e o homem não tinha conhecimento do seu papel na procriação. Assim, na Pré-História os grupos eram pacíficos e a relação entre homens e mulheres e os filhos eram amorosas. A grande Deusa era a Terra, de onde todos saíam e para onde todos voltavam, conforme já vimos exaustivamente em toda nossa obra.

No segundo paradigma, a mulher passa a ser dominada pelo homem, na maioria dos casos muito dominada, o que lhe dava uma condição de total dependência do homem. A partir de meados do Século 20, sua condição começa a mudar com a condição do mundo. Ela sai para trabalhar nas fábricas e começa a exigir seus direitos humanos. As moedas complementares são 97% manejadas pelas mulheres, pois, como dizem os norte-americanos, “man Bond, women network”, isto é, os homens fazem grupos que se enfrentam, e as mulheres tendem a fazer negociações e acordos, ou a tecer redes não violentas.

Se o terceiro paradigma se instalar, ele será, como na história, também um paradigma em que a mulher terá sua plena individualidade vivida por ela mesma, isto é, perderá sua condição de escrava do homem e passará a ter um papel igual ao deste em todas as instituições, porque este paradigma deixará de ser guerreiro, e sim, pacífico. O mundo, para sobreviver, terá que ser, ao menos, andrógeno, isto é governado por homens e mulheres igualmente.

Há um trabalho das Nações Unidas chamado “Engendering Developement”, no qual se comparou o status da corrupção, relativamente ao status de homens e mulheres, e que mostrou que naqueles países em que houvesse maior participação das mulheres nos primeiros escalões, menor seria a corrupção. E isto era uma correlação significativa.

Ora, isto vem corroborar a tese central de nosso livro, em que as mulheres tendem a ser pacíficas e igualitárias porque biologicamente geram a vida e a alimentam, e os homens tendem a ser violentos e a gerar desigualdades. E aqui voltamos a nossa última pergunta: qual caminho você prefere?

* Rose Marie Muraro é uma das maiores intelectuais brasileiras. É física, escritora e editora, e publicou livros polêmicos, contestadores e inovadores dos valores sociais modernos. Também foi uma das pioneiras do movimento feminista no Brasil.

** Publicado originalmente no site Mercado Ético.