BNDES abre o caixa do tesouro para hidrelétrica de Belo Monte

O Ministério Público Federal já ajuizou 15 ações civis contra a hidrelétrica de Belo Monte, em construção no rio Xingu, no Pará. Seus argumentos sobre a inviabilidade econômica e socioambiental do empreendimento, que levaram o MPF a combater a construção da usina, não parecem ter impressionado a principal instituição de fomento do país.

Durante os próximos 30 dias, o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico Social pretende liberar 19,6 bilhões para o projeto, que já recebeu do BNDES, em duas parcelas, neste ano e em 2011, R$ 2,9 bilhões. O total do comprometimento, assim, é de R$ 22,5 bilhões. O montante representa 78% dos R$ 28,9 bilhões previstos para serem usados até tornar Belo Monte a terceira maior hidrelétrica do mundo, depois de Três Gargantas, na China, e Itaipu, no Paraná e no Paraguai.

Os títulos desta transação impressionam. Trata-se do maior empréstimo de toda história de 60 anos do banco. É três vezes maior do que a operação que ocupava até então o primeiro lugar no ranking do BNDES, os R$ 9,7 bilhões destinados à refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco. A usina do Xingu engolirá quase todos os recursos previstos –R$ 23,5 bilhões– para a área de infraestrutura nesse segmento, excluindo o metrô.

Os elementos de grandiosidade não param aí. Belo Monte é a maior obra em andamento no Brasil e a joia da coroa do PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento, transmitido por Lula a Dilma.

Com a aprovação do empréstimo, o governo dá o recado: contra todos os seus adversários e enfrentando atropelos pelo caminho, a enorme hidrelétrica continuará em andamento acelerado. Quer que a primeira das 24 gigantescas turbinas comece a gerar energia em fevereiro de 2015 e a última, em janeiro de 2019. Não por acaso, Belo Monte ganhou do governo federal o título de hidrelétrica estratégica, a primeira com esse tratamento no Brasil.

Principal item do Plano Decenal de Energia (2013/2022), Belo Monte, com seus 11,2 mil megawatts nominais, contribuirá –nos cálculos oficiais– com 33% da energia que será acrescida à capacidade brasileira de produção durante o período da motorização das suas máquinas, entre 2015 e 2019. Teria condições de atender à demanda de 18 milhões de residências e 60 milhões de pessoas, ou ao consumo de toda população das regiões Sul e Nordeste somadas.

Não surpreende que o BNDES, com uma carteira de negócios desse porte, tenha se tornado maior do que o Banco Mundial, sediado em Washington, algo “nunca antes” imaginável, como diria o ex-presidente Lula. Além dos milionários recursos do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), que estão à sua disposição, apesar da paradoxal relação, e da sua receita própria, o banco tem recebido crescentes aportes do tesouro nacional, uma preocupante novidade nos últimos tempos. A opinião pública parece não atentar para a gravidade desse fato.

Tanto dinheiro público chegou ao caixa do BNDES a pretexto de fortalecer o capitalismo brasileiro, que agora se multinacionaliza. Um dos focos das aplicações intensivas do banco é o controverso setor dos frigoríficos, alçado ao topo do ranking internacional pela pesada grua financeira estatal.

Com paquidérmicos compromissos de desencaixe de dinheiro, o BNDES tem sido cada vez mais socorrido pelo governo federal. É o que acontece no caso de Belo Monte.

Dos R$ 22,5 bilhões aprovados para a hidrelétrica, apenas R$ 9 bilhões são recursos próprios do banco, que não os aplicará diretamente: R$ 7 bilhões serão repassados através da Caixa Econômica Federal e R$ 2 bilhões por meio de um banco privado, o BTG Pactual. Os outros R$ 13,5 bilhões sairão do caixa do tesouro nacional, o que quer dizer dinheiro arrecadado através dos impostos federais – do distinto público, portanto.

É interessante a composição dessa transação. O BNDES recorreu às duas outras instituições financeiras, ao invés de fazer ele próprio, diretamente, o negócio, sob a alegação de risco de inadimplência. Se o tomador do dinheiro, que é o Consórcio Norte Energia, SPE (Sociedade de Propósito Específico) controlado por fundos e empresas estatais federais, além de sócios privados minoritários, não pagar o empréstimo, os intermediários responderão pelo calote. Naturalmente, cobrando o suficiente (e algo mais) para se resguardarem desse risco.

Já o dinheiro do cidadão, gerido pela União, terá aplicação direta pelo BNDES. Da nota divulgada pelo banco deduz-se que esta parte do negócio é imune à inadimplência. Provavelmente não pela inexistência de risco, o que é impossível nesse tipo de operação. Talvez porque, se o dinheiro não retornar, quem sofrerá será o erário, e o contribuinte, no fundo do seu bolso.

Esse foi o mesmo procedimento em relação aos empréstimos anteriores, conhecidos como empréstimo ponte, por anteciparem recursos por conta do contrato ainda a ser definido. O primeiro, de R$ 1,1 bilhão, foi assinado em 16 de junho de 2011, foi repassado pela CEF, enquanto o segundo, de 7 de fevereiro deste ano, teve o banco privado ABC como intermediário.

O orçamento da hidrelétrica de Belo Monte começou com a previsão de R$ 9 bilhões. Hoje está três vezes maior. Nem o “fator amazônico”, geralmente considerado complicador imprevisível em virtude das condições das regiões pioneiras, de fronteira, distantes e mais isoladas, nem a inflação ou os dados disponíveis sobre as obras em andamento, que já absorveram quase R$ 3 bilhões do banco em menos de dois anos, explicam esse reajuste. O investimento total já realizado seria de R$ 6 bilhões, segundo informação da Norte Energia.

É claro que a. Norte Energia precisa prestar explicações à opinião pública, ponto por ponto, sobre a duplicação do custo da usina em apenas dois anos, a partir do leilão da concessão de energia, em 2010.

Foi assim com a hidrelétrica de Tucuruí, no rio Tocantins, a quarta do mundo, com 8,2 mil MW. Ela começou a ser construída em 1975 e a primeira das 23 turbinas entrou em atividade em 1984. O orçamento era inicialmente de 2,1 bilhões de dólares. Chegou a US$ 7,5 bilhões por cálculos extraoficiais, numa época em que a moeda nacional estava desvalorizada. Mas talvez tenha ido além da marca de US$ 10 bilhões.

O precedente devia estimular a opinião pública a se acautelar, ao invés de se omitir, como se a parte mais sensível do corpo humano já não fosse mais o bolso. Menos táctil é o efeito sobre o meio ambiente e a população nativa. Mas ao assinar o contrato, as partes se prepararam para esses argumentos. Ao menos em tese.

As compensações e mitigações sociais previstas representam 11,2% do custo total da hidrelétrica. Esses R$ 3,2 bilhões são um investimento, recorde, tanto em termos proporcionais quanto absolutos, em matéria de procedimentos socioambientais. E haverá mais R$ 500 milhões para o programa de desenvolvimento a jusante da barragem.

O BNDES garante que cobrará relatórios periódicos da Norte Energia sobre a execução desses projetos, que garantiriam um selo de qualidade a Belo Monte. Como sempre acontece quando os documentos originais não são apresentados, essa garantia se baseia na credibilidade de quem a apresenta e na maior ou menor capacidade de checagem de quem a aceita. A usina do Xingu continua a caminhar sobre esse fio de lâmina.

Custo de Belo Monte já é de R$ 6 bilhões

Fonte da Norte Energia, detentora da concessão da hidrelétrica de Belo Monte, informou que já foram investidos cerca de 6 bilhões de reais nas obras da usina e que esse recurso “é todo proveniente dos dez sócios que formam a Norte Energia”. A informação colide com a divulgação feita pelo BNDES, de já haver liberado R$ 2,9 bilhões para a hidrelétrica.

O porta-voz disse ainda que o consórcio construtor, responsável pelas obras, não realiza qualquer tipo de negociação com a concessionária para a alteração dos orçamentos definidos. As obras, segundo a informação negada pelo porta-voz, teriam sido afetadas pelos prejuízos causados pelos manifestantes.

Apesar de ter sofrido duas paralisações desde que as obras começaram, o cronograma de implantação da hidrelétrica de Belo Monte não foi afetado. A última interrupção forçada, seguida de depredações nos canteiros de obras, no mês passado, foi a mais grave,

Cinco dos participantes das manifestações de protesto continuam presos na delegacia de polícia de Altamira. Outras 15 pessoas foram identificadas pela Polícia e deverão ser também indiciadas. Elas ainda estão foragidas.

O assessor da Norte Energia disse que o incidente não interferiu na negociação mantida pela empresa com a representação sindical dos trabalhadores, que foram retomadas logo depois.

No dia 28, o Consórcio Construtor Belo Monte emitiu uma nota para anunciar ter fechado acordo coletivo de trabalho com o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Pesada do Estado do Pará. A decisão foi aprovada em assembleias gerais, “em votação, pela maioria dos trabalhadores”, disse a nota, destacando a referência à votação. As assembleias foram realizadas simultaneamente nos três canteiros de obras de Belo Monte: sítios Belo Monte, Pimental e canais e diques.

“A aprovação das propostas encaminhadas pelo CCBM revela que a transparência, a seriedade e a civilidade no processo de negociação representam o melhor caminho para que se chegue a um bom termo e que, principalmente, os trabalhadores venham a ter as suas justas reivindicações atendidas”, proclamou a nota.

Agora é acompanhar os trabalhos para verificar se o prognóstico será cumprido.

ONGs ainda querem parar a hidrelétrica

Nove entidades solicitaram, no dia 28, ao Ministério Público Federal do Pará que proceda a uma ampla investigação sobre as operações do BNDES com o Consórcio Norte Energia S.A. (NESA). O levantamento deveria abranger os dois empréstimos ponte, de R$ 1,1 bilhão e R$ 1,8 bilhão, concedidos em junho de 2011 e fevereiro deste ano, e o contrato global de financiamento de R$ 22,5 bilhões, assinado na semana passada.

As entidades requereram a investigação de irregularidades e possíveis ilegalidades cometidas pelo BNDES na aprovação de dois empréstimos ponte para a Norte Energia, no valor total de R$ 3,9 bilhões. Apontaram ainda a ausência de análise e classificação de risco econômico e socioambiental e o descumprimento da legislação vigente sobre direitos humanos e trabalhistas, e de proteção ambiental.

No pedido, as organizações que o subscrevem solicitaram ao MPF investigação sobre o processo de análise e aprovação pelo BNDES do empréstimo principal de R$ 22.5 bilhões. Querem que seja verificado o cumprimento de obrigações formais, dentre as quais estão as diretrizes, critérios e demais compromissos do Protocolo de Intenções pela Responsabilidade Socioambiental, assinado em agosto de 2008; as resoluções que instituíram nova Política de Responsabilidade Social e Ambiental e nova Política Socioambiental do Sistema BNDES, “inclusive com o devido esclarecimento pelo banco sobre a inexistência de guia de salvaguardas socioambientais para o setor de hidrelétricos; critérios e métodos utilizados na análise de viabilidade econômica da usina, especialmente aos custos de construção, produção e venda de energia, e custos de mitigação e compensação de impactos socioambientais – assim como riscos de prejuízos para os cofres públicos e o contribuinte brasileiro”, análise de viabilidade econômica e de classificação de risco, inclusive no que se refere ao patrimônio referencial do BNDES e a necessidade de utilizar bancos repassadores; análises realizadas pelo BNDES sobre as mais de 50 ações ajuizadas sobre ilegalidades.

As ONGs querem que o MPF adote “medidas urgentes” para assegurar que nenhum repasse de recursos do empréstimo principal seja efetuado para o consórcio “antes que todas as pendências jurídicas e demais obrigações formais dos empreendedores e outros responsáveis por Belo Monte sejam sanadas, em particular aquelas que se referem às responsabilidades do BNDES, Norte Energia, S.A., Ibama e Funai”. Considerando “a gravidade da situação atual e cenários futuros de Belo Monte”, solicitaram ainda “o máximo de atenção e empenho no atendimento das medidas urgentes solicitadas”.

A petição é subscrita pelo Movimento Xingu Vivo para Sempre, Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos, Comitê Metropolitano Xingu Vivo para Sempre, Justiça Global, Rede Justiça nos Trilhos, Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul/PACS, Núcleo Amigos da Terra Brasil, Instituto Mais Democracia e Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA).

** Publicado originalmente no site Adital.