Brics, uma brecha no ordenamento financeiro do Ocidente

Shyam Saran. Foto: Cortesia do autor
Shyam Saran. Foto: Cortesia do autor

Nova Délhi, Índia, agosto/2014 – A Sexta Cúpula dos países Brics, realizada na cidade brasileira de Fortaleza, no Estado do Ceará, no dia 15 de julho, marca a transição qualitativa de uma agrupação baseada em preocupações compartilhadas para uma comunidade de interesses.

Desde o início de 2009, os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) foram considerados como uma associação mais simbólica do que efetiva de influentes economias emergentes com escassos interesses convergentes, que não pareciam capazes de construir estruturas de governança alternativa, além de coincidir em sua oposição ao persistente domínio do Ocidente sobre a economia e as finanças mundiais.

Entretanto, depois do longamente esperado anúncio da criação do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), dotado de US$ 50 bilhões de capital, e do Acordo de Reservas de Contingência (ARC), que chega a US$ 100 bilhões, abriu-se uma brecha no monopólio estabelecido pelas instituições de Bretton Woods, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).

Mesmo que somente após um longo período o NBD e o ARC poderão ser considerados verossímeis e reconhecidos como instituições financeiras internacionais, esse é precisamente o objetivo.

Os líderes do Brics deixaram a porta aberta para a entrada de outros sócios, mas manterão uma participação não inferior a 55%. E tiveram a precaução de declarar que as novas instituições serão complementares do Banco Mundial e do FMI.

Porém, o surgimento de uma fonte alternativa de financiamento, cujas normas diferem das que orientam as instituições estabelecidas, está destinada a alterar de maneira irreversível o quadro financeiro global.

As iniciativas do grupo Brics se originaram na crescente frustração das nações emergentes diante do fato de os países industrializados, que controlam o Banco Mundial e o FMI, rechaçarem sistematicamente uma modificação de suas estruturas que pudesse refletir, ainda que modestamente, o ascendente peso econômico dos países em desenvolvimento.

Por isso, é previsível que, quanto mais demorar a reestruturação, mais rapidamente se consolidarão as novas instituições. Justamente, essa reticência influiu para ajudar a resolver algumas discrepâncias entre os Brics sobre a estrutura e o governo do NBD e do ARC.

A criação das duas instituições se deve em grande parte à energia e à pressão por parte da China, junto com seus esforços para a conciliação com as posições dos outros membros, em particular a Índia.

No caso da Rússia, seu entusiasmo para participar aumentou depois de sua expulsão do Grupo dos Oito (G-8) países ricos e das sanções impostas pelo Ocidente por ter anexado a Crimeia.

O ativismo da China no contexto do Brics é coerente com diversas iniciativas paralelas promovidas ou iniciadas por Pequim:

1. A proposta para a criação de um Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB), que financiaria projetos de infraestrutura e conectividade na região, para reviver a lendária Rota da Seda por terra e por mar, a leste e oeste do território chinês. O paralelismo com o NBD chama a atenção.

2. A consolidação da Iniciativa de Multilateralização de Chiang Mai (CMIM) e sua associada Organização Asiática para a Pesquisa Multilateral (Amro), nas quais participam a Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean) mais China, Japão e Coreia do Sul (Asean+3). A CMIM dispõe de fundos no valor de US$ 240 bilhões para ajuda a países membros em dificuldades em suas balanças de pagamentos, semelhante ao ACR criado pelos Brics.

3. Além da CMIM e da Amro, há outras iniciativas em curso no contexto da Asean+3 para desenvolver um mercado de bônus asiáticos que captaria recursos para investimentos regionais por meio de bônus nas moedas locais.

Essas atividades acontecem enquanto se registra a expansão do mercado de bônus em divisa chinesa, que já é uma fonte importante de financiamento empresarial e, portanto, reduz a dependência de bônus denominados em euros ou dólares. O NBD pode aproveitar esse emergente mercado para engrossar seus próprios recursos.

A partir dessa ampla perspectiva, pode-se avaliar o significado das decisões adotadas em Fortaleza.

Ao impulsionar diversas iniciativas paralelas, a China objetiva criar um sistema financeiro alternativo em que exercerá a liderança. O dilema para os outros países emergentes consiste no fato de não haver opções dignas de consideração, já que as nações ocidentais não estão dispostas a levar em conta suas aspirações.

A cúpula de Fortaleza implica o princípio do fim do ordenamento econômico e financeiro implantado no segundo pós-guerra pelas potências ocidentais. As instituições estabelecidas terão agora que compartilhar o cenário com os recém-chegados e serão forçadas a modificar suas normas para competir com eles.

O promotor principal da construção de uma rede rival das instituições financeiras estabelecidas é a China, e na medida em que os diferentes edifícios que está construindo formem uma nova arquitetura financeira global, aumentará seu perfil e sua influência mundial

Estamos pensando no futuro, mas a tendência é inequívoca. Envolverde/IPS

* Shyam Saran, ex-secretário de Relações Exteriores da Índia, é presidente do Conselho Nacional de Segurança da Índia.