A grande conservação

World Economic Forum, Davos, 2012. Sob a inspiração da obra magna de Karl Polanyi, os poderosos do planeta adotaram A Grande Transformação como tema da reunião ocorrida na última semana de janeiro. No mesmo período, os que pretendem assumir o ponto de vista dos 99% reuniram-se em Porto Alegre, no Fórum Social Mundial, para debater a Crise do Capitalismo Neoliberal e suas consequências sobre a vida dos danados da Terra.

Já nas primeiras tertúlias de Davos, o ministro das Finanças da Alemanha, o senhor Wolfgang Schaueble, substituiu as promessas da Grande Transformação pelas mesquinharias da Grande Conservação. Ele disparou contra os pródigos da periferia europeia: “Se você gastou dinheiro que não tinha com empréstimos dos outros, você vai ter de pagar a conta, e isto é um incentivo errado para o funcionamento da economia de mercado”. Essa “abertura de diálogo” servida com eisbein, batata e chucrute deixou claro que os alemães se opõem de forma radical à emissão de eurobônus para reduzir o custo da dívida dos países submetidos à desconfiança e à pressão dos mercados financeiros.

Gente experiente e sensata garante que os alemães não são conhecidos por sua flexibilidade em matéria fiscal e monetária. A diretora-gerente do FMI, Cristine Lagarde, partilha essa opinião e não hesitou em evocar a hiperinflação do início dos anos 20 do século passado para justificar os temores, tremores e calafrios que acometem os valquírios diante de sugestões consideradas “perigosas”. O fantasma da hiperinflação ainda ronda a Germânia. Lagarde não é imperita no diagnóstico da alma alemã, mas nem por isso foi certeira na avaliação da síndrome do pânico inflacionário.

Nos anos 1920, submetida ao tormento das reparações e da hiperinflação, a Alemanha balançou entre a prodigalidade e a austeridade, ambas insensatas. Depois da estabilização de 1924, o país foi engolfado pela torrente de dinheiro externo que jorrava dos bancos norte-americanos.

Com a grana abundante, entregaram-se à construção de ginásios esportivos, fontes luminosas, obras de infraestrutura, empreendimentos públicos classificados como non tradeables, ou seja, não sujeitos aos desafios do comércio exterior e, portanto, incapazes de gerar um mísero centavo de dólar. (Tais proezas, o leitor atilado há de perceber, antecipam as façanhas recentes dos periféricos europeus: financiados pelos bancos alemães e franceses, fomentaram a bolha imobiliária e gastaram generosamente na aquisição de BMWs e outros confortos produzidos pelos austeros teutônicos. Em 2010, já deflagrada a crise, 9,8% das exportações alemãs foram para Espanha e Itália ante 6,9% para os Estados Unidos e 4,9% para a China.)

Volto aos fantasmas. Registra Frederico Mazzuchelli em seu indispensável Anos de Chumbo: “Foi a lógica dos capitais privados (sobretudo norte-americanos) que afastou a Alemanha da deflação entre 1924 e 1928. Seria essa mesma lógica, contudo, que ia induzir o país a finalmente abraçar a deflação a partir de 1929, quando os sinais da recessão já eram evidentes. Os resultados foram desastrosos”.

Eleito chanceler em 1930, o católico Bruning entendia que era indispensável “permanecer no padrão-ouro e repudiar qualquer experimento que pudesse ressuscitar o fantasma da hiperinflação”. A ilusão da austeridade levou a economia alemã às agruras de uma depressão catastrófica. Em 1933, o desemprego chegou a mais de 40% da população economicamente ativa. As consequências sociais e políticas de tal cometimento são de conhecimento do caro leitor de CartaCapital.

O filósofo Jürgen Habermas disse que para os alemães “o passado não passa”. As atitudes inflexíveis das autoridades de Berlim no tratamento da crise do euro sugerem que os fantasmas do passado continuam a assombrar o mundo dos vivos. Outro alemão ilustre escreveu frases que se ajustam perfeitamente à Grande Conservação da senhora Merkel. “A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar a si e as coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nestes períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestados os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar a nova cena do mundo nesse disfarce tradicional e nessa linguagem emprestada.”

A reunião de Davos evocou a Grande Transformação de Karl Polanyi, mas terminou na Grande Capitulação da senhora Merkel aos ditames da Grande Finança.

* Publicado originalmente no site Carta Capital.