A literatura infantil barrada

Recém-premiada com o Hans Christian Andersen, a argentina María Teresa Andruetto critica fraca circulação de autores na América Latina. Foto: Latinstock

Terceiro nome da América Latina a receber o Prêmio Hans Christian Andersen, o Nobel da literatura infantojuvenil, María Teresa Andruetto começa apenas agora a ser descoberta no País. Apenas mais uma amostra, afirma ela, dos empecilhos à circulação de livros e autores contemporâneos na América Latina. “O intercâmbio entre nossos países não ocorre de forma fluída, pois muitas vezes as próprias editoras impedem a circulação de livros, fazendo com que os autores não sejam lidos em países vizinhos.”

Em entrevista a Carta Fundamental, a autora, cofundadora do Centro de Difusão e Investigação de Literatura Infantil e Juvenil, em Córdoba, na Argentina, e dona de uma larga experiência com jovens leitores, elege a formação de professores leitores e de acervos bem montados como os pilares para o fomento da leitura entre os mais jovens.

“A escola é o lugar onde a brecha entre leitores e não leitores (reflexo de outras brechas sociais) pode ser minimizada.” Dona de uma literatura elogiada por ser de fácil identificação com públicos de diferentes faixas etárias, a argentina está lançando seu primeiro livro no País, A Menina, o Coração e a Casa, pela Editora Global.

O feito, conta, deu-se por iniciativa da escritora brasileira Marina Colasanti, que se prontificou para verter a bela história de uma garota que, todos os domingos, vai com o pai visitar a mãe e o irmão, portador de síndrome de Down, e das complexas relações familiares que aí emergem. Ainda este ano, María Teresa planeja a publicação no Brasil de um volume de ensaios.

Carta Fundamental: O que muda na vida de um escritor após um prêmio como o Hans Christian Andersen?

María Teresa Andruetto: Acredito que o principal impacto se dará na circulação de meus livros, mais do que na minha obra em si. Já estão se abrindo muitas portas para traduções e, consequentemente, para novos leitores.

CF: A senhora é a terceira escritora da América Latina a receber o título. Que impacto crê
que ele pode ter para a produção da região?

MTA: Acredito que o prêmio é dado em consonância com o momento que vive a literatura infantojuvenil argentina, em franco crescimento editorial – e falo do meu país, pois é o que domino melhor. Visto daqui, me parece que não se trata de uma ocorrência isolada. Do mesmo modo que a maior visibilidade de nomes brasileiros esplêndidos, como Ana Maria Machado, Lygia Bojunga, Marina Colasanti, Bartolomeu Campos de Queirós, Ângela Lago, Nilma Lacerda, para citar alguns, expressa o florescimento da literatura brasileira para crianças e jovens, que tem se tornado cada vez mais admirada por nós.

CF: A senhora cita Ana Maria Machado e Lygia Bojunga, as duas ganhadoras latinas anteriores, ambas brasileiras. Além da titulação com o Andersen, que outras semelhanças vê entre a sua produção e a delas?
MTA: São duas escritoras que li com atenção e que acompanho com grande prazer como leitora. Quanto às semelhanças ou parentescos de escritura, porém, sinto que certas zonas da minha obra são mais próximas da de Marina Colasanti, cujos contos e poemas me fascinam.

CF: Colasanti, que é a responsável pela tradução de A Menina, o Coração e a Casa. Há planos de lançar outras obras no País?

MTA: Sim, esta será a primeira e devo isso ao entusiasmo de Marina Colasanti, que foi quem procurou o editor se oferecendo para fazer a tradução. Imagine ser traduzida por ela. Para mim, isso também é um prêmio! Também deve sair este ano meu livro de ensaios, Hacia una Literatura sin Adjetivos (Para uma Literatura sem Adjetivos, em tradução livre). E estamos negociando a edição de minha novela Stefano, de forma que estou muito honrada com o interesse das editoras brasileiras.

CF: Como a senhora vê o intercâmbio de livros e autores na América Latina? Os leitores têm acesso à produção contemporânea dos países vizinhos?

MTA: O intercâmbio entre nossos países não ocorre de forma fluida, realmente, pois muitas vezes as próprias editoras impedem a circulação de livros, fazendo com que os autores não sejam lidos em países vizinhos ou o sejam apenas se forem antes reconhecidos em países centrais. É preciso fazer tudo o que estiver ao nosso alcance no campo da literatura para acabar com esse modelo de comportamento cultural e editorial. De minha parte, lamento que a literatura brasileira seja tão pouco traduzida na Argentina.

CF: Segundo dados do Centro Regional para o Fomento do Livro na América Latina e Caribe, 45% dos argentinos se dizem não leitores, uma cifra similar à brasileira, que é de 50%. O que pode explicar esse aparente desinteresse dos latino-americanos?

MTA: A formação de leitores como um todo tem a ver com questões econômicas, de circulação e de acesso aos livros, da presença do livro enquanto objeto na vida cotidiana, e tem a ver, sobretudo, com a presença de bons livros e bons mediadores de leitura nas escolas, que é o lugar onde a brecha entre leitores e não leitores (reflexo de outras brechas sociais) pode ser minimizada. Daí a necessidade de formação de professores leitores que possam contribuir para a formação de novos leitores e também de acervos de qualidade. São os dois pilares da construção de leitores novos e mais assíduos.

CF: Caso essas tendências de leitura continuem como estão, que consequências podem trazer para a América Latina?

MTA: Uma sociedade leitora é, sem dúvida, mais crítica, mais reflexiva e pensante. Também está mais aberta a novas experiências, porque um livro é uma porta a outras vivências distintas da nossa, um modo de ver o mundo pelos olhos dos outros, como dizia Darcy Ribeiro.

CF: O mesmo estudo confirma a visão de que os argentinos leem mais por prazer (70%) que os brasileiros (49%). Há alguma lição que podemos tirar da experiência de vocês de fomento à leitura?

MTA: Não conhecia esses números, que são sempre relativos, já que nem sempre podemos separar quando lemos por prazer de quando lemos por necessidade ou de quando, ao mesmo tempo, o fazemos pelos dois motivos. Por outro lado, não acredito que possamos dar lições para alcançar uma cultura letrada. Em primeiro lugar, porque também falta muito a ser feito na Argentina. Não conheço a fundo a realidade brasileira, mas imagino que aí, como em meu país, a leitura não esteja presente do mesmo modo em todas as regiões, em todas as faixas sociais ou mesmo de uma geração para a outra. Por isso, por mais que os números ajudem a compreender algumas questões, é necessário interpretar essas cifras gerais (que agrupam de forma rasteira um conjunto de habitantes de um país) dentro da realidade de cada região, setor social, cidade…

CF: A senhora e muitos outros estudiosos já definiram a escola como campo central para a construção de leitores. Contudo, a atividade é muitas vezes deixada de lado em nome de outros conteúdos. Qual é o papel da literatura na sala de aula?

MTA: Uma das nossas maiores dificuldades é justamente essa. É exigido que os professores resolvam tantos problemas e deem conta de tantos conteúdos que é comum ouvirmos que “não sobra tempo” para a formação de novos leitores. Um ponto importante a ser discutido é que o ensino da língua, que de fato demanda tempo e é indispensável, não pode tomar lugar do fomento da leitura, muito ligado à literatura.

CF: A escola basta para a formação de leitores para a vida?

MTA: Sim, tem esse potencial. Não sei se o alcança ou se basta, mas, independentemente das diferenças entre as realidades de cada região, a escola é o espaço de circulação de saberes mais democrático que temos. Todos vão à escola e todos podem ter contato com a literatura ali, mesmo que não o tenham tido em nenhum outro lugar. A escola é, como dizia Graciela Montes, grande escritora e ensaísta, o grande ponto de encontro entre livros e novos leitores.

CF: Sendo assim, qual a melhor maneira de ensinar a ler?

MTA: Uma questão é ensinar a ler, outra bem distinta é converter o aluno em leitor. Para isso, é preciso qualidade e diversidade de livros, bem como de professores leitores, bibliotecas e locais onde os leitores em formação tenham acesso aos livros.

CF: É comum ler, a respeito da sua obra, que é muito apreciada tanto pelo público infantojuvenil como pelo adulto. Em que momento do seu processo criativo entra na equação o público-alvo daquela obra?

MTA: Quando o destinatário é menor, o rótulo “infantil” é mais notório. À medida que ele cresce e lê mais, porém, se diluem as diferenças entre o que é “para crianças”, “para jovens” ou “para adultos”. Há casos em que a edição (a diagramação, as ilustrações, o tipo de papel etc.) é o grande determinante do público-alvo. Em outros, o mediador de leitura é quem julga. Quando escrevo, de fato não me preocupo com a idade do leitor final, mas, antes, penso no livro em si, no caminho da escritura.

CF: Entre os escritores clássicos de literatura infantojuvenil, quais a senhora destaca como mais marcantes em sua formação?

MTA: Cada língua e cada país têm seus fundadores e, como vocês têm Monteiro Lobato, temos María Elena Walsh, Javier Villafañe e Laura Devetach, para citar alguns dos mais importantes autores infantojuvenis argentinos.

* Publicado originalmente no site da Carta Capital.