A universidade e a polícia que não queremos

Em meio a ocupações de prédios públicos, protestos, violência policial e distorções midiáticas, os debates sobre o convênio entre a USP e a Polícia Militar acabam esvaziados e deixam de lado aspectos estruturais essenciais.

Manifestação dos estudantes da USP contra o convênio da universidade com a Polícia Militar - centro de São Paulo - 11/11/ 2011. Foto: Aline Scarso/Brasil de Fato

No dia 8 de novembro, a Polícia Militar (PM) entrou no campus Butantã da Universidade de São Paulo (USP) com o objetivo de cumprir o mandado de reintegração de posse do prédio da Reitoria que havia sido invadido por um grupo de estudantes, os quais protestavam contra a presença da PM no campus. A abordagem policial a três estudantes com um cigarro de maconha alguns dias antes foi mero estopim para os protestos e, infelizmente, acabou por ocasionar julgamentos rasos que tomaram como representativa de todo o movimento estudantil a ação de alguns grupos; ou que consideraram que os questionamentos à PM seriam fruto de um anseio pelo livre consumo de drogas dentro do campus.

No entanto, muito antes da onda de protestos que tem sido noticiada, estudantes, funcionários e professores já questionavam se o convênio entre USP e PM, firmado em setembro após a morte de um estudante dentro do campus, seria a real e mais efetiva solução para os problemas de segurança da USP. E mais, muito antes de tudo isso ser notícia e da triste morte do aluno, já se queixavam sobre o tratamento dado à questão da segurança na USP e no Brasil. No caso da Universidade, reivindicavam um aumento do efetivo da Guarda Universitária, melhor iluminação, maior circulação de ônibus noturnos e, dentre outras ações, maior utilização dos ermos espaços do campus pela comunidade.

Mas, em meio a numerosas e distorcidas notícias, em uma sociedade permanentemente tensionada, os debates sobre o convênio entre a USP e a PM se esvaziaram; e questionamentos relativos à estrutura de ambas as instituições foram sobrepostos por insuficientes e estigmatizadas análises circunstanciais.

Foto: Aline Scarso/Brasil de Fato

Além dos “ideológicos”

Concomitantemente à ação de reintegração de posse do prédio da Reitoria, no começo de novembro, o efetivo da PM cercou todos os oito blocos do Conjunto Residencial da USP (Crusp), localizado próximo à Reitoria, mas sem nenhuma ligação ao objetivo do mandado. A ação foi notícia em alguns meios de comunicação, mas não teve a mesma publicidade que outros eventos relativos ao tema(1). Além de impedir, com esse cerco, que moradores saíssem para suas atividades acadêmicas e profissionais, a polícia disparava balas de borracha em direção ao chão quando alguém se aproximava do perímetro estabelecido. Mais do que isso, bombas de gás lacrimogêneo foram lançadas nos andares térreos – os quais são residência prioritária para moradores com filhos – em quantidade suficiente para que a fumaça ascendesse aos pisos superiores.

Atesta-se o quão problemáticos são o preparo e a prática dessa polícia que acabou por violar direitos fundamentais dos moradores do Crusp, cerceando sua liberdade de ir e vir, e atentando contra a saúde dos mesmos ao lançar tantas bombas de gás lacrimogêneo. Optaram por se valer de balas de borracha quando dentro da Universidade. Fora da USP, no entanto, num bairro pobre ou favela, não podemos estar certos que apenas ostentariam o pesado armamento que dispõem.

E não podemos mesmo. Relatórios da Ouvidoria da própria Polícia de São Paulo apontam que mais de uma pessoa foi morta por dia em São Paulo por um policial militar entre 2005 e 2009, o que corresponde a um número de mortes 6,3% superior às cometidas por todas as polícias dos Estados Unidos juntas(2). As estatísticas são inúmeras e só atestam que a estrutura e a cultura organizacional da PM – as quais remontam ao regime militar – sustentam e cultivam ações violentas por parte de seus agentes, que, mal remunerados, são treinados para desumanizarem a si mesmos e àqueles com quem interagem em suas missões.

O questionamento, dentro e fora da USP, à instituição e à atuação da Polícia Militar não se restringe e nem se restringirá, portanto, aos “ideológicos” – como tem afirmado o reitor da USP, João Grandino Rodas(3). O compromisso real com os direitos humanos é imperativo e, no caso dos agentes de Estado, é fundamental. Na imprensa e na Universidade muito se discute e se estuda sobre o tema. Nos cursos de direito e relações internacionais, especialmente, esta pauta é recorrente. Quando há alguma violação em um país distante, não há grandes dificuldades para fazer uma crítica a qualquer abuso de autoridade. Por que, então, é tão difícil fazer uma crítica semelhante quando essas violações ocorrem no quintal de nossas salas de aula? Por que os grandes meios de comunicação e dirigentes da Universidade omitem ou relativizam os acontecimentos?

A despeito das reflexões até aqui desenvolvidas e tantas outras questões relevantes, pouco se fala sobre a atuação da PM. O argumento central na defesa do convênio entre esta e a USP é o de que não se pode tratar a Cidade Universitária como algo que está fora da cidade de São Paulo. Este argumento é compartilhado pelo governo do Estado de São Paulo e a própria Reitoria; afinal, a USP faz parte do território paulistano, paulista e brasileiro. Mesmo sendo uma autarquia, a Universidade e seus estudantes não estão “acima da lei” – como pontua o governador Geraldo Alckmin(4).

Autonomia seletiva

Se a Cidade Universitária está sujeita a todas as leis municipais, estaduais e nacionais e deve ser tratada como qualquer outra parte do território, por que ela se fecha – material e intelectualmente – ao resto da sociedade? A mesma Reitoria, que agora afirma a não soberania da USP, teve o poder, há alguns anos, de vetar a construção de duas estações do metrô, que no projeto inicial da Linha 4-Amarela estariam em localidades de interesse público, como em proximidade ao Hospital Universitário localizado no interior do campus Butantã da USP.

A USP virou uma terra de autonomia seletiva. Na hora em que convém a determinados interesses, há sim bastante autonomia para afastar a “gente diferenciada” que viria de metrô para dentro dos muros da Universidade. Mas na hora em que não interessa, a autonomia some e “o campus é parte da cidade”. O discurso da segurança serve ora para defender o segregacionismo, ora para defender a integração, mesmo em casos que evidentemente contrariam o interesse público e a função social da Universidade.

Seria realmente desejável que os que defendem a integração da Cidade Universitária por meio do convênio com a PM fizessem-no em tudo mais. Isto porque o campus da USP não deixará de ser uma “ilha” por causa de um convênio com a polícia. Deixará de sê-lo no dia em que não for hostil aos que não possuem carteirinha de identificação de aluno, funcionário ou professor. Deixará de sê-lo quando o Jardim São Remo, comunidade pobre localizada ao lado da USP, deixar de ser visto como antro de criminalidade ou fonte de mão de obra para os serviços terceirizados da Universidade, e seus moradores passarem a ter seu direito sobre aquele espaço reconhecido, assim como qualquer outro cidadão, e possam interagir com a universidade de maneira franca e ser, inclusive, parte da USP. Afinal, o sentido da autonomia é justamente possibilitar que a Universidade se afirme enquanto bem público de maneira independente às intempéries estatais.

A USP deixará de ser uma “ilha”, acima de tudo, quando o conhecimento lá produzido não atender apenas às demandas do capital privado – o que é legítimo, mas de modo algum suficiente. O papel da Universidade deve superar o ensino e a pesquisa, uma exigência estatutária da própria USP, que se sustentaria sobre o tripé ensino, pesquisa e extensão. Sendo esta última sustentáculo compreendido como o diálogo horizontal entre o conhecimento universitário e o restante da sociedade e seus saberes, é no mínimo contraditório impedir intercâmbios físicos e intelectuais, ainda mais com comunidades tão próximas como a já mencionada São Remo.

Mais do que uma questão de espaço e jurisdição, está em debate, portanto, o caráter público da USP. É preciso desvincular as discussões recentes de casos pontuais e associá-las a algo muito maior. No limite, as principais discussões não devem ser o convênio entre USP e PM em si, mas a maneira como este se deu e como são tomadas todas as decisões relevantes da política universitária, dentre as quais este convênio é só mais uma; e a maneira como a PM se estrutura e atua em todo o país.

“Estruturas non gratas

Recentemente, a Congregação da Faculdade de Direito da USP declarou o reitor João Grandino Rodas “persona non grata”, em face dos problemas incontestáveis de suas gestões enquanto diretor da Faculdade de Direito e agora como reitor. Este é, sem dúvida, um passo importante, mas é fundamental entendermos que o reitor, que está sob investigação do Ministério Público, encontrou na estrutura da própria Universidade as possibilidades para assim atuar. Mais do que uma “persona non grata”, há na USP toda uma “estrutura non grata”.

Ao contrário do que afirma a Reitoria, o convênio USP-PM não foi decidido por uma “ampla maioria”, simplesmente porque nenhuma decisão importante na USP é tomada de maneira democrática. Novamente reina a autonomia seletiva: a Universidade não está acima da lei quando se trata de polícia, mas segue desrespeitando determinações de leis federais, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, no que tange aos seus processos deliberativos. Não à toa, a Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social da capital instaurou, neste ano, um processo para apurar irregularidades na eleição da Reitoria e na disposição dos assentos dos docentes em órgãos colegiados constituintes do colégio eleitoral.

Para se ter uma ideia, a eleição para reitor na USP, em sua etapa mais ampla (ou menos restritiva), possui um colégio eleitoral que corresponde a menos de 2% da comunidade universitária, que elege uma lista com oito candidatos. Na etapa seguinte, dessa vez com cerca de apenas 0,3% da comunidade da USP, esta lista é reduzida a três nomes, que são encaminhados ao governador do Estado de São Paulo, o qual escolhe entre eles o novo reitor. Fica a pergunta: onde estão a autonomia e a democracia nesse processo? As instituições USP e PM parecem precisar de “aulas de democracia”. É curioso que o governador do Estado de São Paulo tenha recomendado tais aulas somente aos estudantes da universidade(5).

Não é à toa que, juntamente ao questionamento à Polícia Militar, está entre as pautas do movimento estudantil a demanda por mais democracia na estrutura da própria Universidade. Isto porque a estrutura decisória na qual o convênio de segurança foi firmado já é em si problemática. O acordo foi aprovado pelo Conselho Gestor do Campus da Capital, órgão ainda mais restrito do que o Conselho Universitário – principal órgão deliberativo da USP e pelo qual o convênio nunca passou – e cuja representatividade de alunos, funcionários e até mesmo dos professores que não ocupem cargos burocráticos de destaque é ínfima. Além disso, debater a estrutura decisória da USP se mostra fundamental em outras questões, como no caso dos processos administrativos contra os estudantes, que pelo regimento disciplinar de 1972(6) são instituídos e usados como forma de repressão e controle político.

Advêm do mesmo problemático engenho institucional as iniciativas que ilham o ensino e a pesquisa desenvolvidos dentro da USP, na qual os cursos pagos e os convênios com grandes empresas são as únicas formas de diálogo com a sociedade. Será que nenhum dos tantos núcleos de pesquisa e extensão da USP(7) – ou mesmo estudantes, professores e funcionários –, que direta ou indiretamente debatem a questão da segurança, criminalidade e organização do espaço, não produziram nenhum material útil à problemática do convênio? Ou será que sequer foram considerados na aprovação do mesmo? Não fosse seu aparato institucional-burocrático tão antidemocrático e arcaico, a USP talvez estivesse mais permeável à sociedade como um todo e a si mesma; e quem sabe se configuraria, inclusive, como espaço de proposição de novas práticas para o factual problema da segurança.

Enquanto a “maior Universidade da América Latina” apresentar dispositivos regimentais do período da ditadura militar e estiver isolada da sociedade física e intelectualmente, e a Polícia Militar paulista ostentar em seu brasão uma estrela referente à Revolução de Março de 1964(8), o debate não poderá se restringir a elementos conjunturais. Não se trata de três estudantes e um cigarro de maconha. Não se trata de um movimento de ideológicos. Tampouco esta é uma questão nova. Se agora o tema está em todos os jornais, caberia aproveitar a oportunidade para ampliar o debate, pois segurança, isto é consenso, todos queremos. É chegado o momento de reconhecer que ambas, USP e PM, apresentam “estruturas non gratas” que devem ser debatidas e, no mínimo, modificadas. Certamente, não é essa a Universidade e nem essa a polícia que queremos.

Notas

(1) Recomendamos o relato de um estudante e morador do Crusp, intitulado Tratamento Especial. Disponível aqui.

(2) Em cinco anos, PM de São Paulo mata mais que todas as polícias dos EUA juntas. Disponível aqui.

(3) Só os “ideológicos” serão contra PM no campus, diz reitor da USP. Disponível aqui.

(4) Ninguém está acima da lei, diz Alckmin sobre conflito na USP. Disponível aqui.

(5) Para Alckmin, estudantes precisam de “aula de democracia”. Disponível aqui.

(6) O reitor à época era Gama e Silva, ministro da Justiça do regime militar que anunciou o AI-5.

(7) Destacamos, por exemplo, o Núcleo de Estudos da Violência (NEV) e o Núcleo de Consciência Negra (NCN), que possuem, dentre tantos outros, grande acúmulo sobre o tema.

(8) O brasão da Polícia Militar paulista possui 18 estrelas representativas dos marcos históricos da corporação, que englobam eventos como a campanha militar a Canudos e o referido golpe de 1964, dentre outros.

* Leonardo Calderoni e Pedro Charbel são estudantes de Relações Internacionais da USP.

** Publicado originalmnete no site Le Monde Diplomatique Brasil.