Acordos regionais não substituem o sistema mundial de comércio

Roberto Azevêdo, diretor-geral da OMC. Foto: Organização Mundial do Comércio
Roberto Azevêdo, diretor-geral da OMC. Foto: Organização Mundial do Comércio

Genebra, Suíça, outubro/20/14 – Os tratados regionais de comércio se multiplicaram nos anos recentes e a Organização Mundial do Comércio (OMC) registra que  chegam a 253 os que estão atualmente em vigor.

Não se trata, por certo, de um novo fenômeno. Os tratados regionais precedem o sistema multilateral porque, de certo modo, foram as sementes do Acordo Geral sobre Tarifas Alfandegárias e Comércio (GATT). Criado em 1947, o GATT foi substituído em 1994 pela OMC.

Essas iniciativas são importantes, pois coexistem com o sistema multilateral e podem contribuir para levantar o edifício das normas comerciais mundiais e a liberalização do comércio. Mas, naturalmente, as coisas mudaram nos últimos anos. Os tratados regionais aumentaram com muito mais rapidez desde que foi criada a OMC, em comparação com os dias do GATT. E esses acordos, além de mais numerosos, são cada vez mais complexos.

Embora mais de 80% dos acordos sejam bilaterais, a cada dia vemos acordos regionais de maior amplitude. E também vemos mais acordos entre países de diferentes regiões, do que entre vizinhos. Além disso, vemos que muitos mais países em desenvolvimento negociam tratados regionais.

Essa proliferação de tratados, cada um com seu próprio conjunto de normas, foi batizada de “bagunça de acordos comerciais”, no sentido de que vemos um aumento considerável do nível de complexidade dos acordos e das relações entre eles. Na maioria dos acordos atuais, são contraídos compromissos mais profundos e amplos, e se foi além dos entendimentos relativos unicamente ao acesso aos mercados para as mercadorias.

No caso de algumas questões, como o acesso aos mercados para as mercadorias e os serviços, alguns acordos dão aos seus participantes um nível maior de acesso aos mercados do que o existente no contexto da OMC. Outra tendência observada nos últimos anos é a de reunir vários acordos regionais existentes, nas denominadas negociações “megarregionais”.

Embora continue a tendência de se negociar novos acordos regionais, a liberalização do comércio em nível bilateral ou regional é só uma parte do panorama. Com se diz muitas vezes, essas iniciativas são importantes para o sistema multilateral de comércio, mas não podem substituí-lo. De fato, existem muitas questões importantes que só podem ser abordadas eficientemente no contexto multilateral e por condução da OMC.

A facilitação do comércio foi negociada satisfatoriamente na OMC, porque carece de sentido econômico reduzir a papelada ou simplificar os procedimentos na fronteira entre um ou dois países. Quando se faz para um país, na prática se faz para todos.

Não é possível liberalizar eficientemente a regulamentação relativa aos serviços financeiros ou às telecomunicações para um só interlocutor comercial, de maneira que é preferível negociar mundialmente os acordos em matéria de serviços dentro da OMC. Tampouco é possível abordar por meio de acordos bilaterais as subvenções para a agricultura ou a pesca.

As disciplinas sobre medidas comerciais corretivas, com aplicação de direitos antidumping e compensatórios, não podem ir muito além das normas da OMC.

O certo é que pouquíssimos dos grandes desafios que enfrenta hoje o comércio mundial podem ser resolvidos fora do sistema multilateral. Trata-se de problemas mundiais que exigem soluções mundiais.

Outro aspecto importante, deixando de lado o conteúdo dos acordos, é seu âmbito geográfico. Os acordos regionais costumam excluir os países menores e vulneráveis. Isso é causa de profunda preocupação. Existe também o temor de que, ao se criar conjuntos diferentes de normas e regulamentos, os tratados regionais possam ser onerosos para os comerciantes e as empresas. E aí está o ponto de complexidade que preocupa a muitos.

Por fim, embora essas iniciativas demonstrem que os membros da OMC continuam liberalizando o comércio, a fragmentação do sistema comercial não pode substituir os benefícios de negociar um conjunto de normas para todos. Mas, para isso, é evidente que uma coisa que precisamos fazer é cumprir o que acordamos em Bali em dezembro de 2013, durante as negociações comerciais mundiais no contexto da OMC.

Nos encontramos na metade do caminho de um intenso período de consultas para resolver o atual ponto morto a respeito, mas, tal como estão as coisas hoje, não temos uma solução neste momento. Enquanto persistir essa situação, acredito que aumentará de maneira exponencial o risco de distanciamento. E esse aspecto é destacado pela proliferação desses outros enfoques.

Em favor do sistema multilateral, e de todos os que podem se beneficiar dele, creio que temos de encontrar uma solução para nossos problemas atuais e voltar a encaminhar nosso trabalho na OMC. E temos de fazê-lo com rapidez. O tempo não está do nosso lado.

* Roberto Azevêdo, diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC).