Europa paralisada pela divisão entre norte e sul

Roberto Savio. Foto: IPS
Roberto Savio. Foto: IPS

 

Roma, Itália, novembro/2014 – A nova Comissão Europeia parece mais um experimento para equilibrar forças opostas do que uma instituição que deve ser dirigida com algum tipo de governança. Provavelmente a Europa acabe paralisada pelos conflitos internos, que é a última coisa de que precisa.

Durante a presidência de José Manuel Durão Barroso (2004-2014), a Comissão Europeia, órgão executivo da União Europeia (UE), foi se tornando cada vez mais marginal no âmbito internacional, prisioneira da divisão interna entre o norte e o sul do bloco.

Vamos regressar à Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), há quase quatro séculos, entre católicos e protestantes. Os católicos são considerados despreocupados esbanjadores, enquanto há um enfoque moral da economia pelos protestantes.

A Alemanha, por exemplo, transformou a dívida em um “pecado” financeiro. A grande maioria de seus cidadãos apoia a postura irredutível de seu governo, de que o sacrifício fiscal é o único caminho para a salvação e que a desaceleração econômica que se avizinha só fortalecerá esse sentimento.

Como resultado, o manejo interno da crise de governabilidade da UE em grande parte empurra a Europa para as linhas marginais do mundo.

Não se entende qual interesse pode ter a Europa em empurrar a Rússia para uma aliança estrutural com a China e, em um momento tão frágil, impor a si mesma perdas em investimentos e no comércio com Moscou que poderiam chegar a US$ 50 bilhões no próximo ano.

A revista Foreign Affairs – a bíblia da elite dos Estados Unidos – publicou um longo e detalhado artigo do acadêmico John J. Mearsheimer, intitulado Porque a Crise da Ucrânia é Culpa do Ocidente, que documenta como o convite à Ucrânia para unir-se à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) foi o último de uma série de passos hostis, que levou o presidente russo, Vladimir Putin, a deter um claro processo de intrusão.

Mearsheimer duvida que tudo isso responda aos interesses de longo prazo dos Estados Unidos, além de alguns pequenos círculos, e se pergunta por que a Europa os segue. Um bom exemplo é como os Estados da Europa (com exceção dos países do norte) reduziram seus orçamentos de cooperação internacional.

Não só Espanha, Itália e Portugal – e, naturalmente, Grécia – eliminaram praticamente seus orçamentos de ajuda oficial ao desenvolvimento, como também Áustria, Bélgica e França seguiram esse exemplo. Enquanto isso, a China vem investindo fortemente na África, América Latina e, naturalmente, na Ásia, em uma estratégia onde o termo “cooperação” não seria o mais apropriado.

Mas o melhor exemplo da incapacidade da UE para estar em sintonia com a realidade é o último corte no programa Erasmus, que envia dezenas de milhares de estudantes a cada ano para outros países europeus. Será que foi notado que um milhão de crianças nasceram de casais que se conheceram graças a essas bolsas e que o programa é cortado em um momento em que os partidos antieuropeus estão surgindo em todas as partes?

Na realidade, educação, cultura e assistência médica sofrem uma contínua redução no gasto público. Como disse em sua famosa frase Giulio Tremonti, que foi ministro das Finanças do ex-primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi, “você não come com a cultura”.

O orçamento por pessoa para a cultura no sul da Europa é atualmente um sétimo do do norte do continente.

Em seu último orçamento, a Itália – que, segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), possui 50% do patrimônio cultural da Europa – decidiu abrir cem postos de trabalho no campo arqueológico com salário bruto mensal de 430 euros. Esse valor é metade do salário mensal de uma empregada doméstica por 20 horas de trabalho semanais.

Os políticos italianos não dizem explicitamente, mas consideram que, como já existe tal riqueza patrimonial, não há necessidade de maior investimento, porque, de todo modo, os turistas continuarão chegando ao país.

Assim, o orçamento para todos os museus italianos fica próximo ao orçamento do Museu Metropolitano de Nova York. Isso é como querer viver de expor a múmia de um antepassado por algum dinheiro.

Pode-se afirmar que em momentos de crise o orçamento para a cultura pode ser congelado porque há necessidades mais urgentes. Mas, para manter a Europa dentro da competição internacional, não há necessidade mais urgente do que garantir o futuro de seus cidadãos. E, ainda assim, o orçamento para a pesquisa e o desenvolvimento, essencial para isso, também está sendo reduzido ano a ano.

Examinemos a situação desde 2009. A Espanha reduziu o investimento em pesquisa e desenvolvimento (P&D) em 40%, o que se traduziu em um corte em uma porcentagem igual do financiamento de projetos, e de 30% em recursos humanos.

As universidades italianas sofreram um corte global de 20%, o que significou redução de 80% na contratação e de 100% nos projetos, enquanto 40% dos cursos de doutorado desapareceram.

A França reduziu em 25% a contratação em centros de pesquisa e em 20% nas universidades. Menos de 10% da demanda de projetos recebe financiamento devido à falta de fundos.

Desde 2011, a Grécia diminuiu o orçamento para os centros de pesquisa e para as universidades em 50%, e congelou a contratação de pesquisadores.

Em Portugal, no mesmo período, universidades e centros de pesquisa sofreram redução de 50%, a quantidade de bolsas para doutorado caiu 40% e os cursos de pós-doutorado, 65%.

É importante lembrar que a Estratégia de Lisboa, o programa para o crescimento e o emprego adotado em 2000, aspirava fazer da União Europeia, no prazo de dez anos, “a economia mais competitiva e dinâmica do mundo, baseada no conhecimento, capaz de crescer economicamente de maneira sustentável, com mais e melhores empregos e com maior coesão social”.

A maioria de seus objetivos não foi alcançada em 2010. Pelo contrário, a Europa continua retrocedendo. A Estratégia de Lisboa fixou, por exemplo, que 3% do produto interno bruto (PIB) seriam destinados a P&D, mas o sul da Europa dedica menos de 1,5%.

Uma notável exceção é a Grã-Bretanha. O atual governo britânico, que trabalha em estreita sincronia com a City financeira e as empresas, financiou com US$ 7,6 bilhões o projeto Estratégia de Inovação e Pesquisa para o Crescimento, com as bênçãos do setor privado.

A China aumenta constantemente seu orçamento em P&D, que agora é de 3% do PIB, e planeja que chegue a 6% do PIB em 2020. Em apenas sete anos, a China se converteu no maior produtor de painéis solares, causando a quebra de várias empresas norte-americanas e europeias.

Estaria a Europa comprometendo seu futuro na competição internacional para atender aos interesses da Alemanha? Ou é a política que está perdendo a vista da floresta enquanto se discute a quantidade de árvores a serem cortadas para chegar a um compromisso entre católicos e protestantes?

O certo é que se está convertendo a economia em uma ciência moral, e isto faz da Europa um mundo insólito. Envolverde/IPS

* Roberto Savio é fundador da agência IPS e editor da newsletter Other News.