O Sul recebe apenas migalhas do comércio mundial

Chakravarthi Raghavan. Foto: Cortesia do autor
Chakravarthi Raghavan. Foto: Cortesia do autor

Genebra, Suíça, agosto/2014 – O mundo de hoje é muito diferente daquele do final da Segunda Guerra Mundial. Já não existem as colônias, embora persistam alguns territórios “dependentes”.

Nos anos 1950 e 1960, enquanto se desenvolvia o processo de descolonização, na maioria dos países recém-independentes, surgiram líderes que simplesmente lutaram contra o domínio estrangeiro, sem pensar muito em seus objetivos e suas políticas socioeconômicas posteriores à independência.

Alguns pensaram, ingenuamente, que, com a independência e o poder político, o bem-estar econômico seria automático.

No final da década de 1950, as antigas colônias e aqueles primeiros líderes que desejavam melhores condições para seus povos perceberam que faltava algo mais além da independência política, e começaram a buscar o entorno econômico internacional, em suas organizações e instituições.

Nos anos imediatos ao pós-guerra, os esforços para criar novas instituições econômicas internacionais, surgidos dos acordos de política comercial realizados durante a guerra entre Estados Unidos e Grã-Bretanha, se concentraram nas medidas internacionais para a reconstrução e o desenvolvimento da Europa devastada pela guerra.

Em consequência, nos setores do dinheiro e das finanças foram criadas as instituições de Bretton Woods, o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Internacional de Reconstrução e Fomento (Birf) e o Banco Mundial, segundo o princípio de “um dólar, um voto”.

Isto ocorreu inclusive antes de ser acordada a Carta da Organização das Nações Unidas (ONU) e seu princípio de igualdade soberana dos Estados, que estabelece um voto por país nos órgãos do fórum mundial.

Grã-Bretanha e Estados Unidos apresentaram propostas em 1946 perante o Conselho Econômico e Social da ONU (Ecosoc) para criar uma Organização Internacional do Comércio (OIC).

O Ecosoc convocou a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Emprego para examinar as propostas. O Comitê Preparatório da Conferência redigiu uma Carta para o organismo de comércio, que foi discutida e aprovada em 1948, em uma conferência da ONU em Havana.

À espera da ratificação da Carta de Havana, o capítulo de política comercial se converteu no Acordo Geral sobre Tarifas Alfandegárias e Comércio (GATT).

O GATT entrou em vigor mediante um protocolo de aplicação provisório, como um acordo executivo multilateral que regeria as relações comerciais. Assim, os governos acordaram aplicar seus compromissos de redução das barreiras comerciais e reiniciar as relações comerciais de antes da guerra mediante ações executivas sujeitas à sua legislação nacional.

Em Havana, durante as negociações sobre a Carta, Brasil e Índia expressaram seu descontentamento, mas aceitaram a contragosto o resultado e o GATT provisório.

Entretanto, o Senado dos Estados Unidos, como consequência do lobby empresarial, não estava disposto a permitir que Washington se submetesse à Carta de Havana.

Assim, o GATT se manteve provisório por 47 anos, até o tratado de Marrakesh que instituiu a Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1995.

As instituições de Bretton Woods não buscavam promover de forma direta o “desenvolvimento” das antigas colônias. O pouco que ocorreu nesse sentido foi, quando muito, um efeito secundário das políticas de crédito dessas instituições e das escassas migalhas que caíam da mesa, aqui e ali, em favor dos interesses da Guerra Fria.

A partir do princípio dos anos 1950, na medida em que proporcionava alguns empréstimos de reconstrução e desenvolvimento ao Sul global, o Birf atuou em interesse dos Estados Unidos, seu principal acionista, e favoreceu o setor privado.

Por exemplo, os primeiros esforços da Índia para conseguir empréstimos do Birf para que o setor público instalasse indústrias básicas como a do aço, que exigiam grande capital, foram rechaçados pelo único motivo do dogma ideológico que confrontava a empresa privada e a pública.

Muito mais tarde, o Banco Mundial criou a Associação Internacional de Fomento (AIF) para conceder empréstimos brandos, de juros baixos e longos prazos de amortização, aos países de baixa renda.

Mas a AIF não funcionou como se pretendia e não concedeu empréstimos para a criação de indústrias ou para fomento do desenvolvimento nos países mais pobres. Na prática, agiu em defesa dos interesses dos países desenvolvidos no Terceiro Mundo.

Os empréstimos da AIF foram concedidos com condições que promoviam os programas de ajuste estrutural, com a liberalização unilateral do comércio. Isto causou a desindustrialização dos países africanos mais pobres.

Pior ainda, havia condições adicionais que respondiam às modas e inquietações da sociedade civil do Norte, especialmente com sede em Washington.

Os “países doadores” da AIF a dominavam e utilizavam seu peso para influir nos empréstimos que concedia. No começo, a agência obtinha fundos dos Estados Unidos e de outros países desenvolvidos.

Posteriormente, financiou-se com fundos procedentes do reembolso dos empréstimos e dos lucros que o Banco Mundial obteve com o crédito que concedia a taxas de mercado aos países em desenvolvimento.

Embora os países em desenvolvimento que recebiam empréstimos do Birf a taxas de mercado fossem os financiadores da AIF, não tinham voz em sua direção, e os países desenvolvidos, com pouquíssimo dinheiro adicional, mantiveram o controle sobre as políticas da AIF e do Birf para promover suas próprias políticas e os interesses de suas empresas no Sul em desenvolvimento.

No âmbito comercial, nas sucessivas rodadas de negociações do GATT, o grupo dos principais países desenvolvidos – integrado por Estados Unidos, Canadá, Europa e, mais tarde, Japão – negociou entre si o intercâmbio de concessões alfandegárias, mas deu pouca atenção aos países em desenvolvimento e às suas solicitações de reduções alfandegárias para suas exportações.

As únicas migalhas que receberam foram consequência da multilateralização das concessões bilaterais intercambiadas nas rodadas, com a aplicação do princípio de “nação mais favorecida”. Cada uma das rodadas a partir da de Dillon, passando pela Kennedy e a de Tóquio, agregou disposições discriminatórias para o Terceiro Mundo e suas exportações.

Na Rodada Uruguai (1986-1994), que culminou no tratado de Marrakesh, os países em desenvolvimento assumiram com antecedência compromissos onerosos no comércio de mercadorias e em áreas novas, com o comércio de “serviços” e a proteção da propriedade intelectual.

Em troca, receberam  promessa de compromisso dos países desenvolvidos de assumir uma importante reforma do comércio de sua subsidiada agricultura e de outras áreas de interesse para as exportações do Sul. Estas continuam no terreno das promessas.

Por outro lado, após a Conferência Ministerial de Bali, em dezembro de 2013, Estados Unidos, Europa e a direção da OMC pretendem abandonar, por considerarem “obsoletos”, os compromissos anteriores e avançar no acordo de “facilitação comercial”, que não implica concessões de sua parte, mas uma redução alfandegária de 10% para os países em desenvolvimento.

Em grande parte da África, isso completará o “processo de desindustrialização” e assegurará que o Terceiro Mundo continue povoado de “lenhadores e vendedores de água”. Envolverde/IPS

*Chakravarthi Raghavan é jornalista e observador das negociações multilaterais.