Por que e para que o Estado Islâmico combate

Farhang Jahanpour. Foto: IPS
Farhang Jahanpour. Foto: IPS

 

Oxford, Grã-Bretanha, setembro/2014 – Quando surpreendentemente o Estado Islâmico (EI) emergiu no cenário em 2013, e em poucos dias seus combatentes ocuparam extensos territórios habitados por sunitas no Iraque e na Síria, até os serviços de inteligência ativos na região tiveram que admitir seu desconhecimento sobre esse novo protagonista.

Ao contrário do Ocidente, no Oriente Médio a religião ainda tem papel predominante na vida dos povos.

Quando se fala de sunitas e xiitas, as diferenças não são comparáveis às que existem entre católicos e protestantes no Ocidente contemporâneo, sendo necessário retroceder \ às guerras de religião europeias (1524-1649), que estão entre as mais brutais e sangrentas da história.

Assim como a europeia Guerra dos 30 Anos (1618-1648) não teve somente origens religiosas, os conflitos entre sunitas e xiitas também obedecem a diversas motivações, frequentemente exacerbadas pelas diferenças religiosas.

Desde que os Estados Unidos pressionaram os governos da Arábia Saudita e do Paquistão para que, após a invasão soviética do Afeganistão em 1979, organizassem a contra-ofensiva dos jihadistas, passando pela emergência da Al Qaeda e os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, seguindo  pela invasão do Afeganistão em 2001 e do Iraque em 2003, e as ações militares no Paquistão, Iêmen, Somália, Líbia e Síria, parece que Washington tem o efeito contrário do rei Midas: em cada crise que intervêm com sua mão tudo se converte em ruínas.

Agora, com o levantamento do EI, antes conhecido como Isis, e outras organizações terroristas, todo o Oriente Médio está em chamas. Ninguém deve cometer o erro garrafal de supor que se trata de um movimento local destinado a desaparecer, ou ignorar sua influência sobre multidões de militantes sunitas marginalizados e desiludidos.

Em razão de sua ideologia, seu fanatismo e sua crueldade, dos territórios que já ocupou, e de suas ambições regionais e talvez globais, o EI configura a maior ameaça desde a Segunda Guerra Mundial. Tem o potencial de mudar o mapa do Oriente Médio e desafiar os interesses ocidentais no golfo Pérsico ou Arábico, e mais além.

Desde que o Islã apareceu nos desertos da Arábia, no século 7, com sua mensagem monoteísta e o lema “Não há outro Deus que não seja Alá e Maomé é seu profeta”, a condição dos árabes mudou e surgiu uma religião e uma civilização que hoje em dia tem cerca de 1,5 bilhão de fiéis em todo o mundo.

Ao contrário de outros profetas que não chegaram a ver em vida o êxito de sua missão, Maomé não só conseguiu unir os árabes na península arábica em nome do Islã, como também criou um Estado e reinou sobre os convertidos ao Islã como governante e como profeta. Foi, assim, um caso único na história das religiões.

Em consequência, enquanto as demais religiões têm em mente um Estado ideal, o “reino de Deus”, como uma aspiração futura, para os muçulmanos o Estado ideal está no passado, no governo de Maomé na Arábia, na vida e nos ensinamentos do profeta.

Quando, no biênio 1516-1517, o exército do sultão otomano Selim I conquistou Síria, Palestina, Egito e Arábia com seus santuários, o sultão assumiu o título religioso de califa. Portanto, o império otomano foi por sua vez o califado sunita.

A queda do império turco otomano e a abolição do califado em 1922 não foram traumáticas apenas no sentido político e militar, já que ao mesmo tempo os sunitas perderam a máxima autoridade religiosa com sua função unificadora.

Para muitos ocidentais, é difícil compreender o sentimento de derrota e humilhação dos sunitas, como consequência das perdas sofridas no século passado. Para se ter uma ideia, é preciso imaginar a queda de um poderoso império cristão multissecular junto com a abolição do papado.

Com o fim do califado, os países sunitas foram divididos e controlados por potências estrangeiras, que impuseram sua denominação nos planos econômico, militar e cultural.

Antes do colapso do império otomano, as potências ocidentais, e a Grã-Bretanha em particular, haviam prometido aos árabes que, em troca de pegarem em armas contra os turcos, lhes concederia a formação de um califado islâmico nas terras árabes sujeitas ao império otomano.

Além de traírem essa promessa, França e Grã-Bretanha secretamente minaram o acordo Sykes-Picot (1916) para dividir as terras árabes.

E, em virtude da Declaração Balfour (1917), Londres ofereceu ao movimento sionista um território na Palestina que não era seu, para “dar um lugar ao povo judeu”.

Quando terminou a era da colonização, em todo o Oriente Médio ascenderam ao governo, mediante golpes de Estado, regimes de militares que haviam lutado contra a dominação estrangeira: o general Kemal Ataturk, na Turquia, o general Reza Khan, no Irã, o coronel Gamal Abdel Naser, no Egito, e o coronel Muammar Gaddafi, na Líbia.

Também os golpes militares na Síria e no Iraque, que sucessivamente levaram ao poder o partido Bath, com o general Hafez Al Asad, na Síria, e o brigadeiro Abd al-Karim Qasim, o coronel Abdul Salam Arif e Saddam Hussein, no Iraque.

Praticamente, todos os países do Oriente Médio alcançaram a independência mediante golpes de militares que ignoravam a bagagem histórica, cultural e religiosa de seus próprios países e eram completamente alheios ao conceito de democracia e de direitos humanos.

Os governos castrenses conseguiram estabelecer certa ordem, à ponta de baionetas.

Diante da ausência de organizações da sociedade civil, de tradições democráticas e de liberdades sociais, o único caminho aberto para as massas desejosas de sacudir as ditaduras militares foi o de voltar à religião e utilizar as mesquitas como seus quartéis.

A aparição de movimentos religiosos como a Irmandade Muçulmana no Egito, a Ennahda na Tunísia, a Frente Islâmica de Salvação na Argélia, Al Da’wah no Iraque e outros, representou a maior ameaça para os regimes militares, que os reprimiram e proscreveram.

A tragédia dos modernos regimes do Oriente Médio está em sua incapacidade de coexistirem com os movimentos islâmicos e, portanto, com os amplos estratos sociais que aqueles representavam.

É dessa forma que, após repetidas derrotas e humilhações entre os militantes sunitas, especialmente entre os árabes cujos países foram divididos e submetidos ao colonialismo ocidental e depois a ditaduras militares, foi crescendo a saudade do califado.

Quando se pronuncia a palavra califado islâmico, os sunitas comprometidos experimentam uma sacudida de adrenalina.

O fracasso dos regimes militares e a marginalização e eliminação das agrupações de inspiração religiosa desencadearam, agora, na irrupção de um movimento extremista.

O grupo terrorista Estado Islâmico se vale dessa situação e baseia sua atração na convocação para o ressurgimento do califado. Envolverde/IPS

* Farhang Jahanpour é ex-professor e ex-decano da Faculdade de Línguas da Universidade de Isfahan, e há 28 anos dá aulas no Departamento de Educação Permanente da Universidade de Oxford. Editado por Pablo Piacentini