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A infância perdida em um Kalashnikov

Mullume (E), ex-criança soldado da República Democrática do Congo, sente incerteza sobre o futuro. Foto: Einberger/argum/EED/IPS

 

Bangui, República Centro-Africana, 12/4/2013 – Youssouf, de 13 anos, encarna todos os males que atingiram a República Centro-Africana nos últimos anos. No dia 24 de março, participou da tomada desta capital como combatente da coalizão rebelde Séléka. “Ontem mesmo fui suficientemente mais velho para lutar e matar. Mas hoje tenho que esperar até completar 18 anos para me alistar no exército”, afirmou.

Sob a sombra de uma mangueira na base militar de Bangui, onde é mantido em segredo junto com outros três meninos-soldado, Youssouf respira fundo. Sente-se traído pelos rebeldes da Séléka (“união, na língua sano) que marcharam sobre a capital para colocar no poder o seu líder, Michel Djotodia. Agora a Séléka precisa ganhar credibilidade internacional, mas seus líderes sabem que a presença de crianças-soldado em suas fileiras prejudica sua imagem.

Este assunto veio à luz depois que efetivos sul-africanos que defendiam o palácio presidencial e seu ocupante, o derrubado presidente François Bozizé, informaram estar traumatizados ao descobrirem que os rebeldes que combateram e mataram eram majoritariamente “meninos”. Para mantê-los fora da vista do público, a Séléka colocou muitas crianças-soldado com famílias do norte da República Centro-Africana, de onde procede a maioria dos rebeldes, como Youssouf. Mas ele permaneceu no acampamento.

O próprio Djotodia o deixou ali no dia seguinte à captura de Bangui, quando encontrou o adolescente fazendo guarda em um posto de controle da Séléka. “Quero ser soldado, lutar é a única coisa que sei fazer”, afirmou. A boina do exército que usa é quase tão vermelha quanto seus olhos. “Isso é por causa do tabaco branco”, confessa. Essa é uma droga, mistura de maconha da Índia com farinha de mandioca. “Com isto ninguém nunca tem medo”, garantiu.

A vida de Youssouf é uma convergência dos males que durante vários anos consumiu a República Centro-Africana. Sua existência foi sacudida pela primeira vez em abril de 2011. “Durante vários dias a milícia ugandesa do Exército de Resistência do Senhor (LRA) saqueou e sequestrou pessoas na zona de Birao (República Centro-Africana), onde eu vivia”, lembrou o jovem.

“Embora fosse perigoso, fui com minha mãe para os campos. Mas os homens do LRA nos encontraram. Violentaram minha mãe na minha frente e depois a mataram”, conta Youssouf. O grupo armado o obrigou a carregar suas munições. Em seguida o converteu em uma máquina de matar. “Me ensinaram a usar armas como Kalashnikovs (AK), granadas lançadas por foguetes, lançadores… Tornei-me um homem como eles”, acrescentou.

Pouco depois, ele e outros meninos-soldados, que constituem 90% das forças do LRA, conheceram Joseph Kony, o líder da milícia, que tem uma ordem de prisão emitida pelo Tribunal Penal Internacional. “A primeira vez foi em agosto de 2011, perto de Zémio (na República Centro-Africana, fronteira com a República Democrática do Congo). Ele é muito alto, com barba e sempre usa um chapéu”, contou o rapaz.

“Ele nos falou rapidamente. Voltei a vê-lo pouco depois disso, durante o ataque contra Djéma, um povoado próximo. Kony alinhou sete aldeões e ordenou aos meninos que os matassem. Eu gritei ‘sim senhor’, e matei dois. Foi assim que pude permanecer vivo”, afirmou Youssouf. Seu corpo magro treme com os soluços. “O LRA mata os meninos que estão doentes ou são muito lentos. Uma noite, fugi”, recordou.

Após caminhar durante três dias foi resgatado perto de Rafaï, ao sul limítrofe com a República Democrática do Congo, por soldados norte-americanos envolvidos em uma nova caça a Kony, em 2012. Youssouf foi colocado sob cuidados da Cruz Vermelha Internacional, que o levou à sua casa em Birao, como parte de um programa para reunir as crianças-soldado com suas famílias. Mas não lhe restava nenhum parente no lugar.

O jovem se empregou para levar recados de aliados de Djotodia, o ex-diplomata que voltara do exílio em Benim para liderar a União de Forças Democráticas pela Unidade, um dos principais grupos rebeldes na coalizão Séléka que se formou depois. “Eu queria me alistar com eles. Mas Djotodia disse que não queria crianças-soldado. Ofereceu-me deixar segui-los para ajudar na cozinha e na limpeza”, explicou.

No entanto, começando pelo ataque contra a localidade de Ndéle, no começo de dezembro de 2012, as boas intenções do líder se desfizeram no ar. “O coronel apenas me mandou entrar no veículo número seis, soube que estava sendo levado para combater. Os veículos de um a dez eram os de ataque, os seguintes eram para logística. O sargento me deu uma arma e me disse para ser um homem”, recordou Youssouf.

“Continuei a viagem até Bangui naquele carro, usando meu rifle AK, povoado após povoado. Quantas pessoas matei? Não sei. A guerra é a guerra. Isso é tudo. Quanto a mim, deixei de ser um menino há muito tempo. Agora, minha única esperança é ser treinado como um soldado de verdade”, afirmou. Envolverde/IPS

* Com a colaboração de Sandra Titi-Fontaine, do Infosud Genebra.

** Publicado sob acordo com o InfoSud.