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Carregadoras marroquinas, heroínas e vítimas da fronteira

Carregadoras marroquinas esperam, suportando grandes fardos, na passagem do Bairro Chinês, na cidade autônoma espanhola de Melilla, no norte da África. Foto: Cortesia de José Palazón/Associação Pró-Direitos Humanos da Infância
Carregadoras marroquinas esperam, suportando grandes fardos, na passagem do Bairro Chinês, na cidade autônoma espanhola de Melilla, no norte da África. Foto: Cortesia de José Palazón/Associação Pró-Direitos Humanos da Infância

 

Málaga, Espanha, 28/1/2014 – O Sol ainda não havia surgido quando uma mulher marroquina esperava sua vez na passagem fronteiriça de pedestres que separa seu país da cidade espanhola de Melilla. Após horas esperando, cruza a fronteira carregando em suas costas um fardo de 80 quilos de mercadorias e desanda seus passos entregando-o em seu território em troca de menos de US$ 6.

Diariamente, ela e outras milhares de mulheres atravessam os postos de fronteira entre Marrocos e as cidades de Melilla e Ceuta, enclaves espanhóis no norte da África, para se abastecer de produtos, condicionados em pesados volumes e transportá-los através da fronteira a pé, em uma atividade comercial que movimenta milhões de euros e do qual se beneficiam comerciantes dos dois territórios.

Os empresários de Melilla “vivem desse contrabando”, que torna possível às milhares de mulheres carregadoras “sobreviver e dar de comer aos seus filhos”, contou à IPS o fundador da Associação Pró-Direitos Humanos da Infância, José Palazón, que vive na cidade há 14 anos. “São mães solteiras, viúvas, maltratadas, com maridos inválidos, mulheres excluídas da sociedade, que lançam mão do contrabando para poderem seguir em frente”, detalhou à IPS o dirigente sindical Abdelkader El-Founti, da Central Geral de Trabalhadores de Melilla.

Às nove horas abre o posto de fronteira em Melilla no Bairro Chinês, a carregadora mostra o passaporte e se dirige para uma explanada onde vários furgões deixaram bem cedo no chão os fardos preparados para o carregamento. Amarra com cordas o volume sobre suas costas e anda em sentido contrário mais de 200 metros, vencendo a multidão que se amontoa no estreito lugar, para entregar rapidamente a carga no lado marroquino e voltar para fazer mais transportes, antes do fechamento da passagem às 13 horas.

Os moradores de Melilla e Ceuta chamam essa atividade de “comércio atípico” e os marroquinos o tratam como contrabando tolerado. Nas altas grades de ferro da estreita passagem do Bairro Chinês estão pendurados cartazes com siluetas de carregadores e carregadoras indicando a entrada.

As mulheres recebem quando entregam o fardo no lado marroquino, onde há homens com carrinhos de mão ou veículos esperando para transportá-lo. A quantia depende dos quilos que carregam. “O máximo é 10 euros (US$ 13) por dia. Para cada viagem recebem de três a cinco euros” (US$ 4 a US$ 6), explicou El-Founti.

O peso que carregam é acrescido de “todo tipo de vexames que sofrem por parte das polícias espanhola e marroquina”, denunciou El-Founti. “O tratamento dado aos carregadores é humilhante. Há maus tratos por parte da polícia nos dois lados da fronteira. Basta ficar cinco minutos ali para perceber”, pontuou à IPS o marroquino Amin Souissi, da Associação Pró-Direitos Humanos de Andaluzia na cidade espanhola de Cádiz.

Souissi recordou a morte, em setembro de 2013, de um jovem carregador da cidade marroquina de Tetuán que, “farto de tanta humilhação” ateou fogo ao corpo, como um monge, na passagem de fronteira El Tarajal de Ceuta, depois que as autoridades de seu país confiscaram a mercadoria que carregava.

“Não queremos que percam seu meio de vida, e pedimos respeito aos direitos humanos dessas pessoas nas fronteiras de Ceuta e Melilla”, declarou Suoissi, que viu policiais empurrando marroquinos que cobram propina com seus cassetetes, bem como a arbitrariedade imperante na hora de permitir que os carregadores cruzem a fronteira, “que depende do funcionário de serviço”.

Nos enormes fardos são transportados todo tipo de objetos, como cobertores, pneus usados, alimentos e fraldas. A imensa maioria dos carregadores é de mulheres, mas também há homens, sobretudo os jovens sem recursos. Muitas mulheres cruzam a fronteira com pacotes menores. Outras trabalham como empregadas domésticas em residências de Melilla e Ceuta e, na última hora, voltam para dormir no Marrocos.

Das cerca de 40 mil pessoas que circulam diariamente entre a localidade marroquina de Beni Enzar e Melilla, apenas 10% o fazem com visto, pontuou El-Founti. Os carregadores devem apresentar seu passaporte e o restante conta com uma autorização especial, acordada entre os governos espanhol e marroquino, para trabalhar durante o dia em Melilla e voltar para dormir em suas casas em território marroquino.

“São trabalhadores da construção civil, empregados domésticos e do setor de hotelaria que trabalham dez a 12 horas por menos de 200 euros (US$ 270) mensais e sem direitos”, denunciou El-Founti. O sindicalista lamentou que os empresários de Melilla se aproveitem do medo dos “empregados transfronteiriços” de perder seu trabalho e da sua situação de necessidade. “Muitas das mulheres marroquinas empregadas domésticas em Melilla são analfabetas e desconhecem seus direitos trabalhistas”, destacou.

O trabalho das carregadoras “movimenta muitíssimo dinheiro dos dois lados da fronteira”, enfatizou Palazón, que considera “muito difícil” acabar com essa situação, mas pede que seja dignificado seu trabalho e melhoradas as instalações fronteiriças por onde passam diariamente. “Não há uma torneira para beber água”, apontou Souissi sobre a passagem El Tarajal de Ceuta, que, “mais do que uma passagem de pedestres, parece uma jaula” com corredores muito estreitos onde as carregadoras quase não cabem.

Esse comércio significa 1,4 bilhão de euros anuais (US$ 1,8 bilhão) nos dois lados da fronteira e também um terço da economia das duas cidades autônomas espanholas. Da atividade vivem diretamente 45 mil pessoas e 400 mil indiretamente, segundo a Câmara Americana de Comércio em Casablanca, no Marrocos, citados na Declaração de Tetuán, assinada ali por quase 30 organizações, em abril de 2012. Nessa declaração alerta-se para “a importante quantidade de renda obtida por meio do suborno”, 90 milhões de euros por ano (US$ 121 milhões), de acordo com dados do semanário independente marroquino Al Ayam.

As condições de passagem pelos postos fronteiriços, onde se amontoam milhares de pessoas, já causou mortes. Em novembro de 2008, Zafia Azizi morreu sufocada em Melilla e no dia 25 de maio de 2009 faleceram as marroquinas Busrha e Zhora em uma avalanche na passagem de Biutz, em Ceuta. Ativistas ouvidos pela IPS afirmaram que a União Europeia (UE) não atende devidamente as vulnerabilidades dos direitos humanos que as carregadoras marroquinas sofrem.

Ceuta e Melilla têm um regime fiscal especial com importantes reduções de impostos e são alheias à União Aduaneira do bloco, o que permite às duas cidades importar com tarifas alfandegárias inferiores às da UE e vender aos cidadãos marroquinos esses produtos, para sua posterior entrada irregular no Marrocos para serem revendidos. Envolverde/IPS