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Cresce movimento jurídico para evitar a lei de anistia no Brasil

Corpos de guerrilheiros são embalados em lonas por militares, em 1972, na região do Rio Araguaia, no Pará. Foto retirada de digitalização de negativos em posse do ex-sargento José Antônio de Souza Perez (Reprodução).

Rio de Janeiro, Brasil, 16/3/2012 – Diante da muralha de uma anistia que impede julgar crimes cometidos pelo regime militar brasileiro, ganha força um movimento de jovens advogados do Ministério Público (MP) para evitá-la com recursos jurídicos de direitos humanos inéditos no país. O grupo Justiça de Transição, integrado por procuradores do MP de vários Estados, trabalha sob a tese de que os sequestros e desaparecimentos forçados durante a ditadura (1964-1985) são crimes que continuam sendo cometidos hoje em dia.

A lei de anistia de 1979 vem impedindo que se processe penalmente denúncias de torturas, sequestros e assassinatos cometidos nesse período, tanto por agentes do Estado quanto por organizações guerrilheiras de esquerda. “O argumento é que não são crimes do passado, e que continuam sendo cometidos atualmente”, explicou à IPS o representante da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), seção do Rio de Janeiro, Ronaldo Cramer, ao se referir à tese dos “crimes permanentes”, que são sequestro continuado e ocultação de cadáver.

Se a vítima não aparece, viva ou morta, o sequestro segue cometido. Da mesma forma, se os responsáveis pelo desaparecimento se negam a informar o paradeiro dos corpos, continuam praticando o crime de ocultação de cadáver, disse à imprensa o procurador Ivan Cláudio Marx, do Rio Grande do Sul. Com isso “conseguimos contornar a lei de anistia, pois esta se refere a crimes cometidos” até 15 de agosto de 1979, detalhou Cramer. “Isto não significa revisar a lei nem lhe dar outra interpretação”, acrescentou o advogado da OAB-RJ, uma das principais impulsoras da Campanha pela Memória da Verdade, que ajudou a criar a estratégia dos crimes permanentes.

O grupo passou da teoria à prática no dia 14, quando denunciou à justiça de Marabá, no Pará, o coronel da reserva do exército Sebastião Curió Rodrigues de Moura, pelo suposto “sequestro qualificado” de cinco pessoas nessa região, em 1974. Os desaparecidos, integrantes da Guerrilha do Araguaia – braço armado do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), que lutou contra a ditadura – foram detidos em operações militares encabeçadas por Curió.

Segundo o grupo de sete promotores que apresentou a denúncia, se desconhece até hoje o paradeiro dessas vítimas, embora existam testemunhos de que foram torturadas e vistas pela última vez sob custódia militar. A decisão de “apresentar denúncia contra um coronel da reserva por graves abusos cometidos na década de 1970 é um passo histórico para a responsabilização destes atos no Brasil”, afirmou em um comunicado a organização internacional de direitos humanos Human Rightws Wata (HRW), com sede em Nova York.

Durante o regime militar, mais de 475 pessoas foram assassinadas ou desapareceram por razões políticas, segundo informes oficiais. Além disso, cerca de 50 mil foram presas e mais de 20 mil torturadas. “É uma grande notícia para as famílias que perderam seus entes queridos na violenta onda de repressão que se seguiu ao golpe de 1964”, afirmou em um comunicado José Miguel Vivanco, diretor executivo da HRW para as Américas. Agora, um juiz federal deve determinar se o caso irá a julgamento. Se isso ocorrer, será a primeira vez que um militar ligado à ditadura se sentará no banco dos réus por violações dos direitos humanos. Até agora a mencionada anistia impede isso.

Segundo os denunciantes, a medida tampouco contraria a decisão de ratificar essa lei, adotada pelo Supremo Tribunal Federal em 2010, porque “os cinco sequestros continuam acontecendo”, ressaltou o promotor do Estado de São Paulo, Sérgio Suyama. O grupo de promotores foi criado com o objetivo de dar uma resposta ao Tribunal Interamericano de Direitos Humanos que, em novembro de 2010, condenou o Brasil por manter uma lei de anistia “incompatível” com os tratados internacionais de direitos humanos assinados por Brasília. A decisão, inapelável, dessa corte sentenciou que a lei não pode continuar representando “um obstáculo ao castigo dos responsáveis”.

Em 2011, o Congresso aprovou a criação da Comissão da Verdade, que começará a funcionar este ano para investigar as violações dos direitos humanos cometidas desde 1954, mas que não responsabilizará criminalmente seus autores.

Diante de “retrocessos” como essa comissão e da lei de anistia, “essa ação do Ministério Público é fundamental, não por se tratar de uma ação criminal ou penal”, opinou à IPS a presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, Cecília Coimbra. “O mais importante é que essa gente que continua nas sombras, como Curió, mostre sua cara e diga o que aconteceu”, afirmou Cecília, ex-militante do PCdoB, que foi presa e torturada pelo exército em agosto de 1970.

Para esta ativista humanitária, o importante é que essas histórias do passado sejam divulgadas, e “não até certo ponto”, como pretende a Comissão da Verdade, e que venham à luz documentos públicos até hoje “em mãos de repressores como Curió. Esperamos que a ação do MP seja a primeira de muitas”, destacou. Sob o guarda-chuva dos crimes permanentes existem outros 55 casos que o grupo de promotores poderia denunciar à justiça.

Cramer destacou que a OAB vê “com muito bons olhos” a iniciativa. Muitos estavam a favor de revisar a lei de anistia, mas faltava o MP “se movimentar mais”, esclareceu. “Esperemos que o Ministério Público se convença disto, e ações como esta deixem de ser isoladas para serem uma atitude da corporação”, ressaltou, lembrando que “só assim se pode começar a confirmar que os crimes permanentes estão excluídos da lei de anistia”. Em sua opinião, desta forma se começaria a saldar a dívida de uma Comissão da Verdade, que é um primeiro passo “mínimo” e “necessário”, mas não suficiente. “Enquanto a verdade não aparecer, esta história sempre será um fantasma, uma ferida aberta”, concluiu.

Um dos juízes do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, brincou com a tese dos crimes permanentes aplicável a determinados crimes da ditadura. “Vamos esperar que esta questão chegue ao Supremo”, disse aos jornalistas. Enquanto isso, “deixemos as pessoas discutirem e se divertirem com este debate”. Envolverde/IPS