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Falsa justiça comunitária abriga linchamentos na Bolívia

Dois policiais carregam o corpo queimado de uma vítima de linchamento em uma comunidade de Chapare, no departamento boliviano de Cochabamba. Foto: Dico Soliz/Opinión
Dois policiais carregam o corpo queimado de uma vítima de linchamento em uma comunidade de Chapare, no departamento boliviano de Cochabamba. Foto: Dico Soliz/Opinión

 

La Paz, Bolívia, 10/12/2013 – Imagens de corpos torturados e rostos quase irreconhecíveis, vítimas de linchamentos de exaltados moradores, sacodem a sociedade da Bolívia. Um fenômeno de justiçamento sumário que nada tem a ver com a justiça comunitária, embora os verdugos nela se agasalhem. Estatísticas da Defensoria do Povo entregues à IPS mostram que, entre 2005 e outubro deste ano, foram 53 casos de linchamentos, possíveis linchamentos, tentativas e ameaças em sete cidades bolivianas: La Paz, El Alto, Cochabamba, Chapare, Cobija, Potosí e Llallagua.

Entretanto, a contagem dos meios de comunicação mostra que, entre 2005 e 2012, foram registradas 180 mortes por justiçamento sumário na Bolívia. E o fenômeno está crescendo, porque registros de imprensa indicam que somente entre abril e agosto deste ano foram 35 desses casos, sendo 14 no departamento de La Paz, a maioria em El Alto, e 11 no de Cochabamba. Neste departamento é onde a barbárie se expressa com maior ímpeto, segundo fontes policiais e jornalísticas, especialmente na tropical província do Chapare, uma área de cultivos ilegais de coca, com majoritária população quechua e uma crescente presença aymara.

No dia 27 de setembro, apareceram em Entre Ríos, povoado dessa província, dois corpos com a pele queimada e rostos irreconhecíveis, pés e mãos amarrados com arame farpado e sem identidade. O crime foi provocado por uma turba de moradores que, como é frequente, agiu com sanha atroz. Dois jovens não identificados, entre 25 e 30 anos, que haviam abordado um mototáxi, despertaram suspeitas no condutor porque um deles estava armado, segundo informes locais.

Em um incidente confuso, a arma disparou e alertou as pessoas, que bateram nos suspeitos de assaltar o mototaxista. Eles foram amarrados e queimados em uma pira alimentada por mantas de borracha. Depois, o silêncio escondeu os responsáveis pelo justiçamento, travestido de justiça comunitária. “Isso não é justiça comunitária, é um ato criminoso”, declarou à IPS o Defensor do Povo de Cochabamba, Raúl Castro.

“O linchamento é um assassinato e não se pode permitir sob o conceito de justiça comunitária, porque nada tem a ver com ela, é uma execução sumária que vulnera princípios constitucionais e o devido processo”, destacou à IPS o promotor do departamento, Freddy Torrico. Contudo, os linchamentos não constam como crime próprio na jurisdição local, e o crime executado coletivamente e cercado de hermetismo dificulta as investigações.

Em La Paz, o Defensor do Povo da Bolívia, Rolando Villena, garantiu à IPS que “a justiça comum deve ser mais eficiente, efetiva, transparente e oportuna”, para que os moradores não caiam em execuções sumárias em um país sem pena de morte, ao menos formal. Os planos policiais de segurança devem ser ampliados para as zonas rurais, pontuou Villena. Entretanto, além da ineficiência dos tribunais, “há um forte componente de desconfiança, desconhecimento e rejeição ao sistema de justiça e de proteção em grande parte das comunidades rurais e populações pobres”, reconheceu o Defensor do Povo.

O rosto da justiça nesse país começou a mudar com a Constituição de 2009, que declarou a Bolívia um Estado plurinacional e permitiu escolher, dois anos depois, por sufrágio universal, integrantes dos altos tribunais e conselhos judiciais. Em seus Artigos 191 e 193 acolhe “a jurisdição indígena originária camponesa” e estabelece que seus povos e suas nações a aplicarão segundo normas e procedimentos próprios.

Mas essa jurisdição, que deve acatar a justiça ordinária, “respeita o direito à vida, o direito à defesa e demais direitos e garantias estabelecidos na Constituição”, estipula. Esse reconhecimento constitucional recuperou essa prática administrada por líderes locais, embora já antes as comunidades fizessem justiça segundo seus usos e costumes. Os especialistas em direito ordinário e comunitário destacam que as tradições dos povos originários excluem taxativamente a pena de morte.

A secretária acadêmica do Programa de Direitos das Nações Originárias, Cintia Irrazábal, disse à IPS que a justiça comunitária segue procedimentos de longa tradição e processa delitos leves. Líderes comunitários em assembleias públicas conhecem e analisam o delito – em geral, roubo de gado, de sementes ou outros bens – e aplicam sanções reparadoras, quase sempre um trabalho manual. Em casos extremos, de roubo agravado, o castigo é o desterro do infrator e de sua família.

“Essa é a punição máxima”, assegurou Irrazábal. Os casos de assassinatos, violações e outros delitos graves são passados à polícia e à justiça ordinária, destacou Villena, que atribui os linchamentos “à falta de proteção, à lentidão dos órgãos de segurança, à ineficiência do Estado, à crise do sistema judicial e à impunidade”. O Defensor do Povo mostrou à IPS resultados de investigações internas que evidenciam que “45% dos municípios bolivianos não contam com um juiz, apenas 23% têm um promotor e somente 3% contam com um defensor público”.

Félix Costa, prefeito de Puerto Villarroel, um dos cinco municípios de Chapare, declarou à IPS que os linchamentos se devem “à não aplicação da justiça como deveria ser”, e acrescentou que os 46 mil habitantes de seu município se indignam quando a polícia ou os tribunais deixam sem castigo supostos criminosos. Em Puerto Villarroel, uma área de intenso comércio e encruzilhada viária entre leste e oeste do país, há apenas 20 policiais para cuidar da segurança pública, do trânsito e da luta contra as drogas.

O promotor Torrico reconhece as dificuldades para se fazer justiça. “Tenho três promotores para investigar vários crimes e três especializados em tema antidroga”, afirmou, para explicar a debilidade do Ministério Público em uma área muito conflituosa. Mas a ira coletiva não pode estar acima do respeito à vida, ressaltou. “Não se compara o roubo de uma motocicleta com queimar uma pessoa”, concluiu.

Queimar as vítimas, vivas em algumas ocasiões, é comum para apagar as pegadas do linchamento, que também se comete em subúrbios urbanos. A violência recai sobre suspeitos de um homicídio ou uma violação, do roubo de um túmulo ou até de um botijão de gás. No dia 4 de novembro, em Sorata, departamento de La Paz, uma turba tirou de sua casa um jovem de 25 anos, suspeito de ter assassinado um comerciante, bateram nele até ficar inconsciente e o abandonaram em um local para no dia seguinte lhe dar veneno e enforcá-lo. Envolverde/IPS