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Linchamento na Argentina: coletivização ou privatização da justiça?

As ameaças de linchamentos se espalham pelas cidades e nas zonas rurais, em diferentes formas. Foto: Cortesia da rede Colheita Vermelha
As ameaças de linchamentos se espalham pelas cidades e nas zonas rurais, em diferentes formas. Foto: Cortesia da rede Colheita Vermelha

 

Buenos Aires, Argentina, 10/4/2014 – A palavra linchamento nasceu e se generalizou nos Estados Unidos, para designar “o castigo coletivo violento contra pessoas de cor diferente”, e depois se consolidou em vários países latino-americanos. Seu ressurgimento surpreende agora na Argentina e remete ao universo simbólico de sua origem: “a privatização da justiça”, contra os marginalizados de sempre.

Em menos de duas semanas soube-se de uma dezena de linchamentos, ou tentativas, na Argentina, sendo que no primeiro, no dia 22 de março, morreu David Moreyra, de 18 anos, depois de supostamente tentar roubar a bolsa de uma mulher na cidade de Rosário.

O linchamento (lynching) tem sua origem na Guerra de Independência norte-americana, quando o juiz Charles Lynch decidiu castigar fora da lei um grupo de leais ao império britânico, apesar de já terem sido absolvidos por um júri oficial, recorda Leandro Gamallo, em um estudo da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais.

Depois o termo foi usado para designar a prática dos “caçadores de homens (homens brancos do sul dos Estados Unidos) que organizavam “patrulhas” civis para capturar supostos delinquentes. Essa “justiça popular” mais tarde daria lugar ao “uso da força coletiva como método de exploração e segregação racial realizada pelos brancos contra os negros”, afirma Gamallo.

Os linchamentos voltaram ao debate latino-americano quando, instigados ou apenas refletidos pela mídia (segundo um inacabado debate), surgiram na Argentina, país onde não existe uma “justiça comunitária tribal” arraigada, com a de Bolívia, Equador ou Guatemala. Esses assassinatos já são bem conhecidos na Bolívia, onde a Defensoria do Povo registrou 53 casos entre 2005 e outubro de 2013. Também são cometidos no Brasil, México, países andinos e centro-americanos.

Na Guatemala, o especialista em política Marcelo Colussi os vincula a um tecido social decomposto por mais de três décadas de conflito armado interno (1960-1996). Entretanto, em todos os casos, o denominador comum parece ser o mesmo: vítimas pobres, indígenas ou negras, e uma privatização da justiça diante da insegurança real ou aparente. Os mortos “continuam sendo os mesmos que sofreram o pior da repressão em anos passados, e que historicamente estão afastados dos benefícios de um desenvolvimento equitativo” na Guatemala: “indígenas de origem maia, sempre pobres”, destacou.

“Há um processo de estigmatização de jovens pobres”, afirmou à IPS o historiador argentino Diego Galeano, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, embora considere prematuro garantir que existe uma onda de linchamentos em seu país. Porém, esse pesquisador da história transnacional do crime na América do Sul, apontou a gravidade de um “deslocamento do modo como se regula a violência” na Argentina.

A socióloga argentina Maristella Svampa recorreu aos saques do final de 2013, iniciados na província de Córdoba, para lembrar à IPS que ali “ocorreram tentativas de linchamento contra supostos saqueadores cujo único crime, além do tipo de rosto (jovens pobres e morenos), era atravessar o bairro Nueva Córdoba, sede de setores da classe média e endinheirados”.

Mas há outro ângulo que, segundo Svampa, pesquisadora do estatal Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas, merece uma advertência: o dos grupos armados dispostos a intervir contra saqueadores (em fotos divulgadas nas redes sociais) que ela interpreta como “uma tenebrosa tentativa de privatização da justiça”.

Svampa afirmou que “os dois fatos (tentativa de linchamento e grupos de autodefesa), como resposta coletiva aos saques, deixaram claro um sintoma de profundo retrocesso da democracia e dos direitos humanos”. Dessa forma, “em um contexto marcado por novos conflitos sociais, maior desigualdade, crescente desorganização social e discursos punitivos, nosso país parece estar abrindo uma perigosa caixa de Pandora”, alertou.

Na Argentina, como disse à IPS o especialista em políticas de segurança Luis Somoza, os linchamentos ocorrem em um cenário de aumento da criminalidade. Por isso são o “reflexo de uma sociedade totalmente saturada do nível de insegurança alcançado”, explicou esse professor do Instituto Universitário da Polícia Federal Argentina.

“As pessoas têm a percepção, quando não o dado real, de que não são protegidas pelo Estado”, afirmou Somoza. Mas esse “retrocesso a um estado primitivo da sociedade” vislumbra o risco adicional de uma “provável aparição de forças não estatais que se apropriam do papel de defesa, que são as chamadas forças de autodefesa, milícias, paramilitares, esquadrões da morte”, ressaltou.

O defensor penal juvenil da cidade de La Plata, Julián Axat, associa o fenômeno à impunidade de outros linchamentos menos divulgados ou ignorados pelos meios de comunicação. Há milhares de casos de surras que antecedem as detenções de adolescentes pobres, “corretivos” como chutes, empurrões e cusparadas que parecem aceitos no “imaginário policial”. “A impunidade dos linchamentos é o que mais gera o clima de repetição. Não é a mídia, é a polícia e a justiça que não os detêm”, escreveu em um artigo que a IPS teve autorização para divulgar.

“Como disse Bertold Brecht, hoje são os negros de cabelo crespo, amanhã, possivelmente, seus captores, enquanto os poderosos de sempre e agradecerão às suas polícias porque continuarão fazendo maravilhosos negócios com a ‘insegurança’ e com uma sociedade na qual os pobres matam os menos pobres e a classe média autoritária aplaude”, resumiu para a IPS o advogado de direitos humanos Claudio Orosz.

Em todo caso, a experiência guatemalteca evidencia a inutilidade do linchamento como forma de dissuadir o crime. “Apesar de se ter ‘justiçado’ numerosos delinquentes, o índice de criminalidade em todo país e também nas ex-zonas de guerra continua sendo alarmantemente alto”, enfatizou Colussi. Na Argentina, a presidente Cristina Fernández garantiu, no dia 31 de março, que “tudo o que gerar violência sempre engendrará mais violência”, em referência a um fenômeno cuja nome, linchamento, evitou citar. Envolverde/IPS