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Novo governo de El Salvador diante do quebra-cabeças das gangues

Líderes da Mara Salvatrucha na prisão de Ciudad Barrios, no Departamento de San Miguel, em El Salvador. Foto: Tomás Andréu/IPS
Líderes da Mara Salvatrucha na prisão de Ciudad Barrios, no Departamento de San Miguel, em El Salvador. Foto: Tomás Andréu/IPS

 

São Salvador, El Salvador, 9/5/2014 – Quando, em 1º de junho, o esquerdista Salvador Sánchez Cerén assumir a Presidência de El Salvador, encontrará graves rachas na trégua entre gangues criminosas, que o governo que termina administrou e que por dois anos manteve a criminalidade contida. O pacto vive seu momento mais crítico desde sua gestação em março de 2012, com a quebra da trégua, embora não sua ruptura, pelo menos por enquanto.

“Na medida em que se enfraquece o diálogo, aumenta a violência, e as novas autoridades terão que tomar a decisão sobre a continuação do processo de paz entre gangues”, disse à IPS um dos mediadores da trégua, Raúl Mijango. O outro foi o bispo católico castrense Fabio Colindres. Sánchez Cerén, dirigente da ex-guerrilheira e governante Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN), não quis aprofundar na nova espiral de violência, nem tampouco outros membros de sua equipe.

O presidente eleito foi vice-presidente do governo que termina seu mandato, com Maurício Funes à frente. Durante a campanha eleitoral, encerrada com sua vitória em 9 de março, o então candidato disse que enfrentaria esse fenômeno com o que chamou de “mão inteligente”, uma mescla de repressão e prevenção. Até a chegada de Funes, em 2009, a estratégia contra a criminalidade foi de mão dura, sob os sucessivos governos da direitista Aliança Republicana Nacionalista (Arena), que governou o país desde 1989.

Ao novo governo caberá reduzir os homicídios, não só por ser uma exigência da população, mas porque este ano começa a campanha eleitoral para eleições de prefeitos e deputados em 2015, e o aumento da criminalidade vai contra os candidatos da FMLN. A Mara Salvatrucha e a Barrio 18, as duas principais gangues do país, acordaram, há dois anos, cessar as agressões mútuas e contra civis, policiais e militares. Por sua vez, o governo concordou em transferir para prisões menos rígidas os líderes desses dois grupos. Desde então, os assassinatos caíram, em média, de 14 para cinco por dia.

O Escritório das Nações Unidas Contra a Droga e o Crime informou em maio que a taxa de homicídios salvadorenha caiu para 41,2 para cada cem mil habitantes durante 2012, contra os 69,2 para cem mil do ano anterior. Porém, desde fevereiro deste ano, paulatinamente a criminalidade recrudesce e a média diária de assassinatos gira atualmente em torno de dez. Mais de 50% dos homicídios cometidos em El Salvador são de membros das gangues e 35% das vítimas também pertencem a esses grupos criminosos. Calcula-se que há cerca de 60 mil integrantes de gangues neste país de 6,2 milhões de habitantes.

Para Mijango, a crise na trégua começou durante a campanha eleitoral, quando o Ministério da Justiça desvinculou o governo do papel de “facilitador” que exercia, mediante o qual os membros das gangues presos tinham comunicação com seus seguidores em liberdade para lhes transmitir diretrizes. Além disso, endureceu as operações policiais contra as gangues, o que gerou enfrentamentos nas comunidades. Analistas políticos consideram que isso buscou mostrar dureza contra o crime por razões eleitorais, depois que Funes habilitou a aproximação entre as gangues.

O governo atual argumenta que a alta dos crimes se deve a uma disputa entre as duas facções que formam a Barrio 18, os Sureños e os Revolucionários, em uma luta por controle territorial que estaria sendo resolvida a bala nas comunidades do país onde está presente. De fato, o próprio Funes disse em um programa de rádio que a trégua estava praticamente rompida, e seu ministro de Justiça e Segurança, Ricardo Perdomo, revelou que agora as gangues têm fuzis e armas de maior poder para enfrentar a polícia.

Os policiais se deram mal em enfrentamentos com esses grupos. No dia 6 de abril, por exemplo, no município de Quezaltepeque, no Departamento de La Liberdad, um agente morreu e três ficaram feridos durante um ataque. Porém, as grandes gangues salvadorenhas negam que o pacto esteja morto ou existam disputas como a indicada por Funes e seus colaboradores. “Apesar dos ataques recebidos, a trégua ainda se mantém”, dizia um comunicado divulgado no dia 29 de abril e assinado pelos líderes da Mara Salvatrucha (MS), pelas duas facções da Barrio 18 e pelas gangues Mao Mao, La Máquina e Miradas Locos 13.

O comunicado foi lido em uma entrevista clandestina em São Salvador, para a qual foram convidados quatro meios de comunicação, entre eles a IPS. Participaram um porta-voz nacional da MS, um dos Sureños e outro dos Revolucionários da Barrio 18. Os três pediram para ficarem no anonimato por razões de segurança. “Vocês acreditam que, se as duas facções estivessem em guerra, agora estaríamos juntos?”, perguntou o representante dos Sureños.

Mas esses porta-vozes reconheceram que a trégua não é perfeita, que há células que não seguem as diretrizes ditadas pelos dirigentes presos ou nas ruas. Por isso, não negaram nem confirmaram que membros de gangues participaram do ataque aos policiais em Quezaltepeque. De fato, também concordaram que há um conflito com uma célula cindida dos Revolucionários, no município de Zacatecoluca, no departamento de La Paz, o que estaria gerando uma violência incomum nessa área. Mas essa disputa, de caráter local, não explicaria o aumento de mortos em nível nacional, afirmaram. “Nós mantemos o compromisso com a sociedade”, disse o porta-voz da MS.

Porém, o sacerdote católico Antonio Rodríguez, que trabalhou na reinserção de membros de gangues em Mejicanos, um populoso bairro no norte de São Salvador, disse à IPS que o comunicado lido pelos porta-vozes não representa a direção nacional das gangues. “Os Sureños estão descontentes com esse pronunciamento porque não é representativo”, explicou o padre, evidenciando os rachas do processo. Rodríguez, inicialmente, foi um duro crítico da trégua, depois a apoiou, junto com Mijango e Colindres, mas por fim se desligou deles.

Agora, esse sacerdote da Congregação Pasionista aderiu ao esforço do ministro Perdomo para relançar o processo de pacificação entre gangues, do qual também participam o bispo auxiliar de São Salvador, Gregorio Rosa Chávez, e representantes de igrejas evangélicas e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), entre outros. “É um pacto da sociedade civil, não entre gangues”, destacou Rodríguez à IPS. Na entrevista clandestina, os dirigentes das gangues foram taxativos: “Fala-se da existência de dois processos de pacificação, nós só reconhecemos um, o iniciado em março de 2012”. Envolverde/IPS