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O futebol derruba museu indígena

Antigo Museu do Índio. Foto: Norbert Suchanek

Rio de Janeiro, Brasil, 29/10/2012 – Entre o musgo e as raízes, que avançam sobre as ruínas do ex-Museu do Índio, ainda é possível “ouvir” as vozes de tribos em extinção no Brasil, que tentam guardar a memória de sua cultura. Contudo, o golpe fatal de picareta da remodelação do estádio do Maracanã não respeitará nem esse espaço “sagrado”. “É como se matassem uma parte de nós, como se estivéssemos perdendo um pedaço, porque neste lugar nossos antepassados deixaram sua memória, sua luta”, lamenta Garapira Pataxó, da etnia pataxó, em entrevista à IPS, depois que o governo do Estado do Rio de Janeiro confirmou a decisão de demolir o lugar.

As autoridades alegam que é necessário para a construção de espaços de “circulação e mobilidade” ao redor do Estádio Jornalista Mário Filho, onde, em 2014, pela segunda vez na história, será jogada uma final de copa do mundo. O prédio, construído há 147 anos, foi desde 1953 a primeira sede do Museu do Índio, criado pelo antropólogo Darcy Ribeiro (1992-1997), até que, em 1978, passou a ocupar um antigo casarão no bairro de Botafogo. Também abrigou em sua origem o Serviço de Proteção ao Índio, que mais tarde passou a ser a atual Fundação Nacional do Índio (Funai).

Abandonado desde então e em avançado estado de deterioração, o edifício foi ocupado em 2006 por cerca de 20 indígenas de diferentes etnias, como “símbolo de resistência cultural”, recorda o líder indígena Doitiró Tukano, do povo amazônico tukano. “Estamos presentes aqui para mostrar o que temos de diferente em nossa cultura, porque não é cópia, mas própria. Hoje, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, há 305 grupos indígenas com 186 línguas diferentes no Brasil, e é isso o que queremos mostrar. Esta é nossa resistência”, explicou Tukano à IPS.

Uma das versões, ainda não confirmada, é que será construído um centro comercial e esportivo e um estacionamento no antigo museu, vizinho ao histórico estádio, onde o Brasil perdeu a final do Mundial de 1950 para o Uruguai. O governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, atribuiu a necessidade demolir o Museu do Índio a uma exigência da Fifa, mas a entidade negou.

Renato Cosentino, porta-voz do Comitê Popular do Mundial de Futebol 2014 e dos Jogos Olímpicos 2016, comentou a contradição. “Muitas vezes é usada a desculpa do esporte para desalojar pessoas de áreas de alto valor imobiliário”, disse à IPS, referindo-se ao Rio de Janeiro e às outras 11 cidades que serão sede da Copa. Foram desalojadas cerca de 170 mil pessoas em todo o país, e cerca de 30 mil no Rio de Janeiro, que também receberá as Olimpíadas de 2016.

Precisamente, duas das favelas onde isso aconteceu são vizinhas do Maracanã, um “símbolo de todo o processo de violação de direitos que estamos vivendo no Brasil”, afirmou o representante do Comitê, que reúne pessoas prejudicadas pelos megaencontros esportivos. “É uma grande tristeza ver que nosso sonho acaba. É uma referência que gostaríamos de guardar para as futuras gerações”, disse o líder Tukano, após explicar que não é “contra a alegria do povo brasileiro pelo futebol. Mas, para nós, o Mundial não traz nada. Claro que dará benefícios às grandes empresas patrocinadoras”.

O grupo indígena se prepara para “resistir” à demolição de seu espaço, enquanto a defensoria pública prepara sua contraofensiva judicial, alegando o valor patrimonial histórico do prédio. Na área que rodeia o edifício em ruínas, os indígenas construíram casas, com materiais básicos como adobe, para viverem, e assim recriaram o que chamaram de Aldeia Maracanã, onde reproduzem seus costumes em meio a uma cidade que avança sobre eles. Entre escadas enferrujadas e raízes se entrelaçando com paredes destruídas, os indígenas organizam atividades culturais como danças, cerimônias, exposições fotográficas, rituais e até desfiles de roupa ancestral.

Antes de ser confirmada a demolição, no lugar era preparado um ritual de “metamorfose de menina para mulher”, para a qual viriam adolescentes de várias aldeias do interior do país. “Veja como o índio gosta de comer mandioca”, brinca Afonso Chamakiri, da etnia apuriná do Amazonas, enquanto almoça com sua nova família pescado na brasa e farinha de mandioca.

A história deste indígena apuriná é muito particular. Chegou ao Rio de Janeiro com o sonho de ser ator. “Minha mãe veio uma vez para a cidade e voltou para casa impressionada por uma caixa onde havia gente que falava”, conta à IPS se referindo à “descoberta” da televisão por sua mãe no dia em que saiu pela primeira vez de sua aldeia amazônica. Chamakiri concretizou seu sonho e participou de vários filmes. O último foi Vermelho Brasil, coprodução do Brasil com França e Canadá.

Sobre o muro levantado pela construtora responsável pela reforma do Maracanã, alguns operários espiam a cerimônia dos indígenas ao receber a IPS, pedindo aos seus ancestrais que iluminem o governo a respeito de seu “espaço sagrado”. Chamakiri afirma que “não temos nada contra eles. Muitos são índios como nós. Outros negros, povo como nós”. Chamakiri gosta de contar uma história que poucos recordam sobre a origem do nome que primeiro batizou um rio e depois o bairro carioca e, em seguida, popularizou o estádio.

Maracanã é uma ave da região que ainda “vem comer o fruto dessa árvore”, afirma, apontando para uma das muitas espécies que se mantêm milagrosamente em pé em meio à urbanização. O pássaro sobreviveu à civilização, mas o “antigo povo indígena maracanã, que dominava este território já está extinto”, contou Chamakiri. Por isso, para ele é tão importante manter o centro cultural, que “representa o registro de todas as culturas ancestrais que começaram aqui e que foram destruídas neste espaço. Queremos que se converta em um espaço indígena sagrado”. Envolverde/IPS