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O último cravo no caixão da Primavera Árabe

O exército egípcio bloqueia uma rua no Cairo, em fevereiro de 2011. Foto:  Mohammed Omer/IPS
O exército egípcio bloqueia uma rua no Cairo, em fevereiro de 2011. Foto:  Mohammed Omer/IPS

 

Washington, Estados Unidos, 17/12/2014 – Com a absolvição do ex-presidente do Egito, Mohamed Hosni Mubarak, foi colocado o último cravo no caixão da chamada Primavera Árabe e nos levantes por justiça, dignidade e liberdade que sacudiram esse e outros países da África e do Oriente Médio em 2011. O juiz Mahmud Kamel al-Rashidi e seus colegas do tribunal, que absolveram os ex-mandatário no dia 29 de novembro, são, na verdade, um vestígio da era Mubarak (1981-2011).

A justiça, o atual regime militar encabeçado por Abdel Fatah al Sisi e os complacentes meios de comunicação egípcios foram o pano de fundo da decisão do tribunal, que revela como uma revolução popular pode derrubar um presidente, mas não os círculos de poder enquistados no regime. De fato, nenhum observador sério do Egito se surpreenderia com a absolvição de Mubarak e seus colaboradores, acusados da morte de dezenas de manifestantes pacíficos na Praça Tahrir em janeiro de 2011, que um mês depois tiraram Mubarak do poder.

Os autocratas árabes no Egito, Emirados Árabes Unidos, na Arábia Saudita e em outros países trabalharam sem descanso para acabar com qualquer vestígio das revoluções de 2011. Aproveitaram o sectarismo sangrento e a ameaça do terrorismo para deslegitimar os protestos populares e desacreditar as demandas por uma verdadeira reforma política.  A absolvição de Mubarak colocou um selo oficial à tentativa do ditador egípcio de reescrever a história.

Após o golpe de Estado, que em junho de 2013 derrubou o presidente Mohamed Morsi, que continua na prisão devido a acusações falsas, os ditadores árabes incentivaram Al Sisi com milhares de milhões de dólares. Embora a sentença não tenha a ver com a aplicação da lei, mas com a política e a contrarrevolução, a pouco surpreendente decisão oferece lições importantes para a região e os Estados Unidos.

Os regimes autoritários árabes, sejam dinastias ou repúblicas presidenciais, aperfeiçoaram a arte da sobrevivência, o amiguismo, a corrupção sistêmica e o controle dos possíveis rivais. Utilizaram o Islã para seus fins cínicos, instaram os serviços de segurança a silenciarem a oposição, e incentivaram os meios de comunicação complacentes a expressarem o discurso do regime.

Para controlar o Estado, os ditadores árabes da região criaram sistemas judiciais favoráveis ao regime, forças armadas e serviços de segurança confiáveis e bem financiados, parlamentos obedientes, conselhos de ministros receptivos e mídia flexível e controlada. Os autocratas também asseguraram a lealdade mediante o clientelismo e as ameaças de represálias. O poder de elementos influentes nos governos está diretamente vinculado ao ditador.

A sobrevivência do ditador e de seu regime se baseia na suposição profundamente arraigada de que compartilhar o poder com o povo é prejudicial para o governo e a estabilidade do país. Esse princípio direcionou a política no Egito, Arábia Saudita, Bahrein, Emirados Árabes Unidos e vários outros países desde o começo da Primavera Árabe.

Embora o juiz Rashid tenha tido a ousadia de afirmar que a absolvição de Mubarak “não teve nada a ver com a política”, na realidade a sentença se deveu a uma decisão previamente ordenada pelo regime de Al Sisi, para virar a página da revolução de 25 de janeiro.

Se Al Sisi tiver razão em sua interpretação do estado de ânimo popular, então os autocratas árabes receberão a absolvição de Mubarak com os braços abertos, na crença de que os protestos pela democracia e pelos direitos humanos serão, segundo um ditado árabe, como uma “nuvem de verão que logo se dissipará”.

Por exemplo, o rei Hamad, do Bahrein, felicitou Mubarak no dia em que foi dada a sentença, segundo a agência de notícias oficial desse país do Golfo Pérsico. Mas a maioria dos estudiosos da região acredita que o apoio que os ditadores árabes dão ao regime de Al Sisi é míope e carente de toda avaliação estratégica da região. Muitos afirmam que a frustração popular com a intransigência e a repressão estatal levarão à radicalização e ao aumento do terrorismo.

A ascensão do grupo extremista Estado Islâmico é o último exemplo de como a frustração popular, especialmente entre os muçulmanos sunitas, pode impulsionar uma organização terrorista. Esse fenômeno lamentavelmente é evidente no Egito, Bahrein, Síria, Iraque, Iêmen, Líbia, Argélia e outros países. E como reação à resistência popular, os regimes desses países responderam com mais repressão e destruição.

Na verdade, Al Sisi e outros autocratas árabes não aprenderam ainda a lição fundamental da Primavera Árabe: não se pode obrigar o povo a estar ajoelhado para sempre. Concentrados na política de Al Sisi para seu povo, os autocratas árabes parecem menos atentos à postura de Washington na região em relação às últimas décadas, na crença de que carece de rumo e se ocupa em excesso de considerações táticas.

Os Estados Unidos pronunciam elevados discursos em apoio aos valores democráticos e direitos humanos, mas depois os políticos norte-americanos ficam ombro a ombro com os ditadores, o que diminui o respeito por esse país. Embora a absolvição de Mubarak já não ocupe as manchetes da imprensa egípcia, a luta dos povos árabes pelos direitos humanos, pelo pão, pela dignidade e pela democracia continuará.

Al Sisi acredita que Washington considera o Egito um aliado fundamental na região, sobretudo por seu tratado de paz com Israel, e, portanto, não reduzirá a ajuda militar apesar de sua atroz história em matéria de direitos humanos. Com base nessa crença, o Egito continua ignorando as consequências de suas próprias políticas destrutivas.

Talvez seja hora de Washington reexaminar sua postura em relação ao Egito e reafirmar seu apoio aos direitos humanos e às transições democráticas no mundo árabe. Se os Estados Unidos têm interesse em conter o crescimento do terrorismo na região, definitivamente deve se concentrar nas causas econômicas, políticas e sociais que empurram os jovens árabes muçulmanos ao extremismo violento. Envolverde/IPS

* Emile Nakhleh é professor pesquisador da Universidade do Novo México, membro do Conselho de Relações Exteriores e autor de A Necessary Engagement: Reinventing America’s Relations With the Muslim World (Um Compromisso Necessário: A Reivindicação das Relações dos Estados Unidos com o Mundo Muçulmano).