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Oportuna rebelião do catolicismo argentino

O agora papa Francisco, fotografado em 2008 em Buenos Aires. Foto: 3.0 CC BY-SA

Buenos Aires, Argentina, 18/3/2013 – O cardeal argentino Jorge Bergoglio foi eleito papa num momento em que a Igreja Católica de seu país enfrenta uma rebelião de laicos e religiosos que rechaçam o papel da hierarquia eclesiástica durante a última ditadura (1976-1983) e a falta de gestos que reparem omissões e cumplicidades do passado. As acusações contra Bergoglio por sua suposta vinculação com o regime, que deram a volta ao mundo ao ser conhecida sua escolha como novo pontífice, no dia 13, são apenas a ponta do iceberg de uma discussão que leva décadas sem chegar a uma conclusão e que está vindo à luz devido aos processos judiciais contra os repressores.

Grupos como Padres em Opção pelos Pobres, Cristãos para o Terceiro Milênio ou Coletivo Teologia da Libertação, fazem ouvir julgamentos cada vez mais irados contra a insuficiente autocrítica da Conferência Episcopal Argentina (CEA), que há poucos meses divulgou um pedido de perdão e prometeu investigar a fundo. “É bom que se abra o debate, que comecemos a esclarecer o que aconteceu para que a verdade saia à luz. Seria muito saudável”, disse à IPS a pesquisadora Claudia Touris, da Universidade de Buenos Aires e coordenadora do Relig-Ar – Grupo de Trabalho em Religião e Sociedade na Argentina Contemporânea.

A discussão que divide os católicos começou em razão de um documento divulgado em novembro pela CEA, no qual os prelados pedem perdão “a quem tenhamos fraudado ou não acompanhado como deveríamos” durante a ditadura. Também prometem “um estudo mais completo” para conhecer a verdade. O texto, divulgado como Carta ao Povo de Deus, com o título A fé em Jesus Cristo nos move rumo à verdade, à justiça e à paz, condena os crimes do “terrorismo de Estado”, mas os equipara com “a violência guerrilheira”, uma interpretação rechaçada pelos opositores do regime ditatorial.

Os Cristãos para o Terceiro Milênio consideraram o texto “insatisfatório”, pois nega a conivência que existiu entre alguns prelados e a ditadura. Segundo seus signatários, todos laicos (católicos que não são membros do clero) deveriam “exigir” informação sobre os que foram capelães militares e “fazer cessar situações escandalosas que confundem e enfraquecem o Povo Peregrino”.

Por sua vez, os Padres em Opção pelos Pobres disseram que ficaram “escandalizados por tantas atitudes contrárias ao Evangelho”, e porque o padre Christian Von Wernich, condenado pela justiça por violações dos direitos humanos, “não foi expulso do magistério”, e o ex-ditador Jorge Rafael Videla, culpado de múltiplos crimes de lesa humanidade e sem manifestar arrependimento, continua recebendo a comunhão.

À véspera da escolha de Bergoglio como papa, este grupo de sacerdotes que vivem e trabalham em bairros pobres, protestou também porque, em razão de seus questionamentos ao documento da CEA, a cúria episcopal adotou represálias contra um dos religiosos descontentes. O bispo Francisco Polti, da província de Santiago del Estero, separou de sua paróquia o padre Roberto Burell, um dos signatários.

“Não vamos dizer a vocês ‘estimados’ porque não estimamos os covardes”, começa que esse grupo de sacerdotes enviou ao episcopado, na qual fazem vigorosas críticas e alertam os prelados que quando deixarem de ser bispos “apenas terão o lamento dos poderosos, porque pobres, camponeses e indígenas vão comemorar”. Esse era o ambiente que se vivia entre os católicos da Argentina quando o conclave vaticano elegeu Bergoglio como novo papa.

Segundo Claudia Touris, o documento da CEA foi tíbio para muitos católicos, embora se constituindo um chamado bastante novo aos que tiveram informação sobre desaparecimentos forçados ou apropriações de crianças, dois crimes habituais cometidos pela ditadura contra opositores. “É preciso ver se isto tem continuidade e se aprofundar”, ressaltou. Em sua opinião, não existiu uma posição unânime da Igreja frente aquele regime, e por isso houve coincidência ideológica de alguns bispos com os militares, que contribuíam para “varrer uma suposta infiltração comunista”, e também religiosos e laicos comprometidos com os perseguidos.

No primeiro grupo, Touris mencionou prelados já falecidos, como o cardeal Raúl Primatesta, o vigário castrense Victorio Bonamín e os arcebispos Adolfo Tortolo e Antonio Plaza, apontados, e em alguns casos denunciados, por terem sido vistos em centros clandestinos de detenção. Porém, a pesquisadora recordou que houve bispos junto aos perseguidos, como Jaime de Nevares, Jorge Novak ou Miguel Hesayne, e também dezenas de sacerdotes, freiras, seminaristas e laicos que foram sequestrados, assassinados, se exilaram ou permanecem desaparecidos.

Dois bispos são considerados mártires por se oporem à ditadura. O primeiro é Enrique Angelelli, da diocese da província de La Rioja, morto em 1976 em um suposto acidente automobilístico que se suspeita ter sido um assassinato. O outro é Carlos Ponce de León, bispo da localidade de San Nicolás, em Buenos Aires, também morto em um suspeito acidente em 1977. Bergoblio era nessa época provincial da Companhia de Jesus. Dois sacerdotes dessa ordem, que trabalhavam em bairros pobres, foram sequestrados. O agora papa Francisco é apontado por alguns como responsável por entregá-los, porém, outros asseguram que, pelo contrário, sua influência os resgatou.

Touris recordou que o superior da ordem dos jesuítas era o espanhol Pedro Arrupe, que exortava os padres a assumirem um compromisso político e social, e em razão disso os jesuítas foram a ordem mais perseguida, torturada e com desaparecidos na América Latina e no Caribe na década de 1970. Na Argentina, sob a liderança de Bergoglio, a ordem teve uma posição mais tradicional, segundo a pesquisadora. Bergoglio na época exortava os sacerdotes mais comprometidos a abandonarem sua tarefa social como forma de evitar a repressão, segundo ele mesmo declarou em sua defesa.

O ativista pelos direitos humanos Adolfo Pérez Esquivel, prêmio Nobel da Paz de 1980 e um católico ativo, afirmou após a eleição de Francisco que “a Igreja Católica não teve atitudes homogêneas” diante do regime e que houve “indiscutíveis cumplicidades de boa parte da hierarquia eclesiástica”. Entretanto, assegurou que Bergoglio “não foi cúmplice da ditadura”. “Creio que lhe faltou coragem para acompanhar nossa luta pelos direitos humanos nos momentos mais difíceis, afirmou o dirigente humanitário em um comunicado de sua organização, o Serviço de Paz e Justiça na Argentina. Envolverde/IPS