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As reformas cubanas não creem em lágrimas

Noite de sábado no bar privado El Madrigal, no bairro do Vedado, em Havana, Cuba. Foto: Jorge Luis Baños/IPS
Noite de sábado no bar privado El Madrigal, no bairro do Vedado, em Havana, Cuba. Foto: Jorge Luis Baños/IPS

 

Havana, Cuba, 8/1/2014 – A paisagem de cidades e povoados de Cuba mudou: onde antes apenas se via slogans políticos hoje florescem letreiros luminosos oferecendo o melhor da gastronomia internacional e hospedagem com ar-condicionado, mostras de um emergente setor privado impensável há muito pouco tempo.

Em razão da política migratória que entrou em vigor em 2013, cidadãos deste país realizaram mais de 250 mil viagens ao exterior entre 14 de janeiro e 30 de novembro, segundo dados oficiais. Como já não é necessária a autorização de saída nem carta-convite do país a visitar, destacados dissidentes puderam sair e regressar a Cuba sem problemas, após décadas de proibições.

Em 2011 a sociedade havia recuperado o direito individual de propriedade de suas casas e automóveis, que até então só podiam ser vendidos ao Estado. Ao terminar 2013 foi anunciado que será possível adquirir um carro sem a até agora obrigatória carta do Ministério do Transporte. O trago amargo está nos preços do mercado estatal, que se equiparam aos do não oficial. Muitas pessoas que economizaram para comprar um veículo supõem que agora não poderão fazê-lo porque os novos preços serão três vezes maiores do que suas possibilidades.

Mercedes, 67 asnos, auxiliar de escritório aposentada com pensão equivalente a US$ 11 e uma filha incapacitada, se sente alheia a essas mudanças. “O dinheiro não dá para viver. Meus vizinhos me aconselham a alugar um quarto, mas primeiro teria que arrumar meu apartamento e não tenho recursos para isso”, disse à IPS esta mulher que pediu para não ter o sobrenome divulgado.

“O problema não está na lentidão das reformas, mas em como são percebidas e chegam às pessoas”, afirmou Bélkis González, profissional das comunicações. Mais além do declarado propósito governamental de que ninguém ficará desamparado nem haverá “terapias de choque”, as brechas e iniquidades se mantêm.

Durante as discussões prévias ao plano de reformas aprovado em 2011 pelo governante Partido Comunista de Cuba, especialistas alertaram que o documento base deveria incluir ingredientes sociais muito mais explícitos e fortes do que os enunciados. “O texto tem um estigma economicista totalmente justificado”, porque do contrário “não há projeto social”, reconheceu na época à IPS a socióloga Mayra Espina. Mas é “algo simplista” a ideia de que atuar preferentemente sobre o econômico vai gerar influências positivas sobre as dimensões sociais, afirmou.

Segundo estudos citados por Espina e outros especialistas, a população urbana com pobreza de renda e necessidades básicas insatisfeitas aumentou de 6,3% em 1988 para 20% em 2000. Esse estouro da vulnerabilidade social se deve ao impacto da recessão econômica em que o país caiu no começo da década de 1990, após o desaparecimento do campo socialista europeu do qual dependia.

De acordo com o censo de 2012, 76,8% da população cubana é urbana, ligeiramente superior à porcentagem de 2002, que foi de 75,9%. O total de habitantes chegou a 11.167.325, ou 10.418 pessoas a menos do que em 2002. E dois milhões têm 60 anos ou mais.

Em 2012, o governo de Raúl Castro determinou um subsídio estatal para pessoas de escassos recursos que necessitassem reparar ou construir moradias. A medida foi vista como o começo de um processo para subvencionar pessoas e não produtos. Na mesma linha vai sendo postergada a eliminação da “libreta” (caderneta) de abastecimento racionado de alimentos, sistema cujo subsídio custou no ano passado ao Estado US$ 2,437 bilhões.

Os pobres estão em desvantagem para aproveitar as oportunidades das mudanças, pois estão menos capacitados, carecem de recursos para exercer um trabalho por conta própria e não recebem dinheiro de seus familiares no exterior, um salva-vidas que permitiu a muitas famílias contornarem a situação temporariamente, embora não haja estimativa oficial de seu montante atual.

“Seria decisivo implantar políticas não apenas de assistência e amparo aos vulneráveis”, postas em prática de acordo com o plano de reformas, mas também “de caráter afirmativo” para reduzir as iniquidades, afirmou Espina. Uma das transformações mais integrais começou em 2008 na área agrícola. Mas ainda não apresenta resultados e os preços dos alimentos continuam altos, pois as forças produtivas continuam freadas diante da falta de medidas que facilitem seu desenvolvimento e independência para tomar decisões, afirmam especialistas como o economista Armando Nova.

Agora, 70% da terra está em mãos de entidades não estatais, responsáveis por mais de 75% da produção total de alimentos. Entre elas, as cooperativas e os agricultores privados, que detêm cerca de 24% das áreas agrícolas, produzem mais de 57% dos alimentos de origem vegetal e animal. “Ou seja, existe eficiência demonstrada”, disse Nova em uma entrevista que circulou pela internet.

Mais de 440 mil pessoas são autônomas em quase 200 ofícios autorizados. Mas a falta de um mercado atacadista para comprar seus insumos, o escasso poder atacadista da grande maioria dos potenciais consumidores e os impostos conspiram contra seu sucesso.

O governo parece querer desenvolver as cooperativas que não sejam agropecuárias. Já existem 270 autorizadas e em funcionamento e 228 aguardam aprovação. O vice-presidente, Marino Murillo, explicou no parlamento que essa prioridade se deve ao caráter mais social de sua produção e distribuição dos recursos que gera. As autoridades pretendem que, até 2016, 40% dos empregos sejam gerados fora das empresas estatais.

Outro tema pendente é a convergência das duas moedas cubanas, uma delas, o CUC, cotada com referência ao dólar e outras divisas. “Em nenhum caso as pessoas seriam afetadas em seu poder de compra. Se respeitará a capacidade financeira do CUC”, declarou Murillo, um calmante para os 60% da população que se estima têm acesso a divisas.

Mas as mudanças não entraram nas casas como a de Mercedes, mesmo sendo mantido o atendimento gratuito na saúde, vital para ela a sua filha. “Sei que (o ex-presidente e líder histórico) Fidel (Castro) e Raúl (Castro) pensam em gente como nós, mas eles já têm mais de 80 anos. “Como será com os que vierem depois deles (no governo)? Se tirarem a libreta, o que iremos comer?”, perguntou. Envolverde/IPS