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As relações internacionais, a ONU e a Inter Press Service

O então diretor-geral da IPS, Roberto Savio, quando recebia, em outubro de 1999, um prêmio das mãos do diretor-geral da Organização Internacional do Trabalho, o chileno Juan Somavía. Foto: UN Photo/Susan Markisz
O então diretor-geral da IPS, Roberto Savio, quando recebia, em outubro de 1999, um prêmio das mãos do diretor-geral da Organização Internacional do Trabalho, o chileno Juan Somavía. Foto: UN Photo/Susan Markisz

 

Este é o primeiro de uma série de artigos especiais sobre a fundação da agência Inter Press Service (IPS), em 1964, mesmo ano em que nasceram o Grupo dos 77 e a Unctad.

Roma, Itália, 28/8/2014 – Em 1980, aconteceu um debate nas Nações Unidas com o falecido Stan Swinton, quando era o muito brilhante e poderoso diretor da agência Associated Press (AP). Em certo momento, apresentei alguns números, alterados lentamente devido à parcialidade ocidental dos meios de comunicação.

Em 1964, quatro agências de notícias internacionais – AP, United Press International (UPI), Agence France-Presse (AFP) e Reuters – controlavam 92% do fluxo mundial de informação. As outras agências dos países industrializados, entre elas a soviética Tass, manejavam 7%. Isto deixava o resto do mundo com apenas 1%.

Perguntei por que todo o mundo estava obrigado a receber informação escolhida pela AP, com os Estados Unidos sempre como ator principal. A resposta de Swinton foi curta e grossa: “Roberto, os meios de comunicação dos Estados Unidos significam 99% da nossa receita. Acredita que estão mais interessados em um ministro africano do que em nosso secretário de Estado?

Esta realidade estrutural é o que existia por trás da criação da Inter Press Service (IPS) em 1964, mesmo ano em que vieram à luz o Grupo dos 77 (G77), a coalizão de países em desenvolvimento, e a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad).

Para mim pareceu inaceitável que a informação não fosse realmente democrática e que – pela razão que fosse, econômica ou política – se deixasse de fora dois terços da humanidade.

Criamos uma cooperativa internacional de jornalistas, sem fins lucrativos, na qual – por estatuto – cada jornalista que trabalhava tinha uma ação e aqueles do Norte, como eu, não poderiam ser mais do que 20% de seus membros.

Igualmente importante, estipulamos que ninguém do Norte poderia informar sobre o Sul. Nos propusemos um desafio de oferecer a jornalistas de países do Sul em desenvolvimento a oportunidade de invalidar as afirmações do Norte, de que a qualidade profissional no Sul era inferior.

Outros dois fatores importantes diferenciam a IPS das agências de notícias internacionais.

Em primeiro lugar, a IPS foi criada para cobrir os assuntos internacionais, ao contrário de AP, UPI, AFP e Reuters, cuja cobertura mundial se somava à sua tarefa principal, que era cobrir os acontecimentos nacionais. Em segundo lugar, a IPS se dedicou aos processos de longo prazo e não apenas aos acontecimentos factuais.

Com isto dávamos voz aos ausentes no fluxo tradicional da informação e não só aos países do Sul, mas também a atores desatendidos, como mulheres, povos indígenas, organizações de base e também a temas como direitos humanos, ambiente, multiculturalismo, justiça social internacional ou a busca da governança mundial, entre outros.

Naturalmente, tudo isto não foi entendido ou aceito facilmente.

Decidimos apoiar a criação de agências nacionais de notícias e emissoras de rádio e televisão nos países do Sul, porque vimos isto como passo para o pluralismo da informação. De fato, ajudamos a estabelecer 22 agências de notícias nacionais nesses países.

Isso gerou desconfiança nos dois lados do muro. Muitos ministros de informação no Sul nos olhavam com receio, porque, enquanto estávamos participando de uma batalha útil e legítima, nos negávamos a aceitar qualquer forma de controle estatal. No Norte, os meios de comunicação tradicionais e privados nos olhavam como “porta-vozes” do Terceiro Mundo.

Em 1973, o Pool de Agências de Notícias dos Países Não Alinhados fez um acordo para utilizar o serviço da IPS, que foi crescendo em todas as partes em sua implantação internacional.

Ao mesmo tempo, na Organização das Nações Unidas (ONU) era sentido o chamado para se criar uma Nova Ordem Econômica Internacional (Noei), aprovada pela Assembleia Geral e com pleno apoio do Conselho de Segurança.

Parecia que a governança global estava a caminho, baseada nas ideias de justiça econômica internacional, na participação e no desenvolvimento com a pedra angular dos valores para a ordem econômica mundial.

Em 1981, tudo isto acabou. O presidente norte-americano Ronald Reagan e a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher decidiram destruir o multilateralismo e, com isso, o próprio conceito de justiça social.

Uma das primeiras medidas adotadas foi pedir a todos os países que trabalhavam com a IPS que cortassem qualquer relação conosco e desmantelassem seus sistemas nacionais de informação. Em poucos anos, a grande maioria das agências de notícias nacionais, bem como emissoras de rádio e de televisão, desapareceram. Daí em diante, a informação seria um mercado, não uma política.

Estados Unidos e Grã-Bretanha – mais Cingapura – se retiraram da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) por um projeto de criar uma Nova Ordem Internacional da Informação (Noii) como consequência da Noei, e sua política de estabelecer sistemas nacionais de informação desapareceu. O mundo mudou de rumo e a ONU nunca se recuperou dessa mudança.

A IPS não foi financiada por países. Era uma organização independente, e, embora perdêssemos todos nossos clientes dos sistemas nacionais de informação do mundo, tínhamos muitos meios de comunicação privados como clientes.

Assim sobrevivemos, mas decidimos buscar novas alianças que continuassem a busca da governança mundial baseada na participação e na justiça, com as pessoas interessadas em temas globais, como direitos humanos, ambiente e assim sucessivamente.

Vale a pena assinalar que a ONU estava se movendo em um caminho paralelo.

Na década de 1990, Boutros Boutros-Ghali, o sexto secretário-geral da ONU, realizou uma série de conferências mundiais sobre temas globais, como a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhecida como Cúpula da Terra, realizada no Rio de Janeiro, em1992.

Pela primeira vez houve dois eventos, embora separados por 36 quilômetros: um, da conferência intergovernamental, com 15 mil participantes e outro, o Fórum das ONGs, a conferência da sociedade civil, com mais de 20 mil participantes.

E era evidente que o fórum da sociedade civil estava pressionando para o sucesso da Cúpula da Terra, muito mais do que numerosos delegados.

Para criar um espaço de comunicação entre as duas reuniões diferentes a IPS criou e produziu um diário, o TerraViva, para ser amplamente distribuído a fim de criar um senso de comunidade.

Continuamos a publicá-lo em outras conferências mundiais organizadas pela ONU nessa década: sobre Direitos Humanos (Viena, 1993); População (Cairo, 1994); Mulher (Pequim,1995), e a Cúpula Social (Copenhague, 1995).

Depois decidimos convertê-lo em uma publicação diária, para ser distribuída em todo o sistema da ONU. Esse é o TerraViva divulgado diariamente e que é o vínculo entre a IPS e membros da família das Nações Unidas.

Neste contexto, é triste observar que o mundo, de repente, deu um giro para pior com o final da Guerra Fria, ao terminar a década de 1980, quando emergiram inúmeras fraturas não resolvidas, que estiveram congeladas durante as hostilidades Leste-Oeste.

Este ano, por exemplo, o número de refugiados devido a conflitos atingiu a cifra do fim da Segunda Guerra Mundial.

A injustiça social, tanto em nível nacional quanto internacional, cresce a uma velocidade sem precedentes. Em 2013, os 50 homens mais ricos (não mulheres) do mundo acumularam riquezas equivalentes aos orçamentos de Brasil e Canadá.

Segundo a Oxfam, no ritmo atual, em 2030 a Grã-Bretanha terá o mesmo nível de desigualdade social registrado com a rainha Vitória, um período no qual o filósofo Karl Marx trabalhava na biblioteca do Museu Britânico em seus estudos sobre a exploração das crianças na nova revolução industrial.

Cinquenta anos depois da criação da IPS, creio, mais do que nunca, que o mundo é insustentável sem algum tipo de governo mundial. A história demonstra que isto não pode vir da superioridade militar… Rapidamente os eventos estão se transformando em história.

Durante minha vida, vi um país de 600 milhões de pessoas, em 1956, tentando produzir ferro com entulho de escolas, fábricas e hospitais, que atualmente se converteu em um país de 1,2 bilhão e no bom caminho para chegar a ser o país mais industrializado do mundo.

O mundo somava 3,5 bilhões de pessoas em 1964. Agora conta com mais de sete bilhões e terá mais de nove bilhões dentro de 20 anos. Em 1954, a África subsaariana tinha 275 milhões de habitantes. Agora conta com cerca de 800 milhões e chegará a um bilhão na próxima década, mais do que a população conjunta dos Estados Unidos e da Europa.

Portanto, repetir o que Reagan e Thatcher fizeram em 1981 é impossível. Mas, de todo modo, o verdadeiro problema para todo o mundo é que não há avanços em qualquer tema central, do ambiente ao desarmamento nuclear.

As finanças ganharam vida própria, afastada da produção econômica e fora do alcance dos governos. Os dois motores da globalização, finanças e comércio, não fazem parte do discurso da ONU. Desenvolvimento significa “ser mais”. Porém, na globalização chegou a significar “ter mais”, dois paradigmas muito diferentes.

Em apenas 50 anos, o mundo da informação mudou inclusive superando a imaginação. A internet deu voz às redes sociais e os meios de comunicação tradicionais estão em queda.

Pela primeira vez na história, passamos do mundo da informação para um mundo da comunicação. Agora, as relações internacionais vão muito além das relações intergovernamentais, enquanto com a internet surgiram novas exigências de prestação de contas e transparência, básicas na democracia.

Além disso, diferente de meio século atrás, existe um fosso cada vez maior entre os cidadãos e as instituições públicas. O tema da corrupção, que há 50 anos era um assunto silenciado, hoje é um dos temas que exigem uma renovação da política. E tudo isso, gostemos ou não, é basicamente uma questão de valores.

A IPS foi construída sobre uma plataforma de valores, para fazer com que a informação seja mais democrática e participativa e para dar voz aos que não a têm.

Durante os últimos 50 anos, por meio de seu trabalho e do apoio de centenas de pessoas, incentivou a esperança de se construir um mundo melhor. Um tapete de grande alcance de seu compromisso pode ser encontrado em “Os jornalistas que deram a volta ao mundo. Vozes de outra informação”, um livro escrito por mais de cem personalidades e jornalistas.

É evidente que estes valores continuam sendo muito atuais hoje em dia e que a informação, embora esteja se convertendo cada vez mais em uma mercadoria, orientada a eventos e ao mercado, continua sendo uma ferramenta insubstituível para se criar consciência democrática.

Mas, em minha opinião, não há dúvida de que todos os dados nos mostram claramente que temos de encontrar alguma governança global, baseada na participação, na justiça social e no direito internacional. Do contrário entraremos em um novo período de confrontação dramática e mal-estar social.

Em um mundo no qual temos que criar novas alianças, o compromisso da IPS é de continuar seu trabalho de melhorar a informação, a serviço da paz e da cooperação, apoiando aqueles que compartilham do mesmo sonho. Envolverde/IPS

* Roberto Savio é cofundador e presidente mérito da Inter Press Service (IPS). Nos últimos anos também criou o Other News, um serviço que proporciona “informação que os mercados eliminam” (www.other-news.info/noticias/).