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Soluções tecnológicas marfinenses para problemas locais

O tablet Qelasy, desenvolvido por Thierry N’Doufou e seu grupo de especialistas. Foto: Marc-Andre Boisvert/IPS
O tablet Qelasy, desenvolvido por Thierry N’Doufou e seu grupo de especialistas. Foto: Marc-Andre Boisvert/IPS

Abidjan, Costa do Marfim, 17/4/2014 – Quando o marfinense Thierry N’Doufou viu estudantes sofrendo com suas enormes mochilas cheias de livros, teve uma ideia que também ajudaria a superar a brecha digital nas aulas. N’Doufou integra uma equipe de dez marfinenses especialistas em tecnologias da informação que desenvolveram o Qelasy, um tablet de 20 centímetros que será lançado no próximo mês por sua empresa, a Siregex.

“Trata-se de algo mais do que ter sentido pena deles. Trata-se de preencher a brecha digital entre Sul e Norte, e de levar o ensino marfinense para o século 21”, afirmou à IPS. Qelasy significa “sala de aula” em vários idiomas africanos, como akan, malinke, lingala e bamikele. O grupo de especialistas começou a transformar todos os livros de textos em formato digital. “Nos obrigamos a processar tudo de maneira a ter imagens de qualidade para telas de alta definição. Significou muito trabalho”, explicou N’Doufou, diretor-executivo da Siregex.

“Também enriquecemos o programa com imagens e vídeos, de forma a tornar mais agradável a experiência educacional”, detalhou N’Doufou. O tablet utiliza o sistema operacional Android e é resistente à água, ao pó, à umidade e ao calor. “O Qelasy está protegido contra tudo o que um aluno africano sem transporte pode encontrar pela frente quando faz seu caminho entre a escola e sua casa”, acrescentou. “Sabíamos que precisávamos de nosso próprio produto. As necessidades de nossos clientes são muito específicas”, ressaltou.

O tablet, controlado pelos pais e professores, substitui todos os livros de texto, as calculadoras e as lousas individuais para desenhar, frequentemente usadas nas aulas no país. Também pode ser programado para permitir que as crianças naveguem na internet ou acessem jogos em tempos determinados. O pessoal da Siregex também desenvolveu um espaço virtual em que pais e educadores podem comprar mais de mil elementos, como aplicativos, material educativo e livros.

Embora o Qelasy esteja atualmente concentrado na educação, o diretor de marketing da Siregex, Fabrice Dan, informou à IPS que os usuários logo poderão usá-lo para outras coisas. “Acreditamos na tecnologia como forma de conseguir mudanças positivas. E acreditamos na educação. Mas, no fim das contas, oferecemos soluções também em outras áreas, como agricultura e microcréditos”, acrescentou.

O lançamento do Qelasy aconteceu no Congresso Mundial de Telefonia Móvel, realizado em fevereiro em Barcelona, na Espanha. Ainda não está decidido o preço do produto, mas estima-se que ficará entre US$ 275 e US$ 315. Trata-se de um preço alto em um país onde, segundo o governo, apenas dois milhões de seus 23 milhões de habitantes são classificados como classe média, com renda entre US$ 2 e US$ 20 por dia.

Embora N’Doufou espere que o governo compre alguns tablets para os alunos de suas escolas, esse produto beneficiará majoritariamente as classes alta e média do país. No momento, estão disponíveis apenas no mercado marfinense, mas a empresa também tem os olhos voltados para toda a África de língua francesa e inglesa. Contudo, o maior desafio para o sucesso do produto continua sendo o déficit de eletricidade. Em um país onde, segundo o Banco Mundial, apenas 59% da população tem acesso a energia elétrica, um tablet com bateria de oito horas de duração tem uma penetração limitada.

N’Doufou afirmou que “os telefones celulares têm uma penetração de 80% na Costa do Marfim, apesar do baixo alcance da eletricidade. Os moradores das aldeias encontram soluções, e o farão também para isto”. Embora o especialista destaque que o tablet foi criado majoritariamente com conhecimentos marfinenses, explicou que sua montagem ocorreu no centro manufatureiro chinês de Shenzen, onde foram produzidas dez mil unidades. O Qelasy é simplesmente a última das tecnologias desenvolvidas localmente especificamente para atender problemas marfinenses.

Na semana passada o jovem programador Regis Bamba lançou um aplicativo para registrar os números das placas e outros detalhes dos taxímetros. O aplicativo Taxi Tracker permite aos usuários enviar informação do veículo a outros para que possam seguir seu trajeto em tempo real. Seu objetivo e tentar evitar incidentes como o assassinato no mês passado da jovem modelo Awa Fadiga, atacada quando voltava de táxi para sua casa. Esse crime expôs as brechas nos sistemas de segurança e de saúde da Costa do Marfim.

A modelo ficou em coma e não recebeu atenção por mais de 12 horas em um hospital local, que se negou a atendê-la até serem pagos os procedimentos. “É minha reação à sua morte. Vi sua foto e pensei que poderia ter sido minha irmã mais nova. Disse a mim mesmo que não podia ficar de braços cruzados”, contou Bamba à IPS. “Esta é minha solução concreta como cidadão até que as autoridades façam algo significativo para proteger a população. Assim, a morte de Awa não terá sido em vão”, ressaltou.

Em 2013, Jean Delmas Ehui criou o aplicativo Mô Ni Bah, que permite notificar rapidamente um nascimento por meio de um serviço de mensagem de texto, que é recebida por pessoal capacitado que os enviam às autoridades de registro. Trata-se de outra importante inovação em um país onde existem grandes distâncias entre áreas rurais e os centros de registro civil. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), ao menos um terço dos nascimentos neste país não é registrado.

Bacely Yoro Bi, especialista tecnológico, estrategista da internet e organizador do ConnectTIC, grupo que reúne entusiastas das tecnologias da informação em Abidjan, opinou que definitivamente existe um auge desse tipo de inovação na Costa do Marfim. “Estão acontecendo muitas coisas aqui em tecnologia, e não se limitam a Abidjan. Foram criadas muitas companhias startup (emergentes baseadas na tecnologia) com um enfoque local”, destacou à IPS.

Parte do sucesso, segundo Yoro Bi, se deve à cooperação entre os inovadores. “O Qelasy foi possível graças ao fato de haver uma comunidade tecnológica que apoia a si mesma”, destacou N’Doufou. Yoro Bi acrescentou que as invenções marfinenses devem ser exportadas para o resto da África ocidental e para o mundo. Com a criação de zonas comerciais dedicadas à tecnologia nos subúrbios de Abidjan e os investimentos em infraestrutura da internet, ele prevê que os inovadores como N’Doufou e Bamba logo poderão superar as fronteiras nacionais. Envolverde/IPS