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Suprema Corte dos Estados Unidos avaliza fundos abutre com caso argentino

A Suprema Corte dos Estados Unidos. Foto: Mark Fischer by/CC2.0
A Suprema Corte dos Estados Unidos. Foto: Mark Fischer by/CC2.0

 

Washington, Estados Unidos, 18/6/2014 – Duas sentenças da Suprema Corte de Justiça dos Estados Unidos contra a Argentina incentivarão os investidores depredadores e dificultarão a redução da dívida dos países mais desfavorecidos, afirmaram organizações que lutam contra a pobreza.

Ontem, o máximo tribunal norte-americano rechaçou uma apelação apresentada pelo governo argentino diante da decisão de um tribunal inferior que exigia de Buenos Aires o pagamento de US$ 1,5 bilhão aos credores dos fundos abutre, que se negaram a aceitar uma troca da dívida pública do país. Em agosto de 2013, quando se conheceu essa sentença, a Argentina declarou que não a acataria, mas depois moderou sua postura.

Tão logo a sentença foi divulgada, a presidente argentina, Cristina Fernández, afirmou que, desta maneira, os magistrados norte-americanos validam “uma forma de dominação mundial com base na especulação, para pôr de joelhos os países e sua população”. A Argentina conta neste caso com apoio do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial e do governo de Barack Obama.

Esta sentença implica um revés dramático para a Argentina, que luta há anos contra os fundos abutres norte-americanos, NML Capital e Aurelius, para concluir um importante acordo de reestruturação de sua dívida de US$ 102 bilhões, após a suspensão de pagamentos (default) do país em 2001.

O NML Capital, que liderou a demanda contra a Argentina em Nova York, comprou os bônus argentinos por US$ 48,7 milhões e agora a Suprema Corte reconhece como seu direito cobrar US$ 832 milhões por esses papéis. “Um lucro de 1.600% em dólares em poucos anos. Creio que nem o crime organizado consegue essa taxa de retorno em tão pouco tempo”, destacou Fernández em mensagem transmitida por rede nacional de televisão.

O US$ 1,5 bilhão que a Argentina deverá pagar aos fundos abutres são apenas 10% dos bônus que não entraram na troca de 2001. Se o restante da dívida não trocada for apresentada nos tribunais, Buenos Aires enfrentará um processo de aproximadamente US$ 15 bilhões.

Uma segunda sentença, também da Suprema Corte norte-americana, proferida ontem, foi esmagadoramente a favor dos fundos abutres de alto risco e  permitirá aos possuidores de bônus obrigar os bancos internacionais a lhes dar toda ajuda na busca de ativos argentinos.

As sentenças animarão os investidores depredadores e implicam uma derrota importante para os países pobres que buscam reduzir sua dívida, afirmaram em Washington organizações não governamentais.

“Ainda estou aturdido pela notícia, é devastadora”, disse Eric LeCompte, diretor-executivo da Jubileu Estados Unidos, uma rede de organizações religiosas que luta em nível mundial contra a pobreza. “Não só avaliza o comportamento dos fundos de capital de risco como os incentiva. Agora têm novos instrumentos legais para obrigar países como Costa do Marfim e Zâmbia à submissão com bastante rapidez”, disse à IPS.

Em jogo está a estratégia de um pequeno número de fundos de investimento, ou fundos abutre, com sede sobretudo nos Estados Unidos, que compram dívida de países pobres com poucas esperanças de amortização, por uma fração de seu valor nominal. Depois essas empresas apresentam demandas judiciais contra os governos, porque não lhes pagaram 100% do valor dos bônus adquiridos, com a intenção de ficar com parte da renda fiscal e dos fundos de ajuda internacional quando finalmente começam a fluir.

Os fundos desse tipo mantêm suas demandas mesmo quando outros investidores concordam em reduzir a dívida – no que é conhecido como troca de dívida – e aceitam rendimentos inferiores aos esperados que, no entanto, permitem ao governo devedor começar a se recuperar economicamente. Inclusive, um só fundo abutre que não aceita a troca pode anular todo o processo de reestruturação da dívida, já que legalmente o acordo não pode avançar sem a aprovação de todos os possuidores de bônus.

O caso da Argentina começou em 2001, quando deixou de amortizar US$ 102 bilhões em bônus após anos de turbulências que afundaram sua economia. Em 2005 e 2012, ofereceu troca de dívida aos investidores estrangeiros por bônus novos a um quarto de seu valor original.

Cerca de 93% dos credores da argentina finalmente aceitaram a troca, mas o NML Capital e o Aurelius se negaram a aceitar e posteriormente processaram o governo argentino em tribunais nova-iorquinos. “É hora de a Argentina cumprir seus compromissos com os credores, o que beneficiará tanto a economia argentina quanto sua posição internacional”, disse o NML em um comunicado à imprensa após a sentença contra a apelação.

Observadores do processo temem que a decisão da Suprema Corte não só incentive os demais credores da Argentina como fomente as estratégias dos possuidores que não aceitam a troca da dívida. “Esse comportamento já era um dos mais rentáveis do mundo, e esta sentença agora o considera legítimo e o torna ainda mais rentável, já que os investidores terão que gastar menos em litígios”, pontuou LeCompte.

Alguns analistas sugerem que o Aurelis e o NML processaram a Argentina não tanto pelo dinheiro em jogo no caso, mas pelo modelo que uma sentença favorável ajudaria a consolidar no futuro. A decisão do tribunal pode ter numerosas repercussões adversas. Agora, os fundos abutre podem atacar a renda fiscal de países em extrema pobreza, bem como a ajuda internacional que lhes for proporcionada.

As gestões de reestruturação da dívida que prestamistas multilaterais realizam com FMI ou Clube de Paris, que facilitaram a redução da dívida de 90 países em cerca de US$ 573 bilhões, também podem se complicar. Os investidores legítimos provavelmente decidam não participar desse tipo de estrutura já que agora seus investimentos podem correr risco.

Na batalha jurídica da Argentina nos últimos anos, o FMI, o Banco Mundial e o governo de Obama, bem como uma ampla variedade de investidores, apoiaram formalmente Buenos Aires. No começo deste mês, um porta-voz do FMI afirmou que essa entidade “segue profundamente preocupada pelas amplas implicações sistêmicas que a sentença de primeira instância pode ter para o processo de reestruturação da dívida em geral”.

Existem numerosos esforços internacionais em curso que poderiam limitar a ação dos investidores predadores ou criar um sistema de arbitragem internacional que aborde o problema da dívida soberana. Nos últimos dias, o FMI analisou um documento de trabalho destinado a prevenir as crises econômicas mundiais.

Segundo análise da Jubileu Estados Unidos e da New Rules for Global Finance, uma organização não governamental de Washington, busca-se “limitar ou eliminar a conduta predadora extrema que viola as políticas de alívio da dívida, sua reestruturação e o bom funcionamento do sistema financeiro”.

Mas, seja em nível nacional ou internacional, qualquer medida deste tipo só oferecerá uma solução única no médio prazo. A Argentina agora tem até o dia 30 deste mês para fazer os pagamentos a todos os possuidores de bônus, entre eles o NML e o Aurelius, mas pagar o que poderia chegar a cerca de US$ 15 bilhões arriscaria outra inadimplência. Envolverde/IPS