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Uma maldição afeta hidrelétricas amazônicas

A hidrelétrica de Santo Antonio, tal como era vista na fase de construção, em outubro de 2010. Foto: Mario Osava/IPS

Porto Velho, Brasil, 27/2/2012 – “Talvez seja a maldição de Rondônia”, ironizou Ari Ott, ao se referir aos problemas com o início da operação da primeira turbina da Central Hidrelétrica de Santo Antônio, com a qual se desejava implantar no Brasil o novo ciclo de grandes projetos energéticos amazônicos. O gigantesco aparato, feito para gerar 71,6 megawatts, esquentou demais nos testes iniciais em dezembro e exigiu reparos que atrasaram em pelo menos três meses o início de suas operações, agora anunciado para o final de março.

O professor Ott, da Universidade Federal de Rondônia, disse que esses problemas são um “mau agouro” para as 44 turbinas a serem instaladas ao longo de quatro anos no complexo do Rio Madeira, a cargo do consórcio Santo Antônio Energia, formado pelas firmas Odebrecht, Andrade Gutiérrez e outros investidores. Precisamente, o uso de turbina do tipo bulbo e de alta potência é uma inovação em rios da Amazônia, adequada ao baixo declive e fluxo intenso do Madeira. Em Santo Antônio, as águas cairão de uma altura de apenas 13,9 metros.

A dúvida de Ott é se essas máquinas suportarão os abundantes sedimentos deste rio, que é “jovem, de leito ainda indefinido”, e que arrasta grande quantidade de árvores em suas águas. “Quando me banhava perto da cascata Santo Antônio, demorava dias para me livrar do pó fino que penetra nos poros”, recordou Ott, médico e antropólogo de evidente ascendência alemã, e testemunha das transformações que Rondônia viveu nas três últimas décadas.

É praticamente impossível que os responsáveis por uma obra que requer quase US$ 9 bilhões em investimento cometam tal falha técnica e a repitam em outro projeto semelhante com é a hidrelétrica de Jirau, em construção 110 quilômetros para sudoeste no mesmo Rio Madeira. Ambas foram baseadas em estudos sedimentares questionados por ambientalistas. Contudo, a “maldição de Rondônia”, que condenaria ao fracasso os grandes projetos locais, provém das origens deste Estado da Amazônia, no noroeste do Brasil, explicou Ott.

Porto Velho, capital do Estado, nasceu de um acampamento de trabalhadores que construíram, entre 1907 e 1912, a Ferrovia Madeira-Mamoré, para transportar o látex, matéria-prima da borracha natural extraída das seringueiras (Hevea brasiliensis), árvores nativas e dispersas, cuja exportação fazia prosperar a Amazônia do Brasil e da Bolívia. A via natural de saída destas atividades era o extenso Rio Madeira, que desemboca no Amazonas e depois chega ao Oceano Atlântico.

A bacia superior do Madeira abarca o centro e o norte da Bolívia, o sudeste do Peru e o oeste do Brasil. Mas tem um trecho não navegável, acima de Porto Velho até Guajará-Mirim, motivo da instalação dessa linha férrea de 366 quilômetros de comprimento, entre florestas e pântanos. Com sua construção foi cumprido um tratado assinado com a Bolívia em 1903, compensando esse país pelo território conquistado por brasileiros no passado e que deu origem ao Estado do Acre.

No entanto, essa gigantesca obra, o máximo para a época, custou milhares de vidas de trabalhadores vindos de todos os continentes e principalmente das Antilhas colonizadas pelos britânicos. As doenças tropicais, como malária e beribéri, dizimaram essa mão de obra, matando ou incapacitando temporariamente a maioria poucos meses após chegarem, forçando uma substituição constante.

A tragédia incluiu uma crueldade histórica. A ferrovia foi inaugurada quando começava a decadência da borracha amazônica diante dos baixos preços da produção asiática, mais competitiva e em rápida expansão, graças às monoculturas da seringueira a partir de mudas levadas pelos britânicos do Brasil para a Malásia. Sem viabilidade econômica, a ferrovia sofreu interrupções em suas operações, conflitos com os exportadores e o abandono, em 1931, por parte da concessionária Madeira-Mamoré Railway, de capitais norte-americanos e europeus. Continuou, de modo intermitente, até 1972 graças aos esforços do governo brasileiro.

Algo semelhante ocorreu com a implantação de 1.786 quilômetros de linha telegráfica até Porto Velho, outra epopeia liderada pelo comandante Cândido Rondon, herói nacional posteriormente elevado à patente de marechal do Exército e homenageado com o nome do Estado de Rondônia. Suas expedições sofreram, além de malária e outras doenças, inúmeros ataques de indígenas. Sua atitude de nunca contra-atacar, mas de buscar o contato pacífico, inspirou a política de proteção aos povos aborígines no Brasil.

Quando Rondon chegou com seus cabos a Porto Velho, em 1914, já se havia inventado o telégrafo sem fio, recordou Ott. Assim, os trabalhadores que estenderam a linha e operavam os postos telegráficos “ficaram abandonados à sua sorte por décadas”, sobrevivendo “à maneira indígena”, da caça e da pesca, acrescentou. No entanto, a linha não foi uma obra inútil, porque o sistema sem fio não se mostrou eficaz no clima amazônico, segundo Carlos Muller, jornalista que pesquisou a história das telecomunicações brasileiras para seu doutorado. Muller explicou que o telégrafo preparou a rota por onde, cinco décadas mais tarde, avançaria a estrada que fez a ligação entre Rondônia e o restante do Brasil, a BR-364.

Essa estrada se converteu em eixo da expansão agrícola a partir dos anos 1970, com o consequente crescimento do desmatamento, dos conflitos pelas terras de fazendas, da emigração desordenada, da matança de índios e da invasão de suas terras ancestrais, especialmente em Rondônia. Este processo se agravou na década de 1980 com a pavimentação da estrada, um exemplo destacado dos projetos desastrosos financiados pelo Banco Mundial, que se tentou corrigir nas décadas seguintes com o Plano Agropecuário e Florestal de Rondônia, com objetivos ambientais.

A hidrelétrica de Samuel, construída entre 1982 e 1989 no Rio Jamari, afluente do Madeira, é outra obra amaldiçoada como um desastre ecológico. Inundou 540 quilômetros quadrados para gerar 216 megawatts. A título de comparação: Santo Antônio inundará 35% menos área e terá capacidade de geração 14,5 vezes maior. Os garimpos de ouro e cassiterita também tiveram intensa atividade, que deixaram mais chagas sociais e ambientais do que benefícios em muitos lugares do Estado.

Como professor, Ott estuda e orienta pesquisas universitárias sobre os impactos da invasão de Rondônia na saúde dos indígenas, já no terceiro ciclo. Depois de doenças contagiosas, como sarampo e varicela, vieram as “modernas”, como câncer, diabete, cardiopatias e aids, e, agora, as “patologias sociais”, como homicídios frequentes, alcoolismo e violência doméstica, “antes impensáveis nas aldeias indígenas”, afirmou Ott. O estupro, agora comum, não existia em uma cultura em que o homem “era um cavalheiro” nos ritos sexuais, deixando à mulher a iniciativa de decidir o momento da penetração, destacou o médico antropólogo.

Ott se vinga da atual invasão das centrais hidrelétricas enfatizando os retrocessos que devem ser feitos pela empresa nas negociações com os indígenas afetados indiretamente. O grupo karitiana, que “vive bem” em sua reserva a 90 quilômetros de Porto Velho, se deu conta de que a Santo Antônio Energia, o consórcio que constrói a central, oferecia compensações a cada aldeia. Diante disso, triplicaram suas aldeias e conseguiram mais caminhonetes do que as previstas inicialmente. Envolverde/IPS