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Viver da pena no Afeganistão e escrever o que outros não sabem

Mohamad Arif (direita), enquanto prepara um escrito em seu posto diante do prédio do Governo Provincial, na capital do Afeganistão. Aos 70 anos, este coronel da reserva ganha a vida redigindo documentos e cartas para quem não sabe escrever. Foto: Karlos Zurutuza/IPS
Mohamad Arif (direita), enquanto prepara um escrito em seu posto diante do prédio do Governo Provincial, na capital do Afeganistão. Aos 70 anos, este coronel da reserva ganha a vida redigindo documentos e cartas para quem não sabe escrever. Foto: Karlos Zurutuza/IPS

 

Cabul, Afeganistão, 29/9/2014 – Aos 70 anos, Mohamad Arif ganha a vida nas ruas de Cabul, redigindo todo tipo de documento para aqueles não sabem ler nem escrever, que são a grande maioria no Afeganistão. “Fui coronel da Força Aérea afegã, mas a pensão que recebo não dá para sobreviver. Só me resta continuar trabalhando, assim comecei a escrever há dez anos”, disse à IPS, em uma pausa entre dois clientes.

Arif contou que tem dois filhos universitários e que sai de seu posto somente na sexta-feira, dia festivo para os muçulmanos. O resto da semana passa diante do prédio do Governo Provincial, no centro de Cabul. Ali tem seu guarda-sol e a bancada sobre a qual trabalha, material também imprescindível para os demais escribas alinhados diante do muro de concreto que protege o edifício governamental.

“Tem quem peça para escrever uma carta para um parente, geralmente alguém preso. Mas a maioria pede que ajudemos a preencher formulários para a administração”, explicou Arif, o mais antigo redator da rua, tão logo termina seu último serviço, referente a uma reclamação sobre uma herança familiar nunca recebida, pelo qual cobrou 50 afganis (US$ 0,80).

Em seu Plano de Ação para a Alfabetização Nacional do Afeganistão, o Ministério da Educação apresenta dados tão preocupantes como os 66% de afegãos analfabetos, porcentagem que sobe para 82% no caso das mulheres.

Aos 32 anos, Gul Karim também é analfabeto, por isso a solução é se aproximar dos escribas cada vez que precisa realizar algum trâmite administrativo. Vendeu um automóvel, mas não recebeu o dinheiro. “Meus pais chegaram a Cabul vindos de Badakhshan (a nordeste da capital) quando eu era criança e não me mandaram à escola por medo de as crianças rirem de mim”, disse à IPS este jovem tayiko que se sente “muito velho” para aprender a ler e escrever.

Os redatores podem ganhar mais de um dólar por documento que escrevem para os muitos afegãos que não sabem ler nem escrever, em um país onde 66% da população é analfabeta, 82% no caso das mulheres. Foto: Karlos Zurutuza/IPS
Os redatores podem ganhar mais de um dólar por documento que escrevem para os muitos afegãos que não sabem ler nem escrever, em um país onde 66% da população é analfabeta, 82% no caso das mulheres. Foto: Karlos Zurutuza/IPS

 

Os clientes como ele esperam apenas alguns minutos até serem atendidos. Os 15 escribas do lugar conhecem bem seu trabalho, mas, provavelmente, nenhum deles melhor do que Gulam Haydar. Não em vão, este homem de 65 anos trabalhou do outro lado do muro durante décadas. “Fui funcionário neste mesmo prédio até me aposentar, há oito anos, mas não podia ficar parado”, contou à IPS.

Sua idade, acrescentou Haydar, não lhe permite fazer trabalho físico, por isso essa alternativa constitui “uma autêntica salvação”. Os preços oscilam entre os que estão aqui. Cobramos de 20 a 100 afganis (US$ 0,30 a US$ 1,70), dependendo do serviço, afirmou. A renda mensal varia segundo o mês, mas que, em todo caso, a quantia é “bem superior” aos US$ 203 mensais que recebe, em média, um funcionário do governo afegão, pontuou.

Ao seu lado, Shahab Shams, também escriba, concordou. “Isso dá exatamente para sobreviver e mandar meus filhos à escola”, disse este homem de 42 anos, que há 13 trabalha nesse lugar. “No Afeganistão não há trabalho para ninguém, mas muita corrupção”, afirmou. “Aqui se paga suborno por tudo: para obter passaporte ou qualquer outro documento, para matricular os filhos no colégio, nos hospitais, nos prédios governamentais”, denuncia esse diplomado em engenharia pela Universidade de Cabul, que nunca conseguiu exercer sua profissão.

Segundo um estudo do Alto Escritório para Supervisão e Anticorrupção, realizado em colaboração com as Nações Unidas, metade dos cidadãos afegãos pagaram suborno em 2012. O informe estabelece que a corrupção se situa, junto com a falta de segurança e de trabalho, entre as três maiores preocupações da população.

Curiosamente, o estudo revela dados tão surpreendentes como o que indica que 68% da população (contra 42% em 2009) vê com bons olhos um funcionário aceitar subornos para melhorar um salário exíguo, ou que seja aceitável se contratar com base em laços tribais ou familiares.

Seja como for, Leyla Mohamad jamais poderia no passado optar por um posto na administração. Mas hoje em dia não é estranho encontrar mulheres atendendo o público, embora saber ler e escrever continue sendo um requisito básico. Debaixo de sua burka, ela explica à IPS que quer escrever uma denúncia após uma agressão de roubo sofrida em plena luz do dia e diante de seus três filhos, o maior de dez anos.

“Cada dia registramos mais casos como esse”, apontou Abdurrahman Sherzai à IPS, após preencher o formulário. Passamos muito tempo com o processo eleitoral e a economia ficou bloqueada porque muitas empresas dependiam de subvenções governamentais. No final, o desespero leva alguns a assaltar as vítimas mais vulneráveis da sociedade”, pontuou, antes de cobrar pelo último serviço.

Após as eleições presidenciais, com segundo turno realizado em 14 de junho, uma denúncia de fraude forçou uma recontagem dos votos. Mas, no dia 21 deste mês, foi anunciado que o pastun Ashraf Ghani será o novo presidente do Afeganistão e que seu adversário, o tayiko Abdullah Abdullah, será o primeiro-ministro. Um acordo alcançado sem o conhecimento do resultado final das eleições.

O próprio ministro da Educação, Ghulam Farooq Wardak, garantiu à IPS que “nada disso teria ocorrido se o Afeganistão fosse um país completamente alfabetizado”. Mas, acrescentou, “considere que começamos quase do zero, ou melhor, de 95% de analfabetismo há apenas 12 anos”, se desculpou, em seu escritório.

Os dados convidam ao otimismo. “Passamos de apenas um milhão de crianças escolarizadas há 12 anos para quase 13 milhões; de 20 mil professores para mais de 200 mil”, detalhou o ministro, convencido de que no próximo ano a escolarização será completa para toda criança afegã em idade escolar. “A alfabetização total do país será uma realidade em 2020”, ressaltou. Envolverde/IPS