Sociedade

Material didático com conteúdo local pode estimular aprendizado e conservação

por Sarah Schmidt, Revista Pesquisa Fapesp – 

Ao visitar escolas municipais na região de Tefé, no Amazonas, a pedagoga Cláudia Barbosa, analista em educação ambiental do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM), encontra, pregados nas paredes das salas de aula, cartazes de alfabetização com ilustrações distantes da realidade local. “Em vez de ‘ba’ com desenho de uma baleia, poderíamos ter um ‘ba’ de bacuri, um fruto da região de várzea que os alunos consomem no dia a dia. E usar animais da nossa fauna para ensinar, como o tambaqui, o pirarucu e o jabuti”, sugere. Para ela, esse é apenas um dos reflexos da dificuldade de ter currículos escolares e material didático padronizado para todo o país.

Levar para as salas de aula materiais e discussões que abordem os bichos e as plantas típicas do lugar onde o aluno está inserido poderia estimular o interesse pela biodiversidade local, além de melhorar seu senso de conservação. Foi o que revelou um estudo publicado no final de agosto na revista científica Science Advances, do qual Barbosa não participou. 

Com base em questionários aplicados em 2010 com cerca de 2.400 alunos de ensino médio de escolas públicas e privadas de todas as regiões do Brasil, os pesquisadores identificaram dois grupos: o que declarava interesse em estudar temas ligados aos seres vivos de sua região e aquele que rejeitava a ideia. Por meio de um algoritmo estatístico, eles descobriram que esses dois grupos não se distribuíam igualmente pelas regiões brasileiras. Ainda com o uso do algoritmo, que considerou 1.803 respostas válidas (completas), eles compararam, nos dois grupos, o interesse sobre a biodiversidade e a região onde os alunos viviam. Perceberam que, enquanto 50,4% dos estudantes do Norte têm muito interesse em estudar a fauna e flora locais, apenas 33,1% do Sudeste demonstram essa inclinação.

Apesar daqueles mais interessados, muito dificilmente os jovens encontram no material didático informações detalhadas sobre o bioma onde vivem, já que é comum os livros de biologia apresentarem animais exóticos como ursos polares, elefantes ou pinguins, nativos de outros países. O estudo faz parte de um projeto do Programa Biota-FAPESP, no qual uma das vertentes é pesquisar e desenvolver conteúdos sobre a biodiversidade local em materiais didáticos para estudantes do estado de São Paulo. 

Praia de Ipanema, no Rio de Janeiro: jovens na região Sudeste têm interesse menor por biodiversidade, em relação aos do Norte (Foto: Léo Ramos Chaves)

 

O resultado surpreendeu os pesquisadores, que esperavam encontrar um entusiasmo maior pela biodiversidade no Sudeste. Eles procuraram elementos para explicar essa diferença e, com base em levantamento bibliográfico, chegaram a uma hipótese. “Há uma forte influência da cultura indígena na região Norte, da qual faz parte o conhecimento sobre a biodiversidade local”, sugere a pedagoga e bióloga Fernanda Franzolin, da Universidade Federal do ABC (UFABC), primeira autora do artigo. “Os alunos da região Norte parecem estar mais próximos da sabedoria tradicional e demonstram um interesse mais pronunciado por aprender sobre seu bioma. Consideramos que a inclusão desse conhecimento em sala de aula poderia auxiliar a fomentar o interesse dos jovens da região”, avalia.

Essa relação com os saberes locais iria além da proximidade física com o bioma, já que os estudantes que participaram da amostra são de áreas amazônicas urbanas. “Seria mais uma proximidade intermediada por elementos socioculturais”, propõe o biólogo Nelio Bizzo, professor da Universidade de São Paulo (USP) e do campus de Diadema da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), também autor do artigo. “No Sudeste não tem apenas concreto, temos cidades menores e o litoral, onde a população tem mais contato com a natureza, mas a biodiversidade parece se apresentar de forma diferente no Norte.” No artigo os pesquisadores sinalizam, ainda, que os alunos da região Norte podem perceber os fenômenos climáticos no seu dia a dia de forma mais intensa, como o ritmo das cheias dos rios, com o qual os povos ribeirinhos precisam lidar.

Para o pedagogo Paulo Garcia, da Universidade de São Caetano do Sul (USCS), que participou do trabalho, é essencial conhecer esse interesse dos alunos. “Constatar que os estudantes amazônicos têm interesse maior pela natureza e pelos seres vivos locais é uma pista muito importante para a produção de material didático e até mesmo para a elaboração dos currículos escolares”, aposta. Esse material pode incluir outros formatos além do livro, como vídeos e textos on-line que devem ser trabalhados de forma transversal, em mais de uma disciplina. 

Cartilha do Instituto Mamirauá traz conceitos relevantes para a vida na Amazônia, como a diferença entre terra firme (à esq.) e várzea (à dir.) Reprodução

Materiais complementares 

Embora os saberes locais pareçam estar mais presentes no ambiente sociocultural do Norte, o estudo ressalta que as histórias dos povos indígenas e tradicionais dificilmente são abordadas no material de estudo. Há também muitas informações desatualizadas que ignoram, por exemplo, as sociedades pré-colombianas complexas que teriam povoado a Amazônia. “Essa abordagem precisa ser revista e é de interesse de todos os estudantes brasileiros, não só dos que vivem na região. O Brasil precisa conhecer a Amazônia”, afirma Bizzo.  

Para reduzir essa lacuna por conteúdo local em escolas das reservas Mamirauá e Amanã, na região de Tefé, a pedagoga Cláudia Barbosa uniu-se a outros educadores ambientais do Instituto Mamirauá e elaborou duas cartilhas que servem como material didático complementar, publicadas em 2016 e reimpressas em 2019. A primeira, Na comunidade eu aprendo: Conservando o nosso ambiente, se dirige aos estudantes do ensino fundamental. Traz informações e atividades sobre a dinâmica das várzeas e os efeitos das mudanças climáticas sobre elas, mostra como as árvores sobrevivem com as raízes submersas e menciona animais nativos, como a onça-pintada.

A segunda, Educação e ambiente: Aprendendo com viveiros educativos, tem os professores como público-alvo. O material apresenta metodologias de educação ambiental, instigando os educadores a observarem a fauna local junto com os alunos. As duas cartilhas foram construídas com base em oficinas com a participação de 76 professores do ensino fundamental. Ao todo, foram distribuídos 2 mil exemplares: metade para professores de áreas rurais e a outra, para o município de Tefé. “Eu fico aflita quando se trabalha em sala de aula apenas animais como a baleia e o hipopótamo, ou frutas como a uva, que alguns alunos até confundem com o açaí. Estamos em um laboratório vivo, onde há muito o que explorar”, comenta Barbosa. 

O uso de exemplos da fauna local, como o tambaqui, pode contribuir para o ensino na região amazônica (Foto: Léo Ramos Chaves)

 

Outros biomas nos materiais didáticos 
Tigres, leões, búfalos, coalas e animais de outros países habitaram a Mata Atlântica em desenhos de alunos do ensino médio de Santa Catarina. Um estudo que analisou a percepção de 270 jovens sobre o bioma, publicado na revista científica Interciência em janeiro de 2020, mostra que, apesar de terem desenhado mais espécies nativas, eles “parecem estar mais familiarizados com aquelas que conhecem por meio de fontes diversas (livros didáticos, televisão e internet)”. A pesquisa ainda aponta um baixo conhecimento sobre botânica local e sugere que, “principalmente nas disciplinas de geografia e biologia, deve ser dada ênfase para os conteúdos relacionados à biodiversidade e às paisagens locais, para depois introduzir conteúdos regionais”. 

Já alunos de escolas municipais de Uruguaiana, no Rio Grande do Sul, têm acesso a informações escassas, erradas e desatualizadas sobre o Pampa, bioma no qual estão inseridos. Essa foi a conclusão de um estudo que analisou os 10 livros didáticos mais usados na rede pública. “Além de ser o bioma menos abordado, o Pampa aparece como um lugar de agronegócio, uma lavoura. São raras as exceções que mostram para os alunos que ali, no lugar onde vivem, existe uma infinidade de espécies”, constata o biólogo Luis Bortoluzzi Castro, da Universidade Federal do Pampa (Unipampa) e primeiro autor do artigo, publicado em 2019 na Revista Electrónica de Investigación en Educación en Ciencias

Em outra pesquisa, com 94 alunos do ensino fundamental de três escolas públicas da cidade, Castro e outros pesquisadores mostraram que a maioria dos estudantes tinha uma percepção inadequada ou fragmentada sobre o Pampa, segundo artigo publicado na revista Exitus em 2019. Ele acrescenta que a Base Nacional Comum Curricular, do Ministério da Educação (MEC), indica que os ecossistemas brasileiros devem ser estudados no ensino básico e reconhecidos regionalmente. Por isso, ele defende que os materiais didáticos devem trazer um olhar especial para o local em que os estudantes estão inseridos. “Só assim se tornarão adultos conscientes de sua realidade e poderão tomar decisões com conhecimento. São eles que vão pautar políticas públicas futuras”, observa. 

Crianças da região Sul aprendem pouco, e muitas vezes recebem informações erradas, sobre o Pampa (Foto:Chico Ferreira / Flickr)

 

Para a historiadora Circe Bittencourt, da Faculdade de Educação da USP, o material didático – tema que estuda há mais de 30 anos – está cada vez mais universalizado. “Em nossas pesquisas, temos mostrado a dificuldade em termos a produção de material didático que aborde a história, a geografia e a literatura locais”, observa. Ela atribui a situação a dois pontos principais: o primeiro é a falta de interesse econômico por parte de editoras, que precisariam investir na elaboração de novos conteúdos – a etapa mais cara – e ainda teriam o número de exemplares reduzido para cada publicação. O segundo é o sistema educacional voltado para o vestibular, com pouco espaço para temas locais. 

Nesse cenário, Bittencourt defende que são necessárias políticas públicas que exijam material com conteúdo regional. Também acha que as universidades podem ajudar. “Por estarem próximas das realidades locais, elas podem atuar na pesquisa e na elaboração de conteúdos didáticos relevantes”, afirma. As instituições têm um papel importante na formação dos professores, que precisa ser olhado com atenção. “Os livros didáticos também ajudam a formar o professor. É com base neles que ele prepara as aulas.” 

O papel do professor está entre as preocupações de Bizzo e seus colaboradores. “Estamos analisando um conjunto de dados para entender se devemos oferecer material didático centrado na região onde o estudante vive, ou fornecer uma diversidade de materiais focados no professor e delegar a ele essa decisão de direcionar o olhar dos estudantes”, conclui. 

Projeto
O Programa BIOTA-FAPESP na educação básica: Possibilidades de integração curricular (nº 16/05843-4); Modalidade Projeto Temático; Programa Biota; Pesquisador responsável Nelio Marco Vincenzo Bizzo (USP); Investimento R$ 747.689,03.

Artigos científicos
FRANZOLIN, F. et al. Amazon conservation and students’ interests for biodiversity: The need to boost science education in Brazil. Science Advances. v. 6, n. 35, p. 1-10. 26 ago. 2020.
CASTRO, L. R. B. et al. Os biomas brasileiros nos livros didáticos de ciências: Um olhar ao Pampa gaúcho. Revista Electrónica de Investigación en Educación en Ciencias ‒REIEC. v. 14, n. 1. p. 38-49. jul. 2019.
CASTRO, L. R. B. et al. Percepções de alunos do ensino fundamental sobre o bioma Pampa, no oeste do Rio Grande do Sul, Brasil. Revista Exitus. v. 9, n. 4, p. 290-318. out. 2019
ZANINI, A. M. et al. Percepções de estudantes do Sul do Brasil sobre biodiversidade da Mata Atlântica. Interciência. v. 45, n. 1. p 15-22. jan. 2020.

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