Copa: Legado está na forma como as pessoas enxergam o transporte – e não nas obras de mobilidade

A Semana da Mobilidade acontece anualmente em quase duas mil cidades de todo o planeta. De 16 a 22 de setembro, os municípios promovem ações e debates que permeiam temas como transporte, direito à cidade e qualidade dos serviços urbanos. A proposta visa encorajar os gestores públicos a investir em diferentes formas de locomoção pelas ruas.

O evento, que culmina com o Dia Mundial Sem Carro, será realizado no Brasil dois meses após 12 capitais terem sediado a Copa do Mundo de 2014, que movimentou um investimento pesado em mobilidade urbana. Ao todo, através de financiamento, o governo federal aportou o montante de R$ 4,4 bilhões para a execução de 45 obras de mobilidade previstas na Matriz de Responsabilidades, documento que continha as obras de infraestrutura que deveriam ser realizadas para o Mundial. Somado aos investimentos estaduais, municipais e do Distrito Federal, esse valor atinge R$ 8,02 bilhões. O balanço é do Portal da Transparência, site que divulga as despesas relativas ao megaevento.

Rio de Janeiro. Foto: Daniel Basil
Rio de Janeiro. Foto: Daniel Basil

 

As construções programadas baseavam-se principalmente em corredores exclusivos, obras de Bus Rapid Transit (BRT) e Veículo Leves sobre Trilhos (VLT), estações de metrô, terminais de ônibus, Centrais de Controle de Tráfego (CCT) e expansão de avenidas no entorno dos estádios. “As obras de mobilidade, tanto da Copa quanto das Olimpíadas, não atendem as demandas que as populações das cidades lutam há muito tempo”, afirma Monique Felix, militante do Movimento Passe Livre (MPL). Ela acredita que, apesar de o discurso oficial priorizar o transporte coletivo, muitos dos projetos contemplavam a construção de vias que ainda apostam em um modelo de transporte individual – no total, o governo brasileiro projetou 134 quilômetros de infraestrutura exclusivamente rodoviária.

quadro1A opinião é compartilhada por Marcos de Sousa, editor do portal Mobilize Brasil. “Quando você melhora muito o sistema de transporte público, vai desestimular o uso do carro. Para abrir espaço para BRTs, corredores de ônibus, alargar as calçadas e fazer ciclovias, você vai ter que retirar espaço dos automóveis e restringir o horário que eles podem circular”, argumenta. “Mas o carro move uma enorme cadeia econômica, desde o flanelinha até a indústria automobilística – passando pela Petrobrás e pelas seguradoras. Essa cadeia econômica reúne milhares de empregos e depende do automóvel. Mexer com ela é mexer com muita gente que tem poder político e econômico.”

A primeira impressão de Juciano Rodrigues, pesquisador do Observatório das Metrópoles, é que as promessas para a mobilidade urbana serviram para convencer a população de que valeria a pena gastar volumosos recursos públicos no megaevento – inclusive nas intervenções de pouco valor social, como muitos dos estádios construídos em cidades com pouca tradição futebolística. “Há um enorme abismo entre o que foi prometido e o que de fato foi construído. Ou seja, se exige um legado social, ele é incompleto”, aponta.

Ele cita a construção do BRT Transcarioca como exemplo de que faltou um bom planejamento para as obras. “Apesar de terem construído uma infraestrutura que corta a cidade do Rio de Janeiro, parte da população encontra inúmeras dificuldades para acessá-la”, diz. Segundo Monique, essa obra cortou linhas de ônibus e aumentou o tempo de viagem, provocando insatisfação popular.

Para ela, o “legado social” prometido simplesmente nunca chegou. “No jogo de interesses, os lucros dos especuladores da cidade, dos empresários, das multinacionais que vendem soluções para o transporte está para os governantes sempre acima das necessidades da população e dos trabalhadores do transporte.”

Belo Horizonte.Marcus Desimoni
Belo Horizonte.Marcus Desimoni

 

Em sedes litorâneas, como Rio de Janeiro, Salvador e Fortaleza, Rodrigues considera que perdeu-se uma grande oportunidade para investir em transporte aquaviário. Para ele, até mesmo o potencial dos rios de São Paulo, Recife e Manaus foram ignorados.

Uso da cidade

Além da priorização dos modos motorizados de locomoção – sobretudo o transporte individual –, Rodrigues analisa que as propostas de transformação na mobilidade urbana para a Copa também incentivaram o surgimento de periferias distantes dos centros de emprego, revelando o modelo de cidade que está sendo implementado no Brasil. “Esse movimento contribui para a expansão das cidades, tornando seus territórios cada vez mais complexos, assim como as necessidades de deslocamento dentro dele”, explica.

“Há muitas obras que vão contribuir para que as cidades cresçam para o lado errado”, afirma Sousa. “O custo de uma cidade expandida é muito elevado. Uma cidade contemporânea tem que ser compacta, proporcionar emprego, lazer, saúde e educação próximos à moradia.” Rodrigues lamenta ao constatar que as obras estão longe de resolver os problemas de uma população que se desloca cada vez mais por grandes distâncias.

Curitiba
Curitiba

 

Por outro lado, Monique reforça a importância de que o sistema de transporte urbano dê acesso não apenas aos locais de trabalho, mas à cidade como um todo, incluindo os equipamentos de cultura, os espaços de convivência, lazer e aprendizado.

Vontade política

Em março de 2014, a agência LeadPix divulgou pesquisa que mostrou a insatisfação popular com os projetos de mobilidade urbana para a Copa do Mundo no Brasil. Àquela altura, para 92% dos cariocas, 91% dos cuiabanos, 89% dos paulistanos, 88% dos porto-alegrenses, 85% dos belo-horizontinos e 83% dos brasilienses, a mobilidade urbana era considerada a maior deficiência na preparação para o torneio.

Essa percepção, segundo o editor do Portal Mobilize, decorre da transformação na forma como os cidadãos entendem o transporte urbano, alcançada a partir das manifestações populares de junho de 2013 e após as greves dos trabalhos rodoviários.

A Lei de Mobilidade Urbana, sancionada em janeiro de 2012, traz orientações e linhas de financiamento para que as cidades criem uma mobilidade urbana sustentável e estimulem as pessoas a se locomover de modos não-motorizados e utilizando transporte coletivo. Segundo Rodrigues, porém, nenhum município do Brasil elaborou seu Plano de Mobilidade Urbana, uma exigência para que a cidade receba recursos do governo federal. “É muito mais interessante e efetivo pensar na mobilidade a longo prazo do que no horizonte curto da realização de uma Copa do Mundo”, ressalta.

Sousa acrescenta ainda como indicador da mudança de mentalidade do brasileiro, o fato de que quase 92% do total de 345 mil pessoas que assistiram ao torneio em São Paulo chegaram ao estádio de metrô ou trem. No Rio de Janeiro, o metrô transportou cerca de 690 mil torcedores.

“Aqui temos o costume de achar que transporte público é coisa de pobre. Durante a Copa, vimos gente de todos os cantos do mundo utilizando e aprovando o sistema de transporte público. Os estrangeiros naturalmente usaram o transporte coletivo porque é assim no mundo inteiro”, opina.

Já Rodrigues enxerga uma retomada de investimentos no transporte coletivo. “Mas isso não é sinônimo de melhoria imediata nas condições de deslocamento da população. No momento em que o tema da mobilidade urbana toma outra dimensão na discussão sobre o futuro do país, é imprescindível discutir as soluções que estão sendo propostas pelos diversos níveis de governo.”

Sobre o montante dos R$ 8,02 bilhões investidos pelo poder público, Monique lembra que o Movimento Passe Livre afirma há anos que existem recursos para garantir a tarifa zero nos transportes coletivos. “O que falta é vontade política para investir.”

* Publicado originalmente no site Portal Aprendiz.