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De novos ricos a novos pobres

Lisboa, Portugal, 1/8/2011 – “A crise é só para alguns”. Esta é a frase mais ouvida e lida em Portugal após os ajustes impostos em maio pela União Europeia (UE) e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) para conceder um resgate financeiro de US$ 112 bilhões. De fato, enquanto os vendedores de automóveis esportivos de luxo se queixam de não poderem atender aos pedidos no prazo desejado pelos clientes, o Banco de Alimentação contra a Fome (BAF) enfrenta problema semelhante, por não poder realizar integralmente seu trabalho.

Até 2009, os usuários exclusivos do BAF eram as famílias mais pobres. Atualmente, no entanto, recebe pessoas da classe média que, rompendo a barreira da vergonha, pedem alimentos e apoios médico e espiritual. A organização Defesa do Consumidor (Deco) recebe diariamente pedidos de ajuda feito por pessoas incapacitadas de cumprirem suas obrigações junto a bancos e demais entidades financeiras que, somente em junho, retomaram por falta de pagamento as casas de aproximadamente três mil famílias.

A economia de Portugal, que nos últimos 25 anos conseguiu abandonar a sina de país periférico e apresentava um futuro promissor, caiu no fundo do poço da crise em 2009, com o inevitável aparecimento de milhares de novos pobres, antes membros da classe média, principal vítima dos aumentos de impostos, das reduções salariais e dos prêmios em dinheiro, bem como demissões de um dia para outro.

Desde sua entrada na UE, em 1986, Portugal registrou um claro avanço. Porém, todos os economistas hoje concordam que este êxito foi mais virtual do que real. O crédito fácil sustentado nos rios de dinheiro proveniente do bloco se refletiu na proliferação dos telefones celulares, canais de TV a cabo, rodovias, automóveis e casas adquiridas a prazo.

O consumo desenfreado sacrificou o desenvolvimento agrícola e industrial, para dar lugar a um vasto setor dos chamados “novos ricos”, orgulhosos do país com mais autopistas por quilômetro quadrado e os maiores centros comerciais da Europa, modernos estádios de futebol e ciclovias, entre outras melhorias idílicas.

Contudo, esta aparente riqueza era uma miragem. Não tinha relação alguma com a realidade econômica de Portugal, afirmam os analistas. Após três décadas vivendo muito acima de suas possibilidades, chegou a hora de pagar a conta do consumo desmedido e da falta de visão das classes política e empresarial sobre o desenvolvimento real do país.

A crise assumiu tal magnitude que o crédito oferecido até 2009 quase automaticamente, sem avaliação de risco, agora é negado sistematicamente às mesmas pessoas, pequenas empresas e minifúndios que, como denúncia a Deco, foram vítimas diante das incessantes campanhas dos bancos para convencer seus clientes a se endividarem sem limites.

As consequências não demoraram. Com os créditos cortados, centenas de empresas se declararam em bancarrota, arruinando os pequenos proprietários e jogando no desemprego milhares de trabalhadores. Portugal apresenta hoje indicadores negativos, com desemprego de 12,4% da população economicamente ativa, a mais alta dos últimos 30 anos, e inflação de 3,4% ao ano, a maior em duas décadas.

Ao mesmo tempo, paradoxalmente, a fortuna dos 25 portugueses mais ricos cresceu este ano 17,8%, chegando a US$ 25 bilhões, equivalentes a 10% do produto interno bruto deste país de 10,6 milhões de habitantes, dos quais 25% estão abaixo da linha de pobreza pelos padrões da União Europeia. Estes dados, segundo a escala do indicador norte-americano Misery Index, colocam Portugal em quinto lugar no mundo como país mais afetado pela deterioração de seu bem-estar econômico, atrás apenas de Egito, Nova Zelândia, Irlanda e Ucrânia.

No primeiro trimestre deste ano, 3.104 empresas declararam insolvência, segundo foi divulgado no dia 29 pela sede portuguesa da Companhia Francesa de Seguro para Comércio Exterior (Coface). O governo do primeiro-ministro socialista José Sócrates (2005-junho de 2011) impôs medidas drásticas para conter o alto déficit, redobradas agora por seu sucessor, o conservador Pedro Passos Coelho, que dessa forma responde com um brutal pacote de austeridade. A isto se soma a eliminação dos estímulos fiscais para aumento da demanda, o que pressupõe que será o setor privado que deverá fornecê-los.

“Esta é uma teoria econômica simples, uma visão monetarista, de deixar que o dinheiro vá para quem sabe usar, ou seja, empresários e bancos”, disse à IPS o professor de economia Mario Gomes, da Universidade de Lisboa. A direita agora no poder “começou em curto tempo a mostrar suas intenções profundas: eliminar radicalmente parte do Estado Social, baixar os salários e desarmar as empresas estatais vitais que dão estabilidade à economia”, acrescentou.

Um modelo semelhante ao colocado em prática na Grã-Bretanha por Margaret Thatcher (1979-1990), baseado nas teorias da escola de Chicago de Milton Friedman, perguntou Gomes, respondendo que se trata de “um projeto ultraliberal, equivalente ao conjunto de reformas que algumas ditaduras sul-americanas fizeram nos anos 1970 e 1980, mas aqui de forma gradual”.

Portugal, que após quase dez anos de crescimento econômico muito baixo entrou em recessão este ano, e assim estará até 2012, segundo as projeções, “esgotou o ciclo de desenvolvimento que começou com a integração europeia, em 1986, e que estendeu o comércio externo aproveitando o diferencial dos salários”, afirmou o catedrático.

Com os fundos da UE, “Portugal modernizou e ampliou a infraestrutura, conseguiu resolver o problema da moradia e viu dobrar o setor turístico”, disse Gomes. “Porém, apesar de ter contado com recursos importantes para modernizar o setor produtivo, sacrificou a indústria, a agricultura e a pesca, em um processo de desindustrialização”, acrescentou.

As análises da maioria dos economistas coincidem. Afirmam que não basta economizar nos gastos do Estado para encontrar soluções para a deterioração econômica do país, que precisa urgentemente encontrar formas de expansão industrial, desenvolvimento dos serviços e racionalização da agricultura. As duas poderosas centrais sindicais anunciam protestos e greves, enquanto os movimentos autônomos asseguram que não darão descanso ao governo de Passos Coelho.

O jovem ativista João Martins, do movimento Geração em Apertos, recordou à IPS que os “indignados” espanhóis tiveram sua origem “com nossa organização, que nasceu espontaneamente em Portugal dois meses antes deles na Espanha”. Este movimento conseguiu reunir, no dia 12 de março, milhares de jovens por meio das redes sociais e dos telefones celulares, aos quais rapidamente uniram-se mães, país, avós e avôs.

Em poucas horas, fizeram com que cerca de 300 mil pessoas ocupassem o centro de Lisboa, Porto e outras seis cidades do país com o lema “a rua é nossa”. Martins prevê que “a crueldade, a cegueira e a insensibilidade das medidas tomadas por este governo, inevitavelmente provocarão um novo 12 de março e a rua voltará a ser nossa”. Envolverde/IPS