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De vítimas a culpadas por força de lei

Cabul, Afeganistão, 5/4/2012 – Mursal, uma bonita jovem de 19 anos que saiu de casa fugindo de um marido com problemas psiquiátricos, é apenas uma das muitas mulheres e meninas que agora no Afeganistão, segundo as novas leis, passaram a ser culpadas por crimes de “moralidade”. Fugir do marido é considerado um “delito moral”, por isso centenas de afegãs foram presas e outras centenas correm o risco de receber a mesma pena.

“Quando tinha 11 anos, me obrigaram a casar com um homem mentalmente doente. Eu ainda era uma criança e não tinha nenhuma informação sobre sexo e casamento. Acabara de fugir da minha casa porque a segunda mulher do meu pai me batia”, contou Mursal à IPS. As lembranças desses anos ainda estão frescas em sua mente. As evoca em um abrigo de mulheres em Cabul, longe de seu antigo lar.

“Minha mãe morreu quando eu tinha um ano, e desde então minha vida foi um inferno. Por isso que há nove vim para este abrigo. Um ano depois meu pai chegou e me obrigou a ir para Maidan Shar, viver com minha prima. Um mês depois casei”, contou. “Como meu marido tem muitos problemas mentais. As pessoas começaram a dizer que eu era prostituta. Uma noite começaram a gritar diante da minha casa, então fugi e estou aqui há três dias”, acrescentou.

Ao vê-la usando um bonito vestido bordado e um lenço que parecem não combinar com seu humilde entorno, não se pode evitar pensar que Mursal fugiu levando suas posses mais apreciadas sobre as costas, e pouco mais. Agora quer se divorciar, mas sabe que não será fácil obter o consentimento de seu marido, que muda segundo seu ânimo instável e as opiniões dos que o cercam. De todo modo, ela está segura de que quer se casar novamente, mas com um homem de Cabul. “Os homens da cidade são melhores do que os das aldeias”, disse esperançosa e com lágrimas nos olhos.

Para mulheres como Mursal não há muitas alternativas ao casamento, porque uma mulher que vive sozinha no Afeganistão é considerada prostituta, mesmo tendo outro trabalho. Felizmente, o abrigo em que vive, administrado pela organização não governamental Humanitarian Assistance for the Women and Children of Afghanistan (Hawca – Assistência Humanitária para as Mulheres e as Crianças do Afeganistão), ensina a ler e escrever e tem aulas de costura. Duas das mulheres do abrigo inclusive agora são policiais.

Há dois anos, uma proposta de mudança de legislação esteve perto de fazer fechar todos os abrigos privados e colocá-los sob controle do governo, mas protestos de multidões conseguiram fazer com que se chegasse a um acordo pelo qual as autoridades só administrariam os “abrigos abertos” e as organizações não governamentais cuidariam dos “fechados”. Até agora, o governo não abriu nenhum abrigo próprio, por isso a polícia continua enviando mulheres em perigo para os centros a cargo de organizações não governamentais.

Em Cabul há apenas três deles funcionando, e em todo o país são 14, inadequados para atender as necessidades de uma quantidade cada vez maior de sobreviventes da violência doméstica. As mulheres também recorrem à autoimolação como modo de evitar os abusos domésticos, preferindo morrer de forma dolorosa do que seguir adiante com uma vida de sofrimentos. O hospital Istiqlal, de Cabul, abriu um departamento especial para queimados, 90% dos quais são mulheres. A maioria delas morre devido à gravidade das queimaduras.

No entanto, as pacientes queimadas nem sempre são vítimas de autoimolações. Ocorre muito frequentemente de seus maridos ou parentes atearem fogo nelas. Por isso, se informa à polícia sobre todos os casos de queimadas, para as investigações pertinentes, explicou Harir, médico em Istiqlal. Lamentavelmente, a maioria dos membros da força policial está mal equipada para lidar com as denúncias de violência doméstica que as mulheres apresentam. E a elas mesmas preocupa serem violadas por algum policial.

Para abordar esta situação, a Hawca realiza cursos para os policiais, “mas não é fácil mudar um legado cultural”, disse à IPS a presidente da organização, Selay Ghaffar. Ela também admite que as mortes por honra continuam sendo um problema importante, “em muitos casos oculto pela tribo ou pela comunidade. A menina ou a mulher simplesmente desaparece”, lamentou. “Em outros casos, o movimento extremista Talibã assume a execução, apedrejando as meninas”, disse Ghaffar. Também há casos generalizados de torturas.

“Sarah Gul foi torturada por seu marido porque se negou a se prostituir”, contou à IPS a afegã Malalai Joya, ela mesma vítima da violência estatal em represália por obter uma cadeira no conselho de anciãos da região de Farah. Ela apanhou após fazer um discurso contra os senhores da guerra do Talibã, enquanto alguns parlamentares gritavam “violentem-na”. Agora seu caso é famoso em todo o país.

Gulnaz, de 21 anos, também ficou nacionalmente conhecida por apresentar uma queixa na polícia após ser violada por seu primo, um homem poderoso da comunidade local. Em lugar de prender o criminoso, a polícia condenou Gulnaz por adultério. A alternativa que tinha para não cumprir a sentença de três anos na prisão era se casar com o homem que a violentara. Ela se negou.

Estes “crimes morais” estão determinados por um procedimento legal que não está na Constituição, sendo determinado por vagos conceitos religiosos. Assim, agora, quando as mulheres fogem de casa são condenadas à prisão. Denunciar que foram violadas faz com que fiquem rotuladas com adúlteras e negar-se a um casamento forçado é crime.

Os líderes religiosos afegãos emitiram uma declaração para limitar as já escassas liberdades femininas. Por exemplo, uma mulher não pode falar com um homem desconhecido, e o marido está autorizado a bater nela se não o obedecer. Este documento tem apoio do presidente, Hamid Karzai, que proibiu a publicação da versão inglesa no site do governo. Tudo isto corre sob o “controle” da comunidade internacional e de várias forças armadas ainda presentes no Afeganistão.

“Mais de dez anos depois da queda do Talibã (que governou o país entre 1996 e 2001), a situação das mulheres piora dia a dia”, denunciou à IPS a senadora Bilqis Roshan, que diariamente recebe más notícias sobre as mulheres de sua região de Farah. “A maioria dos senadores é de senhores da guerra e fundamentalistas religiosos, por isto é muito difícil assumir posições a favor dos direitos das mulheres. Entretanto, pelo menos posso apresentar o tema e elevar a voz do meu povo”, ressaltou. Envolverde/IPS