Arquivo

Gás mortal contra a Primavera Árabe

Manifestantes no Cairo agitam latas de gás lacrimogêneo vazias. Foto: Cam McGrath/IPS

Cairo, Egito, 20/12/2011 – Uma toxina misteriosa misturou-se às densas nuvens de gás lacrimogêneo utilizado nos últimos meses pelas forças de segurança de vários países do Oriente Médio para sufocar os protestos antigovernamentais, segundo denúncias de ativistas. “Me senti fraco e enjoado por vários dias, e minhas mãos tremiam”, recordou o egípcio Mahmoud Hassan, um executivo de marketing que em novembro esteve hospitalizado após inalar gás lacrimogêneo lançado em um protesto do qual participou contra o regime militar no Cairo.

O gás usado contra ao manifestantes foi muitas vezes mais forte do que o utilizado pelas forças de segurança durante o levante de 18 dias que em fevereiro derrubou o regime de Hosni Mubarak (1981-2011), afirmou Hassan. “Isso não era gás lacrimogêneo, era algo mais. Queimava a pele e os pulmões, e todos caímos no chão tremendo incontrolavelmente”, ressaltou. Suspeita-se que um gás similar causou as mortes de pelo menos oito civis no Bahrein desde fevereiro. No Iêmen, vários médicos informaram que manifestantes contrários ao governo que estiveram expostos ao que parecia ser gás lacrimogêneo chegaram aos hospitais paralisados, inconscientes ou com convulsões.

Os tratamentos que habitualmente recebem as pessoas expostas a esse tipo de gás não tiveram nenhum efeito. “Vimos sintomas no sistema nervoso dos pacientes, não em seus sistemas respiratórios. Estou 90% seguro de que o que usaram foi gás nervoso e não gás lacrimogênio”, disse em março o médico Sami Zaid, do Hospital de Ciência e Tecnologia de Sanaa. O gás lacrimogêneo convencional é um pó branco composto de clorobenzilideno malononitrilo, comumente conhecido como CS. Este produto químico foi desenvolvido para controlar as multidões, na década de 1950, demonstrando ser um irritante mais poderoso e menos tóxico do que a cloroacetofenona (CN), à qual substituiu amplamente.

Não está claro se os numerosos informes sobre gás tóxico envolveram um fabricante ou composto químico, ou muitos. Contudo, os sintomas observados, seja no Cairo ou em Sanaa, são muito similares: uma forte sensação de queimadura na pele e nos pulmões, náuseas, paralisia, convulsões e, em alguns casos, inclusive a morte. As latas de gás lacrimogêneo recuperadas em áreas de cidades árabes onde houve manifestações ostentam marcas de diferentes empresas. A maioria encontrada perto da Praça Tahrir, no Cairo, tinha o selo de fabricação da Combined Tactical Systems (CTS), uma empresa norte-americana que produz irritantes químicos e munições de fumaça para forças militares e policiais de todo o mundo.

Outras latas de CS apresentavam os logotipos da norte-americana Federal Laboratories e da fábrica de armas britânica Chemring Defence. “Pensamos que as latas da CTS estão causando estes estranhos sintomas”, relatados no Egito, disse Sherif Azer, da Organização Egípcia de Direitos Humanos. “Também encontramos algumas latas sem marca alguma”, acrescentou. Por outro lado, a maioria das latas recuperadas no Bahrein trazem o nome da norte-americana NonLethal Technologies. A Federal Laboratories, a CTS, a Chemring e a companhia francesa de segurança SAE Alsetex também forneceram gás lacrimogêneo a esse Estado do Golfo nos últimos anos. A CTS é um dos principais fornecedores do governo iemenita em matéria de agentes para controle de distúrbios.

Os ativistas pelos direitos humanos que investigam as denúncias analisam várias teorias. Uma é que a substância usada contra os manifestantes da região foi a dibenzoxazepina (CR), cujo efeito lacrimogêneo é dez vezes mais potente do que o CS. Produz efeitos semelhantes a este, além de causar intensa dor na pele e nas membranas expostas, e se torna mais severa quando misturada com água. Esta forma altamente persistente de gás lacrimogêneo foi usada pelas forças israelenses para sufocar manifestações nos territórios palestinos, e também pelas forças norte-americanas contra combatentes inimigos, mas foi mantida afastada do uso civil devido às suas propriedades cancerígenas.

Embora várias pessoas tenham relatado que viram latas usadas de gás lacrimogêneo marcadas com CR no Egito e no Bahrein, jornalistas e ativistas pelos direitos humanos que investigam o assunto não conseguiram verificar estas denúncias. “Vimos apenas latas que diziam CS, mas não podemos descartar que algumas tenham sido rotuladas errado ou alteradas para aumentar sua potência”, disse Azer. A acusação comum é que as forças de segurança usam gás lacrimogêneo vencido. O gás CS tem vida útil de três a cinco anos, mas ativistas no Bahrein e no Egito publicaram fotos de latas usadas com datas de produção de mais de uma década. Segundo eles, com o tempo o CS se desintegra e seus componentes químicos formam perigosas substâncias derivadas.

Uma preocupação é que nas latas vencidas se concentre malononitrilo. Quando aquecido, este pó ácido se degrada em cianureto de hidrogênio, um gás altamente tóxico, o mesmo usado com efeito letal na Alemanha nazista. Fontes médicas dizem que os sintomas do envenenamento com cianureto incluem debilidade, náuseas e dificuldades respiratórias. As concentrações maiores podem causar perda de consciência seguida de convulsões, tremores e apneia. Menos de um grama de cianureto é mortal. O neurologista Ramez Moustafa, da Universidade Ain Shams do Cairo, observou, no mês passado, muitos destes sintomas durante suas visitas a hospitais móveis na Praça Tahrir.

“Meus colegas e eu vimos casos em que o gás lacrimogêneo causava convulsões e movimentos involuntários”, disse Moustafa à IPS. “Mesmo em altas concentrações, o gás lacrimogêneo comum não afeta o sistema nervoso. Segundo alguns relatos, algumas pessoas morreram” pelos ataques causados pelo gás, advertiu. Porém, Kamran Longhman, ex-presidente da Zarc International, fabricante de aspersores químicos não letais, afirmou que o gás lacrimogêneo, em geral, perde efetividade e, às vezes, nem mesmo consegue soltar fumaça quando está vencido, e que não se transforma em outro produto. Segundo Longhman, o mais provável é que os sintomas observados sejam consequência de uma exposição excessiva.

Desde o começo da Primavera Árabe as forças de segurança intensificaram o uso de gás lacrimogêneo para enfrentar a crescente tolerância dos manifestantes a essa irritante substância, seja devido a uma reiterada exposição ou a meios físicos como máscara antigás e óculos protetores. Alguns vídeos mostram a polícia reprimindo manifestações com gás lacrimogêneo, frequentemente em espaços reduzidos. Doses maiores deste gás podem submeter um indivíduo a uma concentração intolerável. Nesse sentido, alguns estudos dizem que, após uma exposição prolongada ou intensa, o corpo humano metaboliza o gás CS como um cianureto mortal. Até agora, as análises de laboratório não apresentaram conclusões firmes.

Funcionários do Ministério da Saúde do Egito disseram que as latas de gás lacrimogêneo que analisaram não continham toxinas mortais. Análises independentes presumem que o material utilizado no Cairo continha uma mistura de 2,5% de cianureto de bromo e arsênico, embora isso não tenha sido possível verificar. Envolverde/IPS