Corte no Orçamento de 2012 favorece o mercado

Pacientes buscam atendimento no Hospital Regional de Taguatinga (DF), que sofre com superlotação. Foto: Marcello Casal Jr./ABr

Corte federal na área da saúde revela curso da ação privatista no país.

O corte no orçamento de 2012 foi de R$ 55 bilhões. A pasta com maior redução foi a da saúde, R$ 5,4 bilhões. O governo federal prevê destinar R$ 655 bilhões ou 30% do orçamento federal de 2012 ao refinanciamento e ao pagamento de juros e amortizações da dívida pública, mais de nove vezes o valor previsto para a saúde.

Outra perda para o setor: foi sancionada pela presidenta Dilma, no início de janeiro de 2012, a Lei Complementar 141/2012 (Emenda 29), que mantém o investimento da União vinculado à variação nominal do PIB (Produto Interno Bruto). A decisão mantém o orçamento público destinado à saúde próximo ao valor atual de aproximadamente 3,5% do PIB. O projeto que estava no Senado, entretanto, pressupunha uma aplicação da União de 10% da receita corrente bruta.

Como lembra o professor de Economia da Saúde da USP, Áquilas Nogueira Mendes, a média de investimento para a saúde vem sendo de 4% do PIB, sendo 1,7% da União e o restante de Estados e municípios. De acordo com ele, a política de cortes para o superávit primário vem desde 1995, com o então presidente Fernando Henrique Cardoso, e se mantém nos governos do PT. “Isto tem inviabilizado a área da saúde”, ressalta o professor da USP.

“Posso afirmar, sem qualquer medo de errar, que a gestão do PT não alterou em nada a lógica estabelecida na gestão de saúde do governo de Fernando Henrique Cardoso”, atesta Francisco Batista Júnior, integrante diretivo do Conselho Nacional de Saúde. Ele acrescenta, ainda, que houve um agravante na gestão petista: foram permitidas novas formas de privatização do setor. “A privatização está se ampliando de uma forma absurda. Em todos os Estados estão em curso processos de privatização, seja por meio da rede privada contratada, seja por meio de PPPs (Parcerias Público-Privadas). Inclusive, o (Alexandre) Padilha (ministro da Saúde) diz claramente que não tem qualquer preconceito contra qualquer forma de gestão”, arremata Batista.

Por sinal, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) lançou na quarta- feira de cinzas, 22 de fevereiro, a Campanha da Fraternidade de 2012, sob o lema “Fraternidade e Saúde Pública”. Na ocasião, o secretário-geral da entidade, dom Leonardo Steiner, disse publicamente que decisões do governo, como este corte de R$ 5,5 bilhões no orçamento e a aprovação da limitada Emenda 29, reforçam que “os problemas verificados na área da saúde são reflexos do contexto mais amplo de nossa economia de mercado, hoje globalizada, que não tem, muitas vezes, como horizonte os valores ético-morais e sociais”.

Frei Betto também se inseriu no debate, e afirma que, apesar de alguns avanços importantes, como o aumento da expectativa de vida e diminuição da mortalidade infantil no Brasil, a Campanha da Fraternidade considera o SUS (Sistema Único de Saúde) um “caos, sobretudo perante os olhos dos mais necessitados de seus serviços”, escreve no artigo “Fraternidade e Saúde Pública”, publicado na Agência Brasil de Fato.

Atingidos

O orçamento da União para a Saúde, em 2011, foi de R$ 68,8 bilhões. Deste total, somente R$ 12 bilhões foram investidos na atenção básica à saúde, por meio de programas do Ministério da Saúde. Os cortes orçamentários efetuados sistematicamente penalizam em especial esse setor mais básico. “Isso porque o governo não tem como deixar de pagar as prestadoras de serviços, muito poderosas política e economicamente, justamente as que se inserem no setor de alta complexidade”, elucida Francisco Batista Júnior, do Conselho Nacional de Saúde.

Ele explica que empresas ligadas ao fornecimento de serviços e materiais para o setor de alta complexidade gozam de uma relação econômica ininterrupta com os governos (federal, estaduais e municipais), mesmo em períodos de “pós-corte orçamentário”. “São grandes grupos econômicos que prestam serviços de alto custo, que o governo não tem como deixar de pagar”, afirma Batista. Nota-se, contudo, que a qualidade do atendimento a usuários portadores de doenças mais complexas, mesmo com o aporte financeiro garantido a essas empresas, permanece, como há anos, limitado.

Inversão

Falta de acesso a serviços de saúde em todos os níveis de assistência, déficit de pessoal, entre outras mazelas, tudo isto impulsiona uma migração da população para a adesão ao sistema privado. Cada vez que o governo toma uma atitude como essa, impulsiona, gradativamente, a ocupação do setor privado na saúde. “Não conseguimos ampliar nossa capacidade de atendimento e qualificá-lo, e a consequência é uma dependência cada vez maior em relação aos serviços do setor privado, que tem no poder público o seu principal financiador”, afirma Francisco Batista Júnior.

Francisco reforça que houve uma regressão substancial do direito do cidadão de usufruir dos equipamentos da saúde pública.”No início do SUS, 70% dos recursos utilizados na saúde eram públicos. E, ao invés de o SUS se ampliar e o setor privado se tornar minoritário e complementar, como diz a Constituição Federal, ocorreu o inverso”, pondera.

Ao contrário do que prevê a Constituição, são as famílias que mais gastam com saúde. Entre 2002 e 2006, o número de usuários de planos de saúde aumentou de 38,6 milhões para 44,7 milhões. O total de gasto nacional com a saúde no setor privado, em 2009, foi de R$ 143 bilhões, maior que o total de gasto público em saúde, que foi de R$ 127 bilhões.

É isso que reforça o professor de Economia da Saúde da USP, Áquilas Nogueira Mendes. A ausência de gastos públicos no país pressupõe que o gasto privado vem aumentando. “Em nosso país, em 2009, se gastou com saúde privada 52% (de todos os gastos com saúde), enquanto a saúde pública, 48%”, informa.

E que a população mais abastada financeiramente não se engane. Áquilas reforça que mesmo para os 40 milhões que têm plano privado, o SUS é de extrema importância.“Porque o plano privado na hora da alta complexidade, diz ser muito caro e não cobre. Então veja a perversidade da ausência do investimento público na relação com o gasto privado. É muito comum pessoas com câncer de pulmão que têm plano privado, mas que na hora que precisam de uma quimioterapia mais sofisticada têm que dar entrada no SUS, e o SUS paga (o tratamento)”, pondera.

Nova lógica

O setor privado na saúde se expande no livre mercado e por dentro do SUS. No livre mercado, mediante o crescimento dos planos e seguros privados de saúde, resultante da “universalização excludente”, quando os trabalhadores melhor remunerados vêm, cada vez mais, comprando estes serviços, como já lembrou a professora Valéria Correa, da Ufal (Universidade Federal de Alagoas), em entrevista no mês de outubro, na edição 449 do Brasil de Fato.

O Estado também subsidia o o setor privado, isentando-o. De acordo com Áquilas, se somarmos as isenções de impostos concedidas a alguns hospitais (como o Albert Einstein) e grupos farmacêuticos, entre outros, “os dados, que temos estimados de 2011, chegaram a R$ 15 bilhões”.

Por dentro do SUS, a expansão do setor privado vem se dando por meio da compra de serviços privados de saúde “complementares” aos serviços públicos e do repasse da gestão do SUS para entidades privadas. Segundo dados de Valéria, estima- se que cerca de 60% dos recursos públicos da saúde são alocados na rede privada, por meio de convênios/compra de serviços privados.

Outra forma de repasse de recursos públicos da saúde para o setor privado tem se dado por meio dos denominados “novos modelos de gestão”, como Organizações Sociais (OSs), Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips) e Fundações Estatais de Direito Privado (FEDPs). “Trata-se da privatização do que é público, na medida em que o Estado abdica de ser o executor dos serviços públicos, pela abertura à iniciativa privada como fornecedora destes serviços, mediante repasse de recursos, de equipamentos e instalações públicas e de pessoal para entidades privadas”, ponderava Valéria Correa.

Causa surpresa que tal lógica de mercado tenha se inserido dentro de estatais. Seguindo a mesma lógica privatista, a nova seguradora de saúde da Caixa Econômica Federal (CEF) está completando três meses de atividades com cerca de cinco mil clientes de seguro-saúde e outros dois mil de planos odontológicos, e “a meta é chegar em 2015 com 500 mil beneficiários”. Em carta, o Cebes (Centro Brasileiro de Estudos da Saúde) classifica uma iniciativa como essa contrária ao que propõe a Constituição Federal, “que definiu a saúde como direito social cujo processo de atenção e cuidado universal fica a cargo do Sistema Único de Saúde”, pontua, em sua página na internet. “A gestão Dilma está perdendo o bonde da história. Temos que contrariar os interesses estabelecidos por entes privados, político-partidários, corporativistas de médicos. Precisamos de coragem de comprar essa briga e enfrentar esses que estão se locupletando às custas da saúde”, salienta Francisco Batista Júnior.

* Colaborou Vivian Fernandes, da Radioagência NP.

** Publicado originalmente no site Brasil de Fato.