Ela rejeita o rótulo com veemência, mas é assim que muitas mulheres atendidas por Ana Cristina Duarte a definem: a mãe das mães. Aos 45 anos de idade, casada e mãe de dois filhos, Ana Cris, como é conhecida, prefere ser chamada mesmo é de parteira e ativista.

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Ana Cris, parteira e ativista.

Engana-se quem imaginou uma senhora interiorana, conhecida por toda a comunidade e munida de conhecimentos ancestrais sobre o nascimento. Ana Cris é a versão high tech das parteiras tradicionais. Não apenas porque não desgruda do seu recém-adquirido tablet, mas principalmente porque resolveu exercer uma das profissões mais antigas do mundo em plena urbe paulistana.

“Quando você decide ser parteira, acaba colocando em primeiro lugar as gestantes e os partos e, em segundo lugar, todo o resto. Eu nunca sei onde vou estar de noite, amanhã ou depois. E é isto o que confere emoção à minha vida. Parteira urbana tem que aceitar o caos da cidade.”

Há dez anos, ela atende mulheres que decidiram ver os filhos nascerem em casa. Mulheres que, na contramão dos altos índices de cesárea (a modalidade já representa 47% da totalidade dos partos no Brasil), passam a gravidez inteira preparando-se para encarar esse evento de forma natural, ao lado da família e no aconchego de seus lares.

Parece loucura?

A história demonstra, na verdade, uma inversão de valores. De acordo com os estudos obstétricos, foi só a partir do Século 18, com o surgimento dos hospitais e, mais tarde, com a invenção da anestesia, já no Século 19, que a cesárea começou a atingir índices significativos de sobrevivência fetal e materna. Até então, praticamente 100% das intervenções cirúrgicas resultava na morte da mãe ou do bebê.

Aos poucos, o procedimento cirúrgico que prevê um corte no ventre da mulher para a retirada do bebê foi se aprimorando, o que permitiu que se cumprisse sua função essencial: salvar vidas em casos de risco. Entretanto, com o avanço das tecnologias e as mudanças culturais produzidas na segunda metade do Século 20, a cesárea começou a assumir paulatinamente o lugar do parto natural, mesmo em casos em que não havia a menor necessidade de intervenção médica.

A mudança foi tão brusca que hoje muitas mulheres agendam a cirurgia antes mesmo de entrar em trabalho de parto. Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) mostram que a cesárea eletiva (com agendamento prévio e sem indicação médica), eleva em 2,7 vezes os riscos de complicação para o bebê.

No Brasil, esta prática é incentivada por muitos médicos que buscam, por um lado, otimizar a agenda do seu consultório e, por outro, garantir um ganho mínimo para o seu sustento no repasse dos seguros de saúde. Estima-se que os planos de saúde no Brasil paguem entre R$ 200 e R$ 300 por parto realizado. Oras, entre atender um parto natural (que leva de seis a 12 horas) por dia, ou três cesarianas (que levam em torno de duas horas até serem finalizadas), o que faz a maioria dos médicos?

Os números do Ministério da Saúde dizem: mais de 80% dos nascimentos no setor privado de saúde acontecem por meio de cesárea. Em algumas maternidades, esse índice ultrapassa os 90%. No Sistema Único de Saúde (SUS), esse valor cai para 33%, mas ainda está muito acima da taxa de 10% a 15% recomendada pela OMS.

Diante desse quadro, falar em parto natural é quase um tabu. E se for verdade o que diz o ditado, Ana Cris é a mulher que resolveu quebrá-lo. “Acredito que o meu papel é resgatar o parto como um evento das mulheres, das famílias e das emoções, e não médico-hospitalar, como é visto atualmente”.

Combinação explosiva

Nascida em uma típica família de classe média urbana e criada no bairro de Perdizes, Zona Oeste de São Paulo (SP), a trajetória de Ana Cris começa de fato com o nascimento de seus filhos. Julia, a primogênita da família, veio ao mundo em 1997 por meio de uma cesárea, “totalmente desnecessária, injustificada e por conveniência do médico”.

Dois anos mais tarde, grávida de Henrique, a então bióloga deu início a uma longa pesquisa a respeito dos nascimentos no Brasil. Em busca de um parto normal, deparou-se com uma verdadeira indústria da cesárea e com a falta de profissionais dispostos (e aptos) a atender um parto que não fosse cirúrgico. Após meses de procura, Ana Cris encontrou um médico no Rio de Janeiro (RJ), à época um expoente da humanização do parto no país.

“Acabei tendo um parto normal hospitalar, o que foi um resgate muito importante do que eu acreditava sobre o meu corpo, do poder que eu tinha e das minhas possibilidades. Não fazia sentido eu ser operada para ter um filho. Como bióloga e muito menos como mulher. Desta vez eu também consegui amamentar, porque na primeira tinham me convencido que eu não podia.”

A possibilidade de parir e amamentar, associada à certeza de que havia sido enganada, foi uma combinação explosiva na vida dessa mulher. Empoderada, Ana Cris abandonou a biologia, o trabalho na floricultura dos pais, e partiu rumo à sua verdadeira missão. “Naquele momento, a única certeza que eu tinha era que não podia viver essa experiência sem compartilhar com as pessoas.”

A web como aliada

Protesto pela manutenção do curso de Obstetrícia da USP Leste.

Seu primeiro passo, ao lado de outras mães, foi criar um espaço na internet que disponibilizasse gratuitamente informações sobre o parto. Fundado em 2001, o Amigas do Parto é o primeiro site feito “por mulheres, para mulheres” sobre a questão da assistência ao parto. “A gente fez uma revolução na comunicação. Até hoje, mesmo há oito anos sem atualização, ela continua sendo a página mais acessada sobre partos no Brasil.”

Ana Cris credita o sucesso da iniciativa à falta de informações corretas, “baseadas em evidências científicas”, sobre os benefícios do parto natural e os riscos de uma cesárea. Reféns da ausência de dados, do medo da dor e de um imaginário preconceituoso que prega que parir “é coisa de índia”, as mulheres brasileiras foram, aos poucos, perdendo o protagonismo e a autonomia nas decisões sobre o nascimento de seus próprios filhos.

Ainda em 2001, Ana Cris se formou como doula e passou a dar suporte emocional e físico às mulheres em trabalho de parto. A doula (do grego “mulher que serve”), diferentemente do restante da equipe escalada para um parto, não executa nenhum procedimento médico e nem substitui a presença do pai ou qualquer outro acompanhante.

Sua função é ajudar a mulher a encontrar posições mais confortáveis, apresentar métodos naturais de alívio da dor, como massagens, relaxamento e banhos, além de buscar suprir a demanda emocional e psicológica que um evento tão íntimo pode gerar. Esse conjunto de medidas de contenção é chamado hoje em dia de “humanização do parto”.

Nos anos seguintes, o número de mulheres interessadas em ter um parto diferente do que grande parte dos médicos e hospitais ofereciam já era muito maior. Pipocavam na web várias listas de emails, sites e blogs sobre o assunto. As mães começaram a compartilhar suas experiências, trocar materiais, depoimentos, tudo via internet, criando uma verdadeira rede pelo parto humanizado.

Dessa forma nasceu, em 2003, a “Lista Materna” de emails. Criado por Ana Cris, o espaço virtual tinha como meta “articular as mulheres do Estado de São Paulo que estavam em busca de um parto ativo e consciente”. A experiência deu tão certo que funciona até hoje, com cerca de 700 cadastradas, sob a moderação criteriosa de Ana Cris.

“A lista foi uma mudança importante para as mulheres, porque elas vinham de uma realidade, de uma perspectiva de passar por esse momento da gravidez, parto e pós-parto muito sozinhas. Famílias de núcleo pequeno, cidades grandes, enfim, a Lista as acolheu e recuperou parte de uma coletividade perdida.”

Finalmente obstetriz

Tudo ia muito bem na nova profissão de Ana Cris, até que em 2004, um episódio inusitado aconteceu. Em suas palavras: “já era o terceiro filho daquela mulher e, embora o médico tenha corrido e eu também, como éramos vizinhas, o bebê acabou nascendo nas minhas mãos!”.  Daí em diante, uma profusão de sensações e hormônios tomou conta de seu corpo, levando-a a decidir: “chega de só acompanhar partos, eu quero é ‘pegar bebê’”.

Em menos de um ano, atraída por uma proposta inovadora e a fim de profissionalizar-se, Ana Cris ingressou no curso de Obstetrícia da Universidade de São Paulo (USP), no Campus Leste. Pioneira em território nacional, a carreira apresenta uma abordagem integral dos ciclos de gravidez, parto e puerpério, onde as escolhas da mulher, bem como o contexto em que ela está inserida, assumem um lugar prioritário no atendimento.

“A (carreira de) obstetrícia é uma mudança de paradigma, é encarar a assistência à mulher com um novo olhar, por completo. Ela não é só aquele sistema reprodutor que funciona ou deixa de funcionar. Ela é uma mulher que está dentro de um contexto social, de uma família, de uma relação, num ambiente psicológico, emocional e tudo isso vai influenciar a gestação, parto e pós-parto.”

Assim, após quatro anos de estudo, no auge dos seus 45 anos, e tendo visto mais de 400 partos como doula, Ana Cris pôde finalmente atuar como obstetriz. Mas não sem antes passar por uma batalha na Justiça que lhe outorgasse o direito de exercer a profissão. Acontece que, no Brasil, o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), órgão responsável por fornecer o registro de atuação dos enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem, não reconhece a profissão das obstetrizes.

Até hoje, todos os registros foram conseguidos mediante mandado de segurança. Para piorar a situação, o Cofen ainda exerce forte pressão para impedir os estágios e a atuação no campo profissional. Foi essa, inclusive, a justificativa para que, no começo de 2011, um relatório interno da USP Leste pedisse o fechamento definitivo do curso de Obstetrícia e a fusão de algumas disciplinas específicas com o curso de Enfermagem.

Elaborado pelo ex-reitor da Universidade, Adolpho Melfi, o documento foi alvo de críticas de diversos setores da sociedade, que defendem uma mudança no atendimento às mulheres na gravidez, parto e pós-parto.

Na USP e no centro de São Paulo, grávidas, obstetrizes, estudantes, profissionais da saúde, doulas, mães e bebês se reuniram para pedir a manutenção da carreira, reivindicar o reconhecimento da profissão pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e o fornecimento de registro pelo Cofen.

Entre elas, Ana Cris despontava com o microfone em mãos, desempenhando a tarefa mais difícil de seu tempo: convencer as pessoas de que é preciso mudar a forma como os seres humanos vêm ao mundo.

* Publicado originalmente no Portal Aprendiz.