Saúde pública: uma situação de violência permanente

Deparamo-nos, hoje, com situações sociais, que são estruturalmente imorais, revelam – como já disse outras vezes – a iniquidade do sistema capitalista neoliberal, violam todos os direitos humanos fundamentais e clamam por justiça.

Uma dessas situações é o caos em que se encontra a saúde pública. Os governantes fazem muitos discursos bonitos e prometem mil maravilhas, mas, na realidade, não muda nada e a saúde pública continua sendo uma violência permanente contra a vida do povo.

Vejam algumas manchetes da imprensa, que falam por si mesmas e deixam a todos os que têm um mínimo de sensibilidade humana profundamente indignados.

No mês de outubro de 2011: “Saúde. Médicos apontam falha no Hugo. Falta material básico, como luvas e fios para sutura, no maior Hospital de Urgências da Região Centro-Oeste.” (O Popular, 28/10/11, p. 5); “Câncer. Goiás na berlinda do SUS. Relatório do TCU aponta que 45,9% dos pacientes não conseguem tratamento na rede pública.” (Ib., 30/10/11, p. 7).

No mês de novembro de 2011: “A saúde fraturada. A saúde pública de Goiás vive sua pior crise, com debandada de médicos e desabastecimento.” (Ib., 9/11/11, 1ª página); “Crise no velho sistema de saúde. Família de líder comunitário do Setor Real Conquista aciona Ministério Público para conseguir vaga em UTI. Crise no Ciams do Novo Horizonte reflete a situação global do caos na saúde que, atualmente, ocorre em Goiânia.” (Diário da Manhã, Força Livre, 12/11/11, p. 1).

No mês de dezembro de 2011: “Crise na saúde. Agora foi a vez do Hemocentro. Unidade dispensou doadores ontem (16 de dezembro) por falta de tubos para coletar sangue.” (O Popular, 17/12/11, 1ª página); “Crise na saúde. O Popular acompanha atendimento em hospitais públicos no fim de semana. Um plantão de problemas.” (Ib., 19/12/11, 1ª página); “Crise no atendimento. Famílias das vítimas atribuem mortes a descaso no atendimento, como falta de ambulâncias e equipamentos estragados.” (Ib., 29/12/11, p. 4).

No mês corrente de janeiro de 2012: “Saúde. Plantão no Huapa acaba na polícia. Bombeiros denunciaram ontem de madrugada (1º de janeiro) um médico do Hospital de Urgências de Aparecida de Goiânia (Huapa), que teria se recusado a atender uma vítima de acidente de trânsito levado à unidade por eles. É o segundo caso de negligência no atendimento do Huapa em menos de uma semana. Desta vez, segundo a denúncia, o médico estava dormindo.” (Ib., 2/1/12, 1ª página); “Materno Infantil fecha seis vagas (das 16 vagas pediátricas e neonatais existentes) na UTI. O Hospital Materno Infantil (HMI), referência no atendimento de casos graves de gestantes, recém-nascidos e crianças, reduziu o número de vagas nas Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) por causa do escasso número de médicos. Além disso, cirurgias foram adiadas e o sistema de classificação de risco dos pacientes suspenso, devido à falta de profissionais.” (Ib., 6/1/12, 1ª página); “Materno Infantil. Crise derruba diretor. (…) O governo estadual mandou afastar do comando da unidade o médico Cezar Gonçalves Gomes e colocou em seu lugar o neurocirurgião Francisco Dias Azeredo Bastos, diretor clínico do Hospital Santa Mônica e que estava também lotado no Hugo.” (Ib., 7/1/12, 1ª página); “Goiânia tem mais usuários do SUS do que habitantes. Cerca de 1,8 milhão de cartões do Sistema Único de Saúde (SUS) foram emitidos em Goiânia, que tem 1,2 milhão de habitantes. Excesso é resultado de um contingente de moradores do interior do Estado que viaja para a capital em busca de atendimento, que é negligenciado para eles em suas cidades de origem.” (Ib., 9/1/12, 1ª página).

Isto mostra que a situação da Saúde Pública no interior do Estado é pior do que a de Goiânia. “Crise na saúde. Cresce fila por cirurgias eletivas. Só para internações de emergência (reparem: de emergência) são mais de 200 pacientes à espera. Diretor credita o fato ao aumento da demanda e à perda na prestação de serviços.” (Ib., 10/1/12, p. 5).

Infelizmente, em nível nacional, a situação da saúde pública não é muito diferente da do Estado de Goiás.

Diante de tudo isso, pergunto: quem vai responder judicialmente por essa situação de violência permanente contra a vida do povo, que clama por justiça diante de Deus?

A Constituição Federal afirma: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” (Art. 196). No caso, pois, de crianças e adolescentes, o direito à saúde deve ser assegurado com “absoluta prioridade” (Art. 227).

Por que será que o poder público não cumpre a Constituição Federal? Não é isto um crime? Os responsáveis não devem ser processados, julgados e punidos como criminosos? Para justificar o descaso com a saúde pública, os governantes inventam muitas desculpas (a mais comum é a questão da burocracia), mas o que realmente falta é só uma coisa: vontade política.

Se os governantes e os políticos – no exercício de seu mandato – fossem obrigados por lei a utilizar os serviços da saúde pública, tenho certeza que a situação mudaria imediatamente. Por que não fazer a experiência?

Concordo – embora com algumas ressalvas – com a análise que, há poucos dias, o médico Marcelo Caixeta fez da crise na saúde pública, mas discordo da proposta que ele – e outros também – apresentam como sendo a solução para a crise. “Organizações Sociais – diz o médico – são a melhor solução para a crise na saúde.” (Diário da Manhã, Opinião Pública, 9/1/12, p. 3). A meu ver, a chamada terceirização da saúde pública, via Organizações Sociais (OSs), é uma forma disfarçada de privatização. O governo – que tem outros interesses prioritários – pretende lavar as mãos e se eximir de suas responsabilidades em relação à saúde. Na sociedade, os serviços essenciais, como é o caso da saúde, devem ser públicos. Não podemos permitir que empresas privadas – mesmo tendo o nome bonito de “Organizações Sociais” – se enriqueçam às custas do sofrimento do povo.

Graças a Deus, na vida pública, temos ainda muitas pessoas honestas, que, com abnegação e amor, dedicam sua vida e trabalho à busca do bem comum, que é o bem de todos(as), principalmente dos mais necessitados(as). O que os governos precisam fazer é banir da vida pública a barganha política do “toma lá dá cá” – que é uma prática interesseira e totalmente antiética – e aproveitar as pessoas honestas para cargos de responsabilidade, sobretudo na administração da saúde pública, disponibilizando os recursos materiais necessários para o bom desempenho de suas funções.

O próprio médico Marcelo Caixeta, em seu escrito, reconhece que, na saúde pública, “problemas de manutenção e gerenciamento poderiam ser resolvidos se os governos quisessem” e que – mesmo fazendo duras críticas aos servidores públicos – “há muitas e honrosas exceções” (Ib.).

A Campanha da Fraternidade 2012 tem como tema “Fraternidade e Saúde Pública” e como lema “Que a saúde se difunda sobre a terra” (Cf. Eclo 38,8). Ela “deseja sensibilizar a todos(as) sobre a dura realidade de irmãos e irmãs que não têm acesso à assistência de saúde pública condizente com suas necessidades e dignidade. É uma realidade que clama por ações transformadoras. A conversão pede que as estruturas de morte sejam transformadas” (Texto-Base, p. 9). A vida em primeiro lugar!

Goiânia, 25 de janeiro de 2012.

Frei Marcos Sassatelli é frade dominicano, doutor em Filosofia e em Teologia Moral, professor na Pós-Graduação em Direitos Humanos (Comissão Dominicana Justiça e Paz do Brasil, PUC-GO), vigário episcopal do Vicariato Oeste da Arquidiocese de Goiânia, e administrador paroquial da Paróquia N. Sra. da Terra.

** Publicado originalmente no site Adital.