O próximo escândalo na Igreja

Donald Cozzens no seu livro A fé que ousa falar (Loyola, 2006) deixou bem claro que o próximo escândalo na Igreja será de ordem econômica ou financeira: “Embora muitos, se não mesmo a maioria, dos bispos e párocos levem uma vida de fato simples e sem pretensões, distinguindo cuidadosamente o que pertence à Igreja e o que lhes pertence como indivíduo, alguns não se comportam assim. Não surpreende, portanto, que comentaristas familiarizados com as engrenagens internas eclesiais afirmem que a próxima onda de escândalos que irá abalar as bases da Igreja será de natureza fiscal” (pp. 27-28).

Por sua trajetória e por sua competência, Cozzens deve ser levado a sério. Foi ele, a partir dos conhecimentos que tinha e dos estudos feitos, um dos primeiros a prever o escândalo da pedofilia clerical na Igreja dos Estados Unidos. Parte de sua previsão foi publicada no livro A face mutante do sacerdócio (Loyola). Por causa disso, foi intimado a comparecer ao Vaticano para sentar-se na mesma cadeira que Galileu e Boff sentaram. Quando estava arrumando as malas para viajar, estourou o escândalo e adiaram “sine die”* a sua ida a Roma. Até hoje não foi chamado e neste tempo de espera, além dos livros acima mencionados, escreveu também O silêncio sagrado(Loyola), no qual denuncia a política da hierarquia da Igreja de recusar-se a falar de certas coisas e de não silenciar diante de outras.

Passados poucos anos da sua previsão, os escândalos financeiros começam a pipocar. O maior e o pior deles é a inclusão do Banco do Vaticano, feita pelo Departamento de Estado norte-americano, na lista dos prováveis 67 paraísos fiscais, onde os políticos corruptos, traficantes de drogas e outros criminosos abrem suas polpudas contas bancárias, com dinheiro manchado de sangue. Embora o Banco do Vaticano não apareça entre os piores paraísos fiscais, a simples inclusão do seu nome na lista já é por si só um tremendo escândalo. Tal escândalo se agrava se levarmos em conta que o próprio papa, em 2010, antes da ação do Departamento de Estado, determinou uma investigação cuidadosa para verificar se o dinheiro que circula pelo Banco da Santa Sé é realmente limpo.

Mas os escândalos financeiros não param por aí. Estou convencido de que, se houvesse uma séria fiscalização feita pela própria Igreja e pelos governos, viriam à tona escândalos que levariam o próprio diabo a corar de vergonha. Recentemente tivemos, no Rio Grande do Sul, o caso de um padre que arrecadou dinheiro para a paróquia e depois sumiu com todo o montante. O povo denunciou o caso ao Ministério Público e a questão foi parar na Justiça. O padre, um estrangeiro, fugiu para seu país, onde se esconde para não prestar contas aos paroquianos e à Justiça brasileira. Mas a bomba pode estourar nas mãos do bispo diocesano, causando sérios estragos, sem falar no estrago ético e moral que já aconteceu.

Há cerca de um ano atrás se descobriu que o ecônomo de um famosíssimo instituto religioso, com sede no Paraná, sumiu com vultosas somas de dinheiro, levando sua província à falência. Como “castigo” foi mandado como missionário para uma região pobre, onde certamente não vai faltar dinheiro para ele continuar desviando. Também nestes dias um caso abala a Itália. Roberto Formigoni, um político bem conhecido, antigo governador da rica região da Lombardia, membro do “Memores Domini”**, ala de leigos celibatários do movimento Comunhão e Libertação (CL), está sendo acusado de se envolver em escândalo de corrupção e suborno em contratos públicos de saúde e de usar recursos públicos para pagar férias pessoais. Outro membro de CL, Antonio Simone, foi preso e acusado de desviar 74 milhões de dólares do Instituto de Saúde Italiano. A coisa ficou tão séria que o dirigente geral de CL foi obrigado a vir a público para pedir desculpas e solicitar a punição dos prováveis culpados.

Casos de eclesiásticos que arrecadam dinheiro e não prestam conta ao povo, de membros da hierarquia que somem com os bens das paróquias, não são exceções na Igreja. Existem inclusive denúncias de roubo de objetos de arte pertencentes a igrejas tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, cujo sumiço é muito misterioso. Há poucos dias, visitando uma cidade histórica do Recôncavo baiano, soube do roubo de imagens valiosíssimas de uma determinada igreja. Há sérios motivos para se desconfiar de que o pároco esteja envolvido no caso. E a principal razão para a desconfiança é que o padre não quer que se toque no assunto.

Existem várias causas por trás desse comportamento dos eclesiásticos. Em primeiro lugar o fato de que durante praticamente todo o segundo milênio a hierarquia da Igreja tinha hegemonia e poder absoluto sobre todo o povo de Deus. Aos simples leigos cabia a obrigação de sustentar o clero, sem pedir satisfação ou explicações acerca do modo como o dinheiro e os bens da Igreja eram administrados. Qualquer pedido de explicação era castigado com excomunhões e com sérias ameaças inquisitoriais. Exemplo disso é a denúncia das vendas de indulgências feitas por Lutero. O reformista não terminou na forca ou na fogueira porque conseguiu fugir e receber proteção dos príncipes alemães.

Além disso, há a ingenuidade de alguns prelados, os quais, mesmo que bem intencionados e pobres, acreditam que não há necessidade de prestar contas, porque eles são honestos e o povo acredita piamente na boa intenção deles. Isso é reforçado pela imagem sacral do padre, ainda muito presente entre o povo. Pode-se até desconfiar da honestidade de um eclesiástico, mas as pessoas acreditam que é perigoso se meter com quem mexe com o divino. Enfrentar o ministro religioso pode dar azar e complicar por demais a vida das pessoas. Afinal de contas ele é o representante de Deus.

 

Por fim, especialmente nos nossos dias, cresce no meio do clero os tipos inescrupulosos e corruptos, que veem o ministério ordenado não como serviço, mas como a forma mais fácil de ganhar fama e dinheiro. Infelizmente, a dimensão humano-afetiva não é bem trabalhada nos seminários e é cada vez mais frequente o acesso ao ministério ordenado de carreiristas e de oportunistas, os quais não têm escrúpulos de se utilizar dos meios mais sórdidos e ilícitos para ganhar fama e, por meio da fama, muito dinheiro. A coisa é tão grave que o próprio papa chegou recentemente a denunciar em público o carreirismo e oportunismo de certos clérigos.

Espero que as autoridades eclesiásticas se deem conta dessa realidade e comecem a agir. Não esperem que os escândalos se multipliquem para tomar providências. Segundo Cozzens, a primeira providência a ser tomada é a eliminação da cultura clerical feudal que faz do bispo e do padre verdadeiros senhores e príncipes e dos demais fiéis apenas servos que os sustentam. É urgente a eliminação da púrpura real, das vestes litúrgicas cheias de brocados multicores que transformam os ministros ordenados em ricos avarentos arrogantes e autoritários. Além disso, urge rever o conceito de autoridade, diz Cozzens. Precisamos da presença na Igreja de “autoridades autorizadas e não autoritárias”. Autoridade autorizada é aquela que pela sua maneira de viver, de agir, reflete a pobreza e a simplicidade do Mestre servidor, que não tinha onde repousar a cabeça.

 

O Evangelho nos diz que são inevitáveis os escândalos nas comunidades cristãs. Mas diz também que os que provocam escândalos serão responsabilizados por seus atos. E os contextos onde essa exortação aparece não deixam dúvidas: trata-se do escândalo provocado pelas lideranças religiosas (Mt 18,1-14; Lc 17,1-10). E as lideranças cristãs escandalizam quando abandonam ou renegam a simplicidade de vida, quando se recusam a servir e querem ser servidos, e quando não cuidam dos pequeninos e dos desamparados. Aliás, se considerarmos o texto mencionado de Lucas, veremos que não escandalizar é o mesmo que ter fé, uma fé que é capaz até mesmo de arrancar o que parece irremovível e intransponível (Lc 17,5-6). Nesse sentido, o não cuidar da transparência no campo econômico talvez represente o pior escândalo para o povo. Não por acaso se costuma afirmar que o povo perdoa qualquer pecado do ministro ordenado, mas não perdoa a sua avareza, a sua falta de honestidade no uso do dinheiro que pertence à comunidade. E com toda razão, pois “o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males” (1Tm 6,10).

Notas

(*) Sem data marcada.

(**) Os que lembram do Senhor

* José Lisboa Moreira de Oliveira é Filósofo. Doutor em teologia. Ex-assessor do Setor Vocações e Ministérios/CNBB. Ex-Presidente do Inst. de Past. Vocacional. É gestor e professor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília.

** Publicado originalmente no site Adital.