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As bases de um movimento mundial de cidadãos

Em um espírito de investigação e compromisso, os participantes da conferência Para Um Movimento Cidadão Mundial: Aprender Com As Bases passaram grande parte do tempo interagindo com os demais. Foto: DEEEP
Em um espírito de investigação e compromisso, os participantes da conferência Para Um Movimento Cidadão Mundial: Aprender Com As Bases passaram grande parte do tempo interagindo com os demais. Foto: DEEEP

 

Johannesburgo, África do Sul, 28/11/2014 – A sociedade civil organizada, imersa em sua burocracia interna, em processos lentos e na prestação de contas aos seus doadores, se converteu em mais uma capa de um sistema mundial que perpetua a injustiça e a desigualdade? Como podem as organizações da sociedade civil (OSC) construirem um movimento amplo que atraia, represente e mobilize os cidadãos, e como podem realizar uma transformação fundamental e sistêmica, em lugar da mudança incremental?

Esse tipo de reflexão introspectiva foi a base do processo de participação das OSC de todo o mundo que se reuniram em Johannesburgo, entre 19 e 21 deste mês, para a conferência Para Um Movimento Cidadão Mundial: Aprender Com As Bases. A conferência reuniu 200 participantes e foi organizada pelo DEEEP, um projeto dentro da confederação europeia de OSC Concord, que fomenta a capacitação das organizações e o trabalho ativista em torno da cidadania mundial.

Entre seus principais sócios estão a Civicus, a Aliança Mundial para a Participação do Cidadão, uma das maiores redes da sociedade civil do mundo, e o Chamado Mundial à Ação Contra a Pobreza (GCAP). A reunião de três dias integrou uma série de conferências e atividades organizadas para coincidirem com a Semana Internacional da Sociedade Civil de 2014, realizada pela Civicus, que terminou no dia 24.

A cidadania mundial é um conceito que ganha adeptos dentro do sistema da Organização das Nações Unidas (ONU), para alegria de pessoas com Rilli Lappalainen, secretário-geral da Kehys, a plataforma finlandesa de organizações não governamentais dedicadas ao desenvolvimento.

O cerne desse conceito é o empoderamento das pessoas, explicou Lappalainen. “É importante que as pessoas entendam as inter-relações em nível mundial, que elas são parte do sistema e que podem atuar, em função de seus direitos, para influir a fim de obter uma mudança e melhorar a vida. Não se trata de que alguém mais decida as coisas em nome dos cidadãos”, acrescentou.

O processo começou em 2013 na primeira Conferência Mundial, também em Johannesburgo. Na ocasião foi destacada a necessidade de se encontrar formas novas de pensar e trabalhar, de processos de aprendizagem, intercâmbio e questionamento mútuos. Esse novo espírito de investigação e compromisso, muito evidente no formato criativo e interativo da conferência deste ano, se concentra em um aforismo apresentado por Bayo Akomolafe, da Nigéria: “O momento é muito urgente, vamos com lentidão”.

O discurso de Akomolafe explorou a necessidade de uma mudança no processo. “Nos damos conta de que nossas teorias sobre a mudança precisam mudar. Devemos reduzir a velocidade hoje porque correr mais rápido em um labirinto escuro não nos ajudará a encontrar a saída”, afirmou.

“Devemos reduzir a velocidade porque se temos que viajar para longe, temos que encontrar consolo nos demais, na gloriosa ambiguidade que nos proporciona estar em comunidade. Devemos reduzir a velocidade porque essa é a única maneira na qual veremos os contornos das novas possibilidades”, acrescentou Akomolafe.

No segundo dia, um painel sobre O Desafio das Visões do Mundo ofereceu uma oportunidade para o aprendizado e o questionamento mútuos. O professor Rob O’Donoghue, do Centro de Pesquisa sobre a Aprendizagem Ambiental, da Universidade de Rhodes, na África do Sul, explorou a filosofia ubuntu.

O ativista brasileiro e organizador comunitário Eduardo Rombauer falou sobre os princípios de organização horizontal, enquanto Hiro Sakurai, representante da rede budista Soka Gakkai Internacional junto à ONU, analisou a “soka”, ou criação de valor, a filosofia central da organização. Um ativista do Butão que deveria integrar o painel não obteve o visto para participar da conferência, algo que mereceu uma observação de Danny Sriskandarajah, diretor da Civicus, sobre as formas como se diminui os espaços de trabalho das OSC em todo o mundo.

A ausência de mulheres no painel foi apontada como problemática. Um dos participantes perguntou se era possível questionar eficazmente um sistema mundial, profundamente patriarcal, sem as vozes das mulheres. Isso levou à inclusão espontânea de uma mulher do público presente.

Foi pedido aos membros dos painéis que apresentassem as perguntas que, em sua opinião, deveríamos nos fazer. Como entendemos o poder e temos acesso a ele: como fomentamos a participação das pessoas e transcendemos nossos próprios interesses para participar de uma forma de pensar baseada no sistema? Como podem as múltiplas visões do mundo se reunirem e compartilhar uma bússola moral?

A filosofia ubuntu, explicou O’Donoghue, se define pela afirmação “uma pessoa é uma pessoa por meio das demais”. Essa perspectiva implica que as respostas aos problemas que afetam as pessoas fora não podem ser definidas previamente pelo interior, mas que devem ser resolvidas mediante a solidariedade e em um processo de luta. Alguém pode dar respostas, mas compartilhar os problemas na companhia dos demais, para que as soluções comecem a surgir desde fora.

A perspectiva central da filosofia soka é que cada pessoa tem a capacidade inata de gerar valor e criar uma mudança positiva, em qualquer circunstância. Milhões de pessoas, segundo Sakurai, demonstram a validade desta ideia em seus próprios contextos.

Um ponto semelhante foi mencionado por Graça Machel, esposa do falecido Nelson Mandela, na noite seguinte a uma recepção da Civicus, na qual falou dos profundos desafios que a sociedade civil enfrenta, na medida em que a pobreza e a desigualdade se aprofundam e os líderes mundiais parecem cada vez mais distantes da voz do povo. Envolverde/IPS