Cotas: "O que aconteceu no STF é combustível para conquistas"

Foto: José Cruz/ABr

Para Douglas Belchior, da Uneafro, a decisão do STF a favor das cotas para negros é histórica e parte importante dos avanços do país no combate às desigualdades raciais e étnicas. Porém, os avanços são muito concentrados no campo simbólico. Falta muito para concretizá-los na prática.“Em São Paulo, as universidades públicas não aceitam nem o Enem, quanto mais cotas para negros.”

Brasília – Por unanimidade, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiram no dia 26 de abril pela constitucionalidade das cotas para negros. Segundo a organização Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (Educafro), 89 instituições públicas de ensino superior adotam este mecanismo em seus processos seletivos. Se considerados outros mecanismos de cotas – para alunos de baixa renda ou escola pública, por exemplo – este número chega a 158.

Nas palavras de Douglas Belchior, membro do conselho geral da Uneafro (União de Núcleos de Educação Popular para Negras e Negros e Classe Trabalhadora), a decisão do STF é uma vitória histórica, reforçada por ter sido unânime e pelo conteúdo dos votos. “Todos os ministros colocaram a centralidade da questão racial como instrumento da desigualdade no Brasil, reforçaram o entendimento de que é preciso investir em reparações históricas”, disse.

Para Belchior, a constitucionalidade das cotas é um precedente jurídico importantíssimo para a ampliação das políticas afirmativas e faz parte de um conjunto de conquistas obtidas pela população negra no Brasil recentemente. Entretanto, ele chama atenção para a dificuldade do país fazer, das vitórias simbólicas, políticas que mudem concretamente a realidade. “Em São Paulo, as universidades públicas não aceitam nem o Enem, quanto mais cotas para negros”, exemplifica.

Além da política de cotas, o site da Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura, destaca uma lista extensa de ações tomadas na área desde a criação da Secretaria de Políticas para a Promoção da Igualdade Racial (Seppir), no início do governo Lula. Para os quilombolas, foi regulamentado o procedimento para demarcação de suas terras, foram criados o Programa Brasil Quilombola e a Agenda Social Quilombola. Para a promoção da igualdade racial, foram criadas uma política e um plano nacionais, um fórum intergovernamental, realizaram-se duas conferências nacionais e também foi aprovado o Estatuto da Igualdade Racial. Também foram instituídos o Programa de Combate ao Racismo Institucional, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra e o estudo da história e da cultura afro-brasileira no currículo do ensino básico.

Belchior toma esta última medida como exemplo. “Temos esta obrigação do ensino, mas o Estado não fiscaliza, não forma (professores), não investe nisso”. Em evento do Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada (Ipea), o pesquisador Rodrigo de Jesus, da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mururi, apontou que, até 2011, apenas 7,6% dos 5.107 municípios analisados em seu estudo incluíram a temática em suas redes de ensino. A lei foi aprovada em 2003.

O militante do movimento negro cobra que as iniciativas tornem-se práticas de fomento da igualdade. “O Estatuto da Igualdade Racial também foi uma vitória simbólica. Mas ele só orienta, não prevê investimentos”, salienta.

Racismo estrutural

Ainda no campo simbólico, o estudo Dinâmica Demográfica da População Negra Brasileira, de 2011, do Ipea, baseado em dados do Censo 2010, mostra outra mudança significativa no Brasil: pela primeira vez na história, desde e o primeiro censo, em 1872, as pessoas que se declaram brancas foram menos da metade da população: 97 milhões de pessoas se disseram negras (pretas ou pardas) contra 91 milhões de pessoas brancas. Outras cerca de 2,5 milhões se consideram amarelos ou indígenas.

Entretanto, não faltam números que revelem os negros em desvantagem no Brasil e “o Estado estruturalmente racista”, nas palavras de Belchior.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2007, entre a população branca com mais de 16 anos, 5,6% frequentavam o ensino superior, enquanto entre os negros esse percentual era 2,8%. Mesmo com as políticas afirmativas, entre 1997 e 2007, o ingresso de negros nas universidades públicas brasileiras aumentou apenas 1,8%. Outro estudo, do Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (Laeser), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), divulgado em 2011, aponta que dos 6,8 milhões de analfabetos que frequentaram a escola entre 2001 e 2009, 71,6% eram pretos e pardos.

O Relatório Global sobre a Igualdade no Trabalho, de 2011, da OIT, aponta que embora sejam 45,5% da população ativa, a participação de negros na população desempregada total é de 50,5%.

O perfil das 500 maiores empresas do país, traçado pelo Instituto Ethos, em 2010, mostra que quanto maior o nível hierárquico, menor a probabilidade de negros no quadro de direção. Os negros representavam 5% dos executivos e 13% dos gerentes destas empresas. A mulher negra representa apenas 0,5% dos cargos de chefia ou gerência, ganhando em média 70% menos do que ganha o homem branco e a metade do que ganha o homem negro.

Em maio de 2011, o governo lançou o programa Brasil Sem Miséria e divulgou que o universo de miseráveis era de 16,2 milhões de pessoas. Uma semana depois, o IBGE apontou que 11,5 milhões se declaravam pardos ou pretos, mais de 70% do total. “Isto equivale a dizer que, se o governo tem o compromisso de acabar com a miséria, está tratando com a população negra e a política pública tem que ser dirigida para o povo negro”, sentencia o membro da Uneafro.

Violência

Se por um lado o racismo estrutural brasileiro se esconde na omissão do Estado na garantia de direitos a educação, trabalho, renda, entre outros, ele se torna nítido em sua política de repressão. O Mapa da Violência 2012, uma publicação conjunta da Unesco, Ministério da Justiça e Instituto Sangari, aponta que, de 2002 para 2010, o número de brancos vítimas de homicídio caiu 27,5% – de 18.852 para 13.668 –, enquanto entre os negros cresceu 23,4% – de 26.952 para 33.264. Em 2010, morreram proporcionalmente, por homicídio, 139% mais negros do que brancos. Em alguns Estados brasileiros, este número chega a quase 2.000%, como mostra o exemplo de Alagoas (1.846,6%) que encabeça a lista, seguido de Paraíba (1.699,7%), Pernambuco (628,1%) e Distrito Federal (437,5%).

Dados do estudo Dinâmica Demográfica da População Negra Brasileira, do Ipea, mostram que entre os jovens negros – de 15 a 29 anos – que morreram em 2007, o principal motivo foi homicídio, atingindo 48% dos casos. Em segundo, acidentes de transporte, com 24%. Entre os brancos, uma realidade inversa: em primeiro acidentes de transporte (35,3%) e em segundo homicídios (31%).

O estudo ainda diz que quase 10% dos homens negros mortos anualmente são jovens, número que não chega a 4% entre os jovens brancos.

Diante de dados tão gritantes, Douglas Belchior se irrita com o pensamento difundido por “uma intelectualidade treinada a partir das lições de Ali Kamel, Demétrio Magnoli e sua turma”, segundo o qual seria impossível saber quem é negro e quem é branco no Brasil. “Se os cínicos insistem em negar a existência do racismo no país, com um pouco de sensibilidade política não nos parece ser difícil localizar onde estão os negros na hierarquia social brasileira”, dispara.

Diante de um Estado com tanta capacidade de diagnosticar o racismo, mas com tanta incapacidade para combatê-lo, Belchior vê na decisão do STF mais do que um precedente jurídico, mas “um precedente para nossa utopia”. “O que aconteceu no STF é combustível para que o movimento volte às ruas para fazer valer na prática as conquistas”, conclui.

* Publicado originalmente no site Carta Maior.