Os ciclistas estão seguros?

Ciclistas homenageiam bióloga atropelada na Avenida Paulista.

Acidentes envolvendo ciclistas assombram a mídia, mas o fato é que mortes diminuíram. A insegurança no trânsito, contudo, persiste.

Só em março, dois acidentes mortais envolvendo ciclistas chamaram a atenção da sociedade. No dia 2, a bióloga Juliana Ingrid Dias, 33 anos, trafegava de bicicleta pela Avenida Paulista quando foi fechada por um ônibus e atropelada por outro. Duas semanas depois, o ajudante de caminhão Wanderson Pereira dos Santos, 30 anos, pedalava na Rodovia Washington Luís quando foi atropelado pela Mercedes de Thor Batista, filho de um dos homens mais ricos do mundo. Mortes de ciclistas no trânsito se tornaram comuns no noticiário nacional, dando a impressão de um aumento considerável de acidentes com bicicletas e trazendo à tona a discussão sobre a segurança do uso da bicicleta nas grandes cidades. Os centros urbanos estariam preparados para este tipo de transporte?

Vale conferir as estatísticas sobre acidentes de trânsito. Mesmo que as cidades brasileiras ainda não ofereçam boas condições para o uso de bicicleta – fato reconhecido não apenas pelos ciclistas –, os números mostram que, na realidade, os acidentes não aumentaram desde 2006. Segundo pesquisa do Ipea, no Brasil, os ciclistas são 7% dos deslocamentos e 4% dos acidentes, enquanto os automóveis representam 24% dos deslocamentos e 27% dos acidentes. O Mapa da Violência no Trânsito de 2011 indica que o número de acidentes com bicicletas quadruplicou, mas não leva em conta duas questões: o crescimento do modal no período e também o fato de que o início da pesquisa remonta a uma época em que os acidentes de bicicletas eram contabilizados como atropelamentos e logo não apareciam. Só em 2006 os municípios começaram a contar ciclistas e pedestres separadamente e, de lá para cá, o número de mortes tem diminuído.

Se os acidentes com ciclistas têm aparecido com mais frequência na mídia, portanto, isto não se deve a um aumento expressivo dos mesmos, e sim pelo fato deles agora acontecerem nos centros urbanos – e não apenas em pequenas cidades e periferias. Com o aumento de usuários nas metrópoles, e a formação de uma cultura da bicicleta, o assunto ganhou mais visibilidade. Graças à internet, grupos de militantes pró-bicicleta (como o movimento Bicicletada) formam comunidades e organizam protestos, além de ter uma mídia eficiente para cobrar as autoridades.

“A mídia está dando mais destaque e, com a internet, o assunto tende a viralizar”, avalia Zé Lobo, cofundador e atual presidente da ONG Transporte Ativo.

Ciclovias precárias

Embora cada vez mais brasileiros estejam optando pela bicicleta como meio de transporte, a estrutura oferecida a eles ainda deixa a desejar. Mesmo no Rio de Janeiro, a cidade com a maior malha cicloviária do Brasil, não há integração entre bairros e o centro, nem bicicletários – os que existem no bairro da Cinelândia ou na presidente Antonio Carlos são caros e insuficientes, e não dispõem de duchas para higiene básica do ciclista.

“É interessante que por falta de malha cicloviária clara e segura muitas empresas não estimulam seus funcionários ao uso da bicicleta”, explica Giuseppe Zani, ciclista do Rio de Janeiro. “Algumas até iniciam a implantação de bicicletários, mas pararam ou limitaram o processo, por um motivo bem simples: em termos trabalhistas o deslocamento de ida e volta da residência ao trabalho é considerado de responsabilidade do empregador. Assim, sem plano cicloviário integrado, o incentivo das empresas em caso de acidente responsabilizaria as mesmas. Também são poucas as iniciativas básicas como circular em comboio (na Austrália, os empregados fazem os trajetos entre cidades em grupo), ou o planejamento e sinalização de Zonas 30, que são ruas com velocidade reduzida para trânsito mais amigável para bikes e automóveis. Londres, por exemplo, tem planejamento mapeado disso, com mapas disponíveis com as vias sinalizadas em cores diferentes conforme intensidade do tráfego.”

Outro problema grave é a falta de fiscalização – regras incluídas na legislação não são cumpridas e as faltas raramente resultam em multas.

“O Denatran não fiscaliza regras básicas, como o Artigo 201 do Código de Trânsito Brasileiro, que obriga motoristas a guardarem uma distância segura de um metro e meio ao passar ou ultrapassar o ciclista”, lembra Thaís de Lima, que mantém desde 2009 o blog Mulher de Ciclos, dedicado à vida sobre duas rodas. “Eles mesmos assumem que não fiscalizam e não multam. Quando são questionados, dizem que têm dificuldade em medir o que é um metro e meio. Já deram declarações de que só podem multar em caso de acidente. Ou seja, o ciclista precisa ser ferido para que haja punição.”

A maioria dos ciclistas entrevistados pela reportagem afirmou que se sentem seguros no trânsito, mas admitem que volta e meia precisam lidar com sérios problemas, como a hostilidade de motoristas de carro e ônibus. No ano passado, a fotógrafa paulistana Laura Sobenes publicou na internet uma história assustadora. Ela voltava do trabalho de bicicleta, quando, na Avenida Paulista, foi subitamente fechada por um ônibus. Tentou dialogar com o motorista, mas este ficou agressivo e disse que “lugar de ciclista é na calçada”. Assim que o farol abriu, jogou o veículo para cima de Laura, que estava ao lado da faixa de ônibus, e disse: “Ué, toma cuidado. É você que vai morrer. Eu só vou assinar um B.O.”. Laura ligou a câmera de seu celular, seguiu o motorista, e pediu que ele repetisse a frase. Depois, publicou o registro na web.

Graças à internet, o episódio se espalhou rapidamente entre a comunidade dos ciclistas, que cada vez mais se mobiliza sobre o uso da bicicleta em tom de defesa de direitos civis.

“Acho que está havendo uma politização da bicicleta, com usuários cada vez mais unidos”, explica Zé Lobo. “Porém, é preciso tomar cuidado para não partidarizar a questão. Como aconteceu em Bogotá, na Colômbia: um partido implementou programas para ajudar os ciclistas, mas o governo seguinte os abandonou. Tudo porque os programas ficaram associados ao partido anterior, com a cara do partido anterior. Na verdade, a bicicleta é um direito de todos, é das pessoas, não dos partidos.”

Zani nota que, apesar do código brasileiro de trânsito incluir direitos e deveres do ciclista no trânsito, institucionalmente a representação acontece de forma mais ou menos autônoma, tendo como principal fórum grupos organizados como o Massa Crítica.

“A Federação Brasileira de Ciclismo trata basicamente da parte desportiva. O Rio, que tem a maior quilometragem de ciclovias, é curiosamente um dos fóruns menos ativos, reunindo pouco mais de 20 pessoas por edição, enquanto em São Paulo e Porto Alegre chegam a 200 ou mais”, diz Zani, lembrando o papel equivocado dos órgãos públicos depois de um fatídico episódio em Porto Alegre em 2011, quando um motorista atropelou dezenas de ciclistas que organizavam um “pedalaço” coletivo: “A prefeitura acabou entrando em atrito com os ciclistas e chegou a ter uma intimação bem equivocada do Ministério Público entregue numa academia nas cercanias de onde o grupo costuma se encontrar para os passeios mensais. Há uma dificuldade de negociar e identificar responsáveis uma vez que se trata de um fórum sem líderes, de participação espontânea”.

Não são apenas os problemas de estrutura e a hostilidade de motoristas de carro e caminhão que alimentam os acidentes. Os próprios ciclistas reconhecem que falta orientação entre seus pares. A falta de educação no trânsito é geral, e envolve tanto motoristas quanto ciclistas e pedestres.

“O ciclista também tem sua parcela de culpa: ele não sinaliza, não olha para os lados, se acha soberano na rua”, admite o professor de educação física carioca Walter Tuche.

Como enfrentava problemas no trânsito ao treinar regularmente com um grupo de ciclistas, Walter buscou uma parceria com a prefeitura para colocar placas para horários preferenciais em algumas faixas, entre 5h30 e 6h30. Além disso, teve a ideia de fabricar garrafas d’água e distribuí-las a motoristas, espalhando uma mensagem de bom convívio entre carros e bikes. Para Walter, contudo, a falta de conscientização é geral: “A gente vê o pessoal circulando na contramão”, avisa. “Além de ser errado, é muito mais perigoso: quando a batida é de frente, aí mesmo é que o ciclista se dá mal.”

Segundo Thaís de Lima, falta investir em informação. “Há usuários de bicicleta que dirigem agressivamente, com uma postura reativa. Se você dirigir de forma pacífica, na defensiva, conseguirá antecipar os movimentos. Mobilidade urbana é informação e não se vê informação chegar a ninguém. Ninguém vai passar o trajeto todo com ciclovia, então a segurança passa pelo comportamento. É isto que vai nos proteger, embora nunca estaremos 100% seguros”.

Apesar de todas as notícias trágicas sobre acidentes fatais, o ciclista brasileiro tem razão em ficar otimista. Zé Lobo lembra que, quanto mais ciclistas circulando pelas ruas, menores os riscos. “A relação entre motorista e ciclista passa a ser maior. Um motorista que está acostumado a dividir a pista com ciclistas já aprendeu a negociar. Deixa de ser inesperado.”

* Publicado originalmente no site Opinião e Notícia.