Estar, verbo intransitivo

Foto: Getty Images

“Como assim, não está no Facebook?” Nos olhos curiosos, a lembrança do tempo em que se tinha controle do próprio tempo lampeja como um tweet. Verdade que dura só um segundo, o ciúme do tempo alheio. 140 milissegundos. “Mas nunca esteve ou saiu? Ah, entendi.” Feito um gato arremessado ao obscuro mundo do não, o ego virtual cai de pé, sempre. E sendo o site a aplicação empírica das teorias sobre a inflação do ego em tempos de cliques e bites, a inveja se transmuta em pena, travestida em desprezo – algo entre o que se sente por uma criança de orfanato e um viciado recorrente no chão da Avenida Paulista. Pobre outsider, não sabe o que perde.

Até que o discurso pasteurizado e homogeneizado com os ganhos profissionais, pessoais, sentimentais e existenciais que só a rede faz por você brota da caixinha, pronto para beber. Como o Winston Smith de 1984 ou o Bernard Marx de Admirável Mundo Novo, o narrador descobre, atônito, que nesse tempo ditado por um sistema que formata o acesso às experiências da vida de todos, ignorá-lo é atitude transgressora, politicamente incorreta – e chata. “Só os chatos não têm Facebook”. Os sem coragem para adentrar o portal por medo de não sair. Caretas virtuais. Categoria na qual eu me sentia pra lá de confortável. Até surgir esse bendito blog.

Estar ou não estar, eis a questão que surgia. Faria sentido escrever crônicas virtuais sem ver sua reverberação (ou a ausência completa dela, o que já seria uma resposta) no Face? Não, concluíram por mim os amigos. “Não inventaram nada melhor para encontrar pessoas e manter contatos e divulgar o próprio trabalho, etc., etc., etc.”, garantiu esse ser amorfo de mil vozes fundidas num consenso de caixinha UHT.

Abrir ou não meu perfil, eis a questão que ressurgia. Meus dados estavam lá, desde quando, seis meses atrás, eu saíra do Facebook. Pois sim, eu estive, por um mês fiz parte da loucura coletiva. É justamente a lembrança do tempo em que perdi o controle do tempo que eu queria evitar. Mas assumir o medo não ajuda. Antes faz da atitude algo ainda mais (anti)revolucionário. Pois bradam os paladinos do mundo virtual: renegar as redes sociais em tempos de meio bilhão de usuários é cimentar a entrada da caverna e reduzir as representações possíveis a um arremedo de sombra real. Não adianta argumentar com o receio da despersonalização frente à modernidade líquida do capitalismo, teorias sobre a economia do tempo para deficitários de atenção ou o caráter biográfico na constituição do sujeito – é preciso estar, verbo intransitivo.

Mas antes de inventar uma desculpa melhor para a volta (ou, usando o exemplo de Santo Agostinho, um jeito de publicar minhas Confissões nos moldes e tempo do Face), conto aqui minha pequena odisseia particular. O dia em que decidi sair do Facebook.

Quanto tempo cabe em um mês virtual! Primeiro gastam-se horas lendo mensagens, abrindo fotos e bisbilhotando perfis de gente que não interessa. Por preguiça de aprender a operar essa panaceia de “ferramentas sociais” e ser criticado por fazer parcos logins; de tanto perder festas e jantares por não checar meu status; de tanto reclamar por não receber mais telefonemas e sentir falta de conversas reais e me irritar por aparecer em fotos apocalípticas com um tag na cara – enfim, de não mais suportar a exigência de transferir para os moldes de Zuckerberg toda uma vida, eu pesquisei sobre como sair. Bem que eu queria.

Alguém se lembra de ter lido, ao entrar para o Facebook, que aceitava vender a alma ao diabo? Eu não. Então digitei, na ajuda do programa, a inocente expressão “deletar conta”. Queria terminar logo, tinha mais o que fazer, eu não servia para aquilo. Assumiria minha ignorância, afinaria meu discurso de despedida e era isso. Levaria 15 segundos. A primeira mensagem foi essa. “Ao desativar sua conta, você removerá completamente seu perfil (linha do tempo) e todos os conteúdos associados à conta do Facebook. Além disso, os usuários não poderão procurar por você nem visualizar suas informações.” Ótimo. “Ao reativar sua conta, seu perfil (linha do tempo) será totalmente restaurado (amigos, fotos, interesses etc.)”. E eu com isso.

Era só o início do caminho das pedras. Após clicar no menu Conta, selecionar Configurações da conta, depois Segurança e clicar em “Desativar sua conta”, coitado de mim, vi a profundidade do buraco. Como um demônio mefistofélico, o Facebook prefere conversar antes de terminar a relação, sabe como é, depois de tanto tempo junto não se diz tchau sem uma última discussão. “Tem certeza de que deseja desativar sua conta? Desativar sua conta vai desabilitar seu perfil e remover seu nome e foto de todo o conteúdo que você compartilhou no Facebook.” Sim, sim, sim. Mas aí surge a chantagem emocional. Fotos de amigos queridos aparecem – um deles olha para o horizonte da Chapada Diamantina, outro se abraça triste ao violão e outro sorri na foto da festa no dia em que se casou. Sobre cada imagem, a mensagem: “Tal pessoa sentirá sua falta”. Caso você, monstro sem sentimentos, conseguisse abandonar aqueles amigos sozinhos no universo virtual, ficava subentendido, precisaria ainda explicar por que, clicando num dos itens da caixa “Motivo da saída (obrigatório)”.

“Não sei como usar o Facebook.” Clique. O demônio responde na lata: “Aprenda o básico no nosso Central de Ajuda”. Mas não, talvez eu queira sair por que “Eu não acho que o Facebook seja útil”. E ele: “Você pode perceber a utilidade do Facebook após entrar em contato com mais amigos. Confira nosso Localizador de Amigos para saber quem você conhece no site”. Não, a decisão é sólida, a discussão está no passado, melhor clicar em “Eu gasto muito tempo usando Facebook” e encerrar o joguinho psicológico por aqui mesmo. Mas e se ele disser que “uma maneira de controlar sua interação com o Facebook é limitar o número de e-mails que você recebe de nós”?

A tentativa de fuga avança pelo sistema e você clica em qualquer opção, com os diabos, já sem lembrar qual. Assustado com o fato recordado de que todos os seus dados são vendidos a milhões de empresas mundo afora por aquela mesma entidade sem forma que agora o barra na porta de saída, você pressiona o botão “Confirmar”, digita sua senha, os caracteres da verificação de segurança e, ufa, parece que acabou. Mas “eles” sabem das suas fraquezas, conhecedores natos da natureza humana virtual. Não dizem “adeus”, mas “até lá”. Uma caixa aparece no canto da tela. “Sua conta foi desativada. Para reativar sua conta, faça login usando seu antigo e-mail e a senha. Você poderá usar o site como antes. Esperamos que você retorne em breve.”

Kafka na veia! Não, eu não mais voltaria. Nunca mais. Mas e o blog? Seria para imprimir os textos e mostrar aos amigos? Quão anacrônico é um blog desligado do Facebook, quão pouco democrático, afônico, inútil? Aquiescendo à saraivada de pedidos, conselhos e xingamentos, eu disse sim. Fiz o login. E como se nada tivesse acontecido, como se eu voltasse de uma viagem de férias, lá estavam, com caras diferentes, status diferentes, novas fotos e comentários sobre a vida, os amigos, conhecidos e inimigos (exagero), aguardando o retorno do filho pródigo – o mais feliz dentre eles, o Facebook. “Que bom que você voltou! Sua conta está novamente ativa.”

É, eu estava. Percebi pela primeira cutucada de alguém com quem não falava havia um ano. Logo vieram mensagens, pedidos de amizade, tags em fotos bizarras. Os fantasmas da perda de tempo, da invasão de privacidade, da despersonalização dançavam satisfeitos. Sobrou a filosofia de botequim.

A ideia de comportar a complexidade do mundo em um parâmetro lógico não nasceu com os gregos. É do homem. Mas o mundo era então bem menos complexo, os deuses apenas haviam começado a se reduzir em número na Grécia e os grandes debates ocorriam na ágora entre a meia dúzia de homens livres dispostos a gastar o precioso tempo de uma mortalidade de 35 anos com uma boa conversa fora. Agora, enquadrar um universo de preferências e atuações em abas e barras de rolagem, em pastas e galerias, sob pena de ficar completamente alijado do mundo, pareceria um exagero anacrônico. O fato de ter dificuldades de ordem patológica para escolher dá suporte à antiga decisão. Como selecionar as fotos que traduzem o que eu acho que sou? Como decidir como creio que me vejo ou como julgo que desejo ser visto pelos outros – ou ainda como acho que posso saber como os outros me verão – é tarefa hercúlea, sisífica (http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%ADsifo), um vício de origem.

E pensar que a vida, vivida cada vez mais dentro daquela plataforma, acaba adquirindo aquele formato, assusta. As fotos não servem mais para guardar o momento da festa, mas para postar no Face – a própria festa, por fim, serve para postar no Face. A vida se transporta para o Face. Por que não fazer a festa em si virtual, automaticamente registrada, momento a momento? O Facebook materializa então na virtualidade o que Marcel Proust teorizava, no fim do Século 19, como a vida narrada nos salões da aristocracia francesa. Bastaria substituir o caso Dreyfus pela frase de Carlos Apolinário ou a Luisa, que está no Canadá, e teríamos uma interessante possibilidade de busca do tempo perdido nas madrugadas escoadas no Facebook, como então se deixava escorrer a vida em rodas de conversas sobre vidas que já não viviam. Era preciso ser visto, registrado, citado nos jornais, nas conversas, para existir nos salões que o escritor define, chegando a formar uma “psicologia do indivíduo medíocre”, que não existe senão em meio ao ethos. Qualquer semelhança não é mera coincidência.

Depender apenas da carne e das palavras em invólucros tão anacrônicos como o e-mail ou o celular é como ser humano num mundo mutante ou vampiro num mundo humano, para se ater às referências plausíveis da geração do progenitor Zuckerberg (que calha de ser a minha). O que Proust, em sua busca do tempo perdido, havia antes e melhor definido como “uma sucessão de prazeres inteiramente diversos de quaisquer outros, indizíveis para os amigos, no sentido que as impressões ricamente entretecidas umas nas outras que os orquestraram muito mais os caracterizavam para mim, e sem que eu o soubesse, do que os fatos que eu poderia contar”.

Parece golpe baixo apoiar-se em Proust. Se eu quero escrever a alguém, eu escrevo um e-mail. Se quero falar com alguém, eu falo ao telefone. Não há barreira entre o desejo me comunicar com alguém e a concretização do desejo – a alegada facilitação do Facebook nunca me inspirou, nem quando adentrava o terreno das pessoas desconhecidas, mas tão à mão, tão perto de um contato bastando apenas uma cutucada, uma olhada nas fotos e comentários do perfil, uma mensagem, no máximo, para ter imediatamente um novo amigo. Novos horizontes, tão infinitos quanto o volume de dados pessoais a jorrar para o banco de dados do Facebook. Será mesmo? Para provar que não, decidi pesquisar (pelo concorrente Google, não pelo Facebook).

Basta digitar, juntas, as pleonásticas palavrinhas “vício” e “facebook” e uma torrente de links surge na tela. Uma pesquisa revela que o termo “facebook addiction (vício em facebook)” foi décimo sexto mais procurado, à frente inclusive de “sex addiction (vício em sexo)”. Outra mostra que 48% dos norte-americanos entre 18 e 34 anos fuçavam em seu Facebook assim que acordavam – 28% deles o faziam na cama, antes de levantar, pelos smartphones. O que explica por que 57% deles conversam mais online do que no “mundo real” e por que uma empresa lançou até um teclado especial para viciados, o S.N.A.K. (Social Network Access Keyboard), com teclas de acesso direto a serviços do Facebook, como galeria de fotos, feed de notícias, e até mesmo o botão “curtir”. Um blog até elogiou o produto, mas criticou o fato de as teclas serem adesivos comuns, “que podem se desgastar rapidamente com a frequência de uso.”

E como lidar com os dados de um estudo da University of Chicago Booth School of Business, que concluiu ser mais difícil para os usuários resistirem ao desejo absurdo de dar uma olhadinha – rapidinha, prometo, só para ver se vai ter aquela festa ou se fulano me adicionou ou se tem alguma notícia importante ou se alguém curtiu o comentário que fiz cinco minutos atrás sobre a situação das prostitutas afegãs – no Facebook do que de fumar um cigarro ou mesmo de ir atrás de sexo? Se algo passa à frente de sexo, é melhor ficar alerta.

Daí descobri os programas antivício. Foi num almoço – real, com uma amiga real – que descobri a novidade. “Quando eu vivia em Londres, reclamei com uma amiga por passar tempo demais no Facebook. Ela me disse que havia vários programas para controlar o vício. A pessoa podia estipular quanto tempo queria passar conectada, digamos uma hora por semana, e o programa proibia a entrada no Facebook depois disso. Achei um absurdo. Não só por achar que eu mesma poderia me controlar, mas por medo de ficar sem o Facebook!”

“Viciado em Facebook? Bloqueie sites que distraem no trabalho”, dizia o site tecnofagia.com, em uma resenha curiosa sobre os programas de computador para controlar o uso excessivo da rede. “O KeepMeOut permite definir quanto tempo você se permite acessar sites viciantes. Você pode definir quantas horas por dia pode acessar e se o bloqueio será apenas nos dias úteis.” E o LeechBlock “permite criar até seis regras distintas de site e horário de bloqueio. Quando você entra em um site da lista, um pequeno timer começa a contar no rodapé da página”. Havia outros ainda. O detalhe é que o próprio site pede para ser curtido no Facebook. Sintomático: ao lado do artigo, três dos quatro anúncios do Google (decididos por meio de seleção de perfil) versavam sobre “dependência química” ou “clínicas de recuperação”.

Lembrei de certas noites em Pequim, em 2010, quando apurávamos uma reportagem sobre o vício dos chineses em internet para a Carta. Numa dessas saídas, por volta das duas da manhã, vimos dezenas de jovens sentados um ao lado do outro em um cibercafé 24 horas. Conversavam por chat, jogavam em fazendolas virtuais e, claro, gastavam fins de semana inteiros no renren.com, a versão deles do subversivo Facebook proibido pelo governo. A cena soou triste. Quem, afinal, trocaria a vida inundada de sentidos reais por uma noite na atmosfera azulada de cigarros baratos e barulho de videogame? À época, uma campanha para contornar o vício prometia até um manual com os sintomas da “doença” – como passar mais de seis horas diárias na frente da tela. Seis horas? Uma piada. Claro, na China a campanha deu subsídios para “campos” de reabilitação para ciberviciados. Mas por aqui a coisa vai para o mesmo lado.

Uma reportagem da CNN fez até uma checklist. Se você perde horas de sono para ficar na rede, passa mais de uma hora por dia (outra piada) no Face, volta a ficar obsessivo com relacionamentos passados, ignora trabalho para navegar no site e o simples pensamento de deixar o Facebook o faz suar frio – você é viciado. Um certo e duvidoso doutor Michael Fenichel, psicólogo visionário, cunhou o termo que faltava: FAD, Facebook Addiction Disorder ou transtorno do vício em Facebook. “É difícil não observar a ubiquididade (sic) do vício em internet como um fenômeno e/ou parte aceita da vida cotidiana na era digital. Estaríamos em risco de ver a apresentação vasta – a existência de traços culturais comuns – de um transtorno do vício em Facebook? Ou às vezes é apenas FAD? (em inglês, fad quer dizer moda passageira)”.

A carinha sorrindo não ajuda a já parca credibilidade do psicólogo. Mas o que dizer da escritora Zadie Smith? No artigo Generation Why?, publicado na New York Review of Books em 2010, Smith vaticinou o iminente auge da despersonalização dos sujeitos virtuais pelo excesso de individualismo egotista imposto pelos mecanismos do Facebook. “Quando uma pessoa se transforma numa série de dados num website como o Facebook, tudo nela fica menor: a personalidade individual, as amizades, a linguagem, a sensibilidade. De certo modo, não deixa de ser uma forma de transcendência: perdemos nosso corpo, nossos sentimentos contraditórios, nossos desejos, nossos medos – o que me faz pensar que aqueles de nós que sempre recusaram, com repulsa, o que vemos como uma ideia burguesa hiperinflada da identidade individual talvez tenham exagerado no sentido inverso: as identidades despojadas que assumimos na rede não mostram mais liberdade. São, apenas, mais controladas por alguém.”

Mas era tarde. Eu voltara a “estar”. Então me sobrou chafurdar na linha do tempo e emergir com um texto. Que desculpa melhor que a velha dicotomia viver-narrar para se apoiar nessa hora – como escrever sobre o Facebook sem sê-lo? Porque é um estado de espírito, estar no Facebook. Nos últimos 15 dias desde o “retorno”, não passou um sem que eu visitasse o tal status. Em muitos, gastei boas dezenas de minutos subindo e descendo a barra de rolagem. Claro, não imputo a ninguém uma culpa que é minha. Culpa dos ansiosos. Culpa dos conservadores, que julgam inacabadas conversas espargidas em bate-papos e cutucadas e tiradinhas cravadas nos perfis alheios. Como a tal filha citada na tal da reportagem da CNN. De tão viciada no Facebook, a mãe esqueceu da filha. A ponto de a criança, cansada de pedir ajuda para a lição da escola, ir ao quarto mandar um e-mail para a mãe. Mas ele também foi ignorado, claro, porque ela estava muito ocupada comentando e atualizando e rolando a barra do Facebook. A mãe não quis mostrar o rosto.

Eu me senti egoísta como a pobre criança. Nesses dias de retorno, e-mails ignorados ganharam sua resposta ali, em poucas palavras jogadas na tela. Chamadas não atendidas por meio dele se explicavam. E convites reais, declinados com polidez, ali reverberavam – se a pessoa não deixava meia hora passar sem postar um comentário, um vídeo, um link, um pedacinho de si, para todos, como teria tempo de fazê-lo para um só, eu? A não ser que o Facebook fosse visto como arma contra o egoísmo, democrático, uma ferramenta quase comunista, apesar de calcada no culto à personalidade virtual: um pedacinho para cada, nada inteiro para ninguém.

A inteireza é anacrônica, é egoísta, é uma chaga a ser extirpada com ajuda dos cliques, diriam os filósofos de prontidão para preencher as páginas amarelas. E se Smith viesse dizer que, ao falar para uma multidão, na verdade não falamos para ninguém – que ao cutucar alguém deixamos de lhe apertar as carnes ou que, ao viver pelas máximas comentadas no mural e índices de status postados ali, estaríamos experimentando não uma existência real, mas o simulacro de uma vida que não existe, no sentido mais estrito do termo – bem, ela que escreva outro livro que ninguém vai ler.

Mas e se pensarmos que a experiência caminha para deixar de existir em si mesma, numa platônica noção de mundo real, para migrar por inteiro para o mundo da representação – ou dos salões aristocráticos do tempo perdido de Proust? E, pior, ao abrir mão da experiência, não estaria o ser facebookiano pondo a pá de cal sobre a capacidade narrativa? Quem é esse narrador, perguntaria Benjamin? É alguém com o traseiro na cadeira e a memória a esvaziar-se pelo bombardeio perene de estímulos, que já não separa o vivido do narrado – antes vive para narrar ou mesmo narra para viver, extirpando da própria narrativa os resquícios de complexidade dos tempos em que se liam contos de fada na escola. “O homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado”, disse o filósofo Paul Valéry. “Com efeito, o homem conseguiu abreviar até a narrativa”, emendou Benjamin. Ela se restringiu às atualizações de status e à leitura de comentários, fotos, links e vídeos, sob a ótica das informações do perfil. Eu sou isso. Penso assim. Este é o retrato fiel de minha vida. “Ou você não viu meu Face?”

Por isso escrevi essa crônica. Para confessar um prazer sádico com o espanto alheio ao descobrir que, sim, se pode não estar. Não estar conectado. Virtualmente não existir. Foi bom enquanto durou. Agora cá estou, meu tempo novamente entregue ao controle divino da máquina. Volta e meia ainda recebo uma mensagem triunfante de uma das partezinhas desse ser disforme e universal, esfregando na minha cara a revanche do ego – paladinos de Zuckerberg a bardar a certeza de que é mais confortável viver no lado de cá, alimentado pelo soma virtual, pela verdade artificial, pela deliciosa ausência do império do tempo. “Aha, voltou para o Facebook? Eu sabia”.

* Publicado originalmente no site Carta Capital.