Vida virtual: a necessidade de existir?

Está cada vez mais difícil conciliar identidade real e identidade digital.

Redes sociais apagaram as fronteiras entre identidade real e digital. Agora, é preciso ser feliz duas vezes.

Se eu for ao restaurante e não fotografar o prato com Instagram, ainda assim vou poder apreciar a comida? Se as fotos da minha viagem não aparecerem nas redes sociais, ainda vou ter a sensação de ter viajado? E se comecei a namorar sem ter mudado meu status de relacionamento, será namoro de verdade?

A internet trouxe um peso que eu, simplesmente, não sentia dez anos atrás. Uma necessidade de “existir” fora da vida real. De repente, é como se tudo que eu fizesse precisasse de um espelho digital – uma espécie de dublê virtual que me dá cara e sentido. É um pouco como checar a cada minuto meu reflexo. Estou mesmo vivo? Estou mexendo os pés, as mãos, a cabeça?

No início da web, havia uma separação clara entre o real e o virtual. O primeiro era o domínio do palpável, dos pés no chão. O outro era pura fantasia e ilusão. Se você quisesse atravessar essa linha divisória, recomendava-se um pseudônimo. As pessoas adotavam temporariamente um alter ego, que não se restringia apenas a um nome, mas a toda uma identidade digital – parecida ou não com a real, não importava. Depois, voltava-se à sua existência de carne e osso, talvez com alguns conflitos de identidade, mas sempre com uma divisão clara entre as duas esferas. Tínhamos relações, contatos e hábitos no real e no virtual, e estes raramente se misturavam.

Foi então que o MSN, o Gtalk, mas também a disseminação das câmeras digitais e das redes sociais, entraram em nossas vidas pessoais e profissionais. O Orkut e depois o Facebook, mais que quaisquer outras ferramentas, embaralharam definitivamente as cartas. Nas redes sociais, você coloca seu próprio nome, suas próprias fotos, suas próprias informações pessoais, armazenando sua identidade em uma interface digital. A “vida verdadeira” com “pessoas verdadeiras” invadiu subitamente o mundo virtual, apagando as fronteiras entre as duas esferas.

As duas identidades nunca estiveram tão juntas. Ao mesmo tempo, nenhuma substitui a outra. Não, não estamos perdendo nosso contato com o mundo de verdade, de carne e osso. Não acredite nos catastrofistas do 2.0 que preveem o fim da nossa “identidade física”. O Sean Parker do filme de David Fincher estava errado ao dizer que, muito em breve, “moraremos na internet”. E a prova é o relativo fracasso de redes como o Second Life, que propõe uma imersão completa num mundo virtual abstrato.

Na verdade, o avatar não é mais esse “eu” sem limites, moldado de acordo com nossas fantasias infinitas; o avatar é agora uma extensão da nossa vida real, um “eu” reduzido a tudo aquilo que acreditamos nos definir: gostos, fetiches, status, conhecimento e boas relações. Dependendo da nossa inteligência em lidar com os códigos da internet, a nossa atividade na internet virou inclusive uma ponte para conseguir coisas reais e palpáveis. Muitas vezes, é o caminho mais lógico – ou até, e aí começa a pressão, o único caminho.

Identidade real e virtual coabitam, mas não sem conflitos. Com um pé fincado na realidade e outro em sua representação digital, fica cada vez mais difícil encontrar um equilíbrio. Como ligações covalentes, uma depende da outra para se manter. Vem então o peso, a necessidade exaustiva de alimentar nosso duplo digital, como se a vida só fizesse sentido quando colocada em cena na internet. Como se eu só existisse ao construir duas versões de mim mesmo.

Pior ainda é a neurose em conciliar as duas realidades. Sim, porque as pessoas estão conscientes de que não podem se limitar a um avatar e sofrem quando percebem que “existiram” demais no Facebook e de menos na vida real. A sociedade de consumo sempre nos impôs desejos inalcançáveis e, muitas vezes, contraditórios. É preciso ser trabalhador e aproveitar a vida, é preciso ter posses e ser desprendido, é preciso ter uma vida regrada e ser aventureiro, preocupar-se com o futuro e viver como se não houvesse amanhã. É preciso comer tudo que é bom e ser magro, é preciso buscar a história de amor monogâmica perfeita e ser um objeto de desejo para todas as pessoas (o capital sexual na era das comédias românticas). Pois as redes sociais acrescentaram mais um elemento a essa esquizofrenia: não basta ter uma vida que pareça ser boa para você. A sua vida também precisa parecer boa no Facebook.

Essa vida dupla é a marca do nosso tempo. Nos dias de hoje, ninguém mais é feliz se não for feliz duas vezes. Pouquíssimas pessoas se contentam apenas com a identidade que criou para si na internet. A maioria tem consciência que, ao passar muito tempo na internet, não está vivendo a vida de verdade, com pessoas de verdade. Mas, da mesma forma, está cada vez mais difícil apreciar a vida por si só. Se um bom momento não resultar em um bom álbum de fotos, ou um bom status, se não for compartilhado com uma legião de contatos virtuais e curtido, é como se a experiência não fizesse sentido. Sem um complemento na internet, sem uma representação nessa realidade paralela, fica uma estranha sensação de vazio. Onde está o botão curtir da vida real?

* Bolívar Torres é jornalista e escritor.

** Publicado originalmente no site Opinião e Notícia.