Tempo pós-democrático? Globalização capitalista e a política

O mundo moderno ocidental foi construído em torno de dois pilares fundamentais que mantinham uma tensão entre eles: a economia de mercado e a democracia no campo político. O mercado, com suas relações de concorrência e a busca de lucro, geraria progresso econômico que libertaria seres humanos da pobreza. O problema é que o motor desse progresso, a concorrência, é ao mesmo tempo uma lógica social baseada na exclusão. Pois a concorrência só gera progresso na medida em que os menos eficientes são eliminados. A tendência excludente do sistema de mercado seria compensada pela dinâmica inclusiva da democracia no campo político. A democracia combateria não somente o absolutismo das monarquias, mas também compensaria a lógica excludente do sistema mercado garantindo aos indivíduos os direitos de cidadania, que lhes daria certa proteção diante da fria lógica do mercado. Além disso, o reconhecimento pelo menos formal dos direitos humanos, ou de cidadãos, de todos os indivíduos serviu de base para as lutas sociais pela ampliação desses direitos de cidadãos a todos os seres humanos: pobres, mulheres, negros, indígenas, analfabetos…

Nesse sentido, podemos dizer que a social-democracia europeia, da primeira metade do Século 20, era a expressão mais visível dessa proposta. Criar a riqueza por meio do sistema de mercado capitalista e redistribuir a renda e possibilitar condições de oportunidade de progresso econômico para toda a população por intermédio das políticas do estado de bem-estar social e da regulação do mercado. É claro que em muitos países capitalistas do Ocidente esse projeto ficou mais no campo da retórica do que da aplicação na realidade social. Mas, mesmo que reduzido à retórica, servia como argumento para lutas sociais populares.

O neoliberalismo foi uma grande ruptura desse modelo. A partir da década de 1980, o Estado e a democracia deixaram de ser vistos como formando um dos pilares desse projeto e a noção de Estado de bem-estar social ou do Estado regulador da economia (como expressão da tensão necessária entre esses dois pilares da sociedade) passou a ser vista como inimiga do mercado e, portanto, do progresso e da própria sociedade. A batalha ideológica promovida por neoliberais foi dirigida ao Estado e aos políticos em geral, como forma de desmoralizar a política como tal e deixar o mercado como o único princípio organizador de toda a sociedade. Isto é, o mercado deixou de ser somente o coordenador da divisão social do trabalho, da economia, para ser proposto como o único princípio organizador e o principal critério de decisão de toda a sociedade.

As últimas décadas não foram somente o tempo do neoliberalismo, mas também da globalização econômica. Com isto, essa hegemonia neoliberal foi sendo estendida a todas as partes do mundo que iam sendo incorporadas a esse processo de globalização. A crise financeiro-econômica que começou em 2008 exigiu uma grande intervenção dos Estados para salvar os bancos, o sistema financeiro e também partes do setor produtivo. Os grandes defensores da política neoliberal, como Alan Greenspan, ex-presidente do Banco Central dos Estados Unidos, fizeram seus mea-culpa. Parecia que o neoliberalismo tinha sofrido um golpe fatal ou muito forte. Porém, a forma como a crise europeia está sendo conduzida parece nos mostrar que a realidade não é essa. As indicações dos primeiros-ministros da Grécia e da Itália, apontados não pelos políticos ou povo dos seus países, mas pelos dirigentes do sistema financeiro europeu, mostram que talvez estejamos ingressando em um tempo pós-democrático.

Parece que de fato o sistema econômico global está se impondo sobre os Estados e o campo político, e agora um único princípio rege o mundo: o da eficiência do mercado. O que diversos autores têm estudado como novo tipo de império, não de um país sobre outros, mas o próprio sistema capitalista global funcionando como império. O mundo não seria mais pensado a partir da tensão entre mercado-economia e democracia-política, mas a partir de uma “harmonia imperial” em torno de um único princípio e pilar: o mercado. Por isso, o perigo de um tempo pós-democrático, um tempo em que a democracia seria considerada, no máximo, um acessório, mas não um valor norteador das sociedades que queremos construir.

Eu penso que o neoliberalismo como foi proposto na década de 1940 por Hayek, e tornado hegemônico a partir de 1980, com Reagan e Thatcher, entrou em crise; mas isto não significa que ele não esteja se reconfigurado, talvez com outro nome, para levar avante o projeto de fazer da eficiência do mercado o único ou “o” grande critério para a vida social e pessoal.

Mas, se pensarmos bem, a modernidade tinha também um grande projeto, talvez o maior, que era o de uma sociedade e homens emancipados, que estariam livres da repressão e controle do Estado. Por isso, o progresso sempre foi o grande mote da modernidade e não a democracia. E os neoliberais não são os únicos a lutarem por uma sociedade sem Estado, os marxistas também lutaram, e alguns ainda lutam, por uma sociedade sem Estado. Por isso, eles também não valorizaram muito a democracia. Porém, este é assunto para o próximo artigo.

* Jung Mo Sung é diretor da Faculdade de Humanidades e Direito da Universidade Metodista de São Paulo. Coautor, com Joerg Rieger e Néstor Míguez, do livro Beyond the Spirit of Empire, Londres, 2009, a sair em português em 2012, pela Paulinas.

** Publicado originalmente no site Adital.