"A própria sociedade brasileira é responsável pelo seu desenvolvimento"

Apesar de ser a sexta economia mundial, o Brasil possui 55 milhões de pessoas vivendo em insegurança alimentar. Movida pela vontade de promover justiça social e amor, a economista Luciana Quintão fundou a organização não governamental Banco de Alimentos. Desde 1999, a organização busca sanar a fome, educar e mobilizar a população brasileira para a mudança social.

Entre as ações da ONG estão a coleta de doações de alimentos, o acompanhamento nutricional das entidades assistidas e a sensibilização da população brasileira para a ação em prol de toda a sociedade. Todas as atividades são baseadas em uma ideia absorvida e difundida por Luciana, de que a própria sociedade brasileira é responsável pelo seu desenvolvimento.

Confira as ações e as ideias dessa mulher que faz de sua vida uma eterna busca pela mudança.

Portal EcoDesenvolvimento.org: De onde surgiu a ideia de criação da ONG?

Luciana Quintão: Eu nunca tinha sido ligada a algum trabalho em ONG ou nada parecido. O que aconteceu foi que, observando a sociedade e o modo como a gente se comporta em relação a ela, eu quis fazer um tipo de crítica. Porque, ao meu ver, todas as mazelas e injustiças que vemos são fruto da nossa falta de capacidade de lidar com as coisas. Por isso fiz a ONG. Para ajudar e mostrar à sociedade que a gente pode mudar as coisas. Que não mudamos porque ficamos passivos, nem nos engajamos e nem cobramos do governo as coisas que ele tem que fazer.

Como funciona o conceito “colheita urbana” trabalhado pela organização?

A colheita urbana é a primeira forma de ação prática da ONG. A gente passa pela manhã recolhendo alimentos que estão fora de comercialização, alimentos que não foram vendidos e teriam o lixo como destino, mas estão excelentes para o consumo humano. E os entregamos às entidades assistidas no começo da tarde. Tudo deve ser feito no mesmo dia.

Quais os cuidados que vocês têm com os alimentos coletados?

A gente tem todo o cuidado com a higiene desses alimentos, utilizamos luvas e sacos plásticos para embalagens, nossos carros são totalmente aptos para o transporte, eles são revestidos por dentro, têm climatização, e esse alimento é levado in natura ou industrializado para as unidades assistidas no mesmo dia, para que elas atestem por escrito que receberam um alimento próprio para o consumo.

Temos essa política de boletos porque não existe uma lei que defenda o doador de alimentos, senão eu mesma estaria sujeita a alguma notificação. Eu criei esse modelo de doação também para mostrar que todos podem fazer, e que funciona muito bem.

Por meio da colheita urbana, já conseguimos complementar mais de 44 milhões de refeições, durante os 13 anos da ONG. Conseguimos evitar o desperdício de 40 toneladas de alimentos que iam parar no lixo, por mês. Nós atendemos 22 mil pessoas por dia.

De que forma vocês coletam doadores para participar do projeto?

No início nós pensávamos que a indústria seria uma boa fornecedora de alimentos para esse trabalho, e eu mandei mais de 400 cartas para indústrias, mas não tive nenhuma resposta. No primeiro momento, 100% dos doadores eram do ramo do hortifruti. Eu consegui a adesão desses pequenos empresários, essas pessoas que têm barracas em mercados municipais que, com o “olho no olho”, entenderam que seria melhor doar do que jogar fora.

Com o tempo, com a eficiência do trabalho e batendo na mesma porta das indústrias conseguimos apoio. Hoje quase 70% do que a gente coleta é industrializado. No começo, elas não queriam que citássemos seus nomes, mas a gente tem que dar o exemplo para incentivar. E hoje podemos dizer que a Danone, a Via Ferla, a Vic Bolt e a Alimentos Processados nos apoiam na causa.

Como funciona a seleção das organizações que serão beneficiadas?

Hoje nós temos uma fila de espera de mais de 200 entidades. A gente parou de cadastrar porque nesse momento, não temos como fazer a ponte. Algumas empresas até querem ajudar mais, com alimentos de toda uma rede, mas não é possível porque a nossa capacidade é a capacidade de instalação que temos.

Então, os beneficiários são praticamente os mesmos desde que começamos, são 52 entidades que assistem pessoas que não geram renda e vivem em insegurança alimentar. Estas entidades têm que estar em acordo com nossas exigências, elas têm que ter condições de receber esse alimento (onde armazenar, etc.) e também têm obrigações com a ONG, como a manipulação correta dos alimentos e as técnicas de cozinha, que ensinamos em cursos e workshops.

O nosso trabalho com as entidades funciona sob o tripé da colheita urbana, de ações profiláticas de apoio (workshops, cursos, convênio com a Faculdade São Camilo), e a mobilização social para a mudança.

O projeto “9 Você Pode” está dentro dessas ações de mobilização?

Sim. Na verdade, mesmo sendo sem fins lucrativos, o nosso trabalho possui um custo alto de manutenção. Desde os salários dos funcionários até a gasolina dos veículos. Com a campanha “9 Você Pode” a gente quer mobilizar as pessoas, com menos de R$ 10, a se engajarem no programa e fazerem parte. Se nós conseguirmos 15 mil pessoas que doem R$ 9 (o que representa uma poeira no universo da internet) a ONG já será autossustentável, o que melhoraria em muito a realização do nosso trabalho.

Esse valor, para o Brasil que não passa fome, é irrisório e cabe no orçamento de milhares de brasileiros, ao mesmo tempo em que faz uma diferença enorme para outras pessoas que não têm o que comer. Além disso, nós acreditamos que essa doação vai ajudar a construir uma nova forma de pensar.

Infelizmente, com a nossa democracia representativa, a gente vai lá e deposita o voto na urna esperando que o político faça pela gente, mas isto não acontece. Então temos que agir. Eu costumo dizer que a fome é uma metáfora que pode ser usada para tudo, sentimos fome de alimentos, mas também temos fome de justiça, de moradia, de transporte público, de saúde. O que a ONG oferece é um alimento de comida, mas também um alimento de consciência para a sociedade.

Quais outros projetos são ou serão realizados pela ONG?

Eu tenho um projeto em educação chamado Alimentando a Transformação Social, que é um sonho meu de tentar influenciar as crianças e jovens, do maternal ao ensino colegial. Para as crianças, ele ensina questões básicas, como “lixo não é lixo”, de forma bem lúdica. E esse ensino vai se tornando cada vez mais complexo até chegar no último ano colegial, onde tratamos sobre o papel de cada um na construção do todo. São pessoas que teoricamente já vão escolher uma profissão… E vão estar a serviço de quê?

Quantos advogados não advocam pela justiça do país e quantos médicos não conhecem os números da fome? Isto poderia ser usado nas escolas. Essa seria uma ferramenta importante, que estaria valorizando o construir, o ajudar, a justiça, em vez de passar batido. O projeto é um exemplo de ação voltada para a sociedade que não está com fome, mas faz com que esse sistema permaneça justamente por não agir, por permanecer passiva.

* Publicado originalmente no site EcoD.