Porque a banda larga (ainda) não é de todos

Para Marcos Dantas, falta ao plano do governo ambição de universalidade. Sem ela, acesso à internet reproduzirá desigualdades brasileiras.

Um “tuitaço” marcou, no dia 21, mais uma etapa da mobilização da sociedade brasileira pela garantia de banda larga de internet para todos (veja como participar). A rede de organizações sociais que promove a iniciativa considera que o Plano Nacional de Banda Larga (PNBL), proposto pelo governo federal em maio de 2010, é insuficiente e caminha a passos muito lentos — em especial após uma série de decisões políticas recentes. Para reativá-lo, e transformá-lo em política pública democratizante de fato, há uma campanha em marcha.

Ela envolve um esforço de compreensão da conjuntura política e formulação de alternativas — relativas, entre outros aspectos, a garantia de universalização do acesso, preço e qualidade dos serviços. Reconhecido pelo conhecimento profundo em telecomunicações, e por amplo trânsito entre movimentos sociais, governos e empresas, o professor do programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Marcos Dantas, avalia o desempenho do governo até o momento e os novos rumos sinalizados pela nova gestão do Ministério das Comunicações.

As últimas intervenções do governo no Plano Nacional de Banda Larga (PNBL) têm frustado a sociedade?

Estou sentindo nas pessoas que a expectativa otimista, inicial, caiu bastante. Existe o sentimento de que o governo teria recuado em suas propostas originais. Particularmente, sempre fui crítico de como o PNBL foi formulado. Tenho impressão de que agora estamos caindo na realidade sobre o Plano.

O pessoal ficou muito entusiasmado, o que se justifica. O fato de o governo ter uma política para ampliar o acesso da banda larga merece aplausos de todos. E acabou por permitir uma articulação social e política favorável. Mas o plano tem problemas sérios, antes, ainda no governo Lula, e continua tendo.

Quais são os principais problemas?

O principal problema é a não definição do Plano em regime público. Isto é uma questão estrutural. Minha expectativa é que, do jeito que está formulado, teremos dois tipos de atendimento banda larga. Os que podem pagar vão ter acesso em melhores condições. E quem só pode pagar R$ 35,00 vai acessar um sistema de má qualidade. O que é muito típico de nossa sociedade. É a mesma situação que temos na educação. Os pais que podem pagar escola, acreditando que darão melhor formação aos filhos, pagam! Só vai para a pública quem não tem condições e sabemos que a escola pública no Brasil é de péssima qualidade.

O ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, acena com a ampliação da concorrência no mercado, como forma de acelerar o Plano. Quais as consequências desta iniciativa?

As iniciativas de Paulo Bernado vão resultar num aprofundamento do modelo herdado por Fernando Henrique Cardoso. Qual foi o modelo? Tem um serviço em regime público (a telefonia fixa) que vai acabar. Uma porção de tecnologias está nascendo, algumas bem visíveis, como o celular e a internet, outras coisas vão surgir, como o wi-fi. Tudo que surgir daqui para frente será resolvido pelo mercado por ser regime privado. E o regime público acaba por morte.

Poderíamos esperar que os governos Lula e Dilma restaurassem o princípio do regime público. Mesmo que continuasse o regime privado em muitas áreas, as que fossem consideradas essenciais para a sociedade ou estratégicas para o país, serem de regime público. O celular é um exemplo: hoje ele não é mais apenas de elite. Mas a maioria das pessoas usa pela metade. Como os celulares pré-pagos têm tarifas proporcionalmente mais caras que os pós-pago, acaba fazendo com que o rico pague menos que o pobre. Numa situação desta, é preciso uma política que aponte regime público, tarifário, universalize e acabe a necessidade ter três ou quatro telefones para receber ligação.

A Telebrás não está citada no documento “Brasil Conectado” – publicação do governo com o diagnóstico e estratégias do PNBL. Porém, ocupa espaço relevante na agenda política em relação aos rumos do Plano. Como você enxerga o papel da Telebrás?

A Telebrás, por ser ferramenta que criaria essa dicotomia (usuários que podem pagar acesso de qualidade x usuários com internet de má qualidade por falta de renda) já é passível de questionamento. Qual o princípio dela? Fomentar a concorrência. Primeiro, não se faz política de universalização com concorrência. O governo nunca quis fazer política de universalização: ele propõe massificação, ampliação do acesso. Ao permitir essa massificação, a Telebrás teria um papel de dar acesso a quem só pode pagar R$ 35,00.

Quais os impactos da saída de Rogério Santana da Telebrás?

Isto é disputa de poder. Não é essencial. É muito mais aquela coisa: “dois bicudos não se beijam”. O mais importante nessa história é a manutenção da concepção de que é preciso aumentar a concorrência para gerar massificação e a repulsa do governo em discutir o regime público para a banda larga.

A decisão da Anatel de considerar o backhaul um bem reversível é demonstração de que a Agência tem avançado para ações mais progressistas?

Lamento, acho que não. Todas as críticas que a sociedade faz às concessionárias são justas, mas elas deviam ser endereçadas à Anatel. A concessionária é uma empresa privada que detém concessão do Estado para executar determinadas tarefas. O conceito é de uma empresa que está fazendo algo por delegação do Estado. Cabe ao Estado, que tem o poder de delegar, acompanhar para saber se os concessionários estão cumprindo as tarefas.

Havia hipertrofia no papel da Anatel, ao formular e executar a política. Isto tem sido atenuado pelo Ministério das Comunicações (Minicom)?

O Minicom está querendo assumir o protagonismo na formulação. Para isso, ele precisa ter capacidade de pensar, coisa que rigorosamente não tem. Porque foi esvaziado no governo Fernando Henrique Cardoso e não foi reconstruído no governo Lula. Então a Anatel acaba cumprindo esse papel. A Agência tem hoje, mal ou bem, uma equipe técnica que permite que pense em algumas coisas.

Atualmente, não dá para afirmar que o Minicom vai se reconstruir e assumir o papel formulador, parece que tem essa intenção, mas não dá para afirmar. Daqui um ou dois meses, será possível um diagnóstico melhor.

Este problema não está ligado apenas ao esvaziamento do Minicom, o problema também está na lei (Lei Geral de Telecomunicações) criada no governo Fernando Henrique. Ela dá ao Executivo poder de fazer decretos sob algumas mínimas questões, como criar uma modalidade de serviço público. Na verdade, nas condições que a lei está, o poder executivo só pode baixar o decreto se receber da Anatel um estudo necessário. O que deixa o Minicom refém da iniciativa da Agência, quando deveria depender apenas dele. Deveria ter a máquina trabalhando para formular política. Infelizmente, no governo Lula não se avançou nisso. Vamos ver o que a Dilma pretende fazer de fato.

O PNBL tem realmente revitalizado o parque tecnológico brasileiro na indústria das tecnologias da informação e comunicação?

Isso foi o grande ponto positivo deste projeto: utilizar o poder de compra do Estado brasileiro para desenvolver a indústria nacional. Nas primeiras licitações da Telebrás, tentou-se aplicar esse princípio, isto é fato. Tentou-se organizar os remanescentes dos antigos membros da área, para que pudessem entrar na disputa. Até onde eu sei, existe um esforço nesse sentido. Se esse esforço vai em frente, é uma questão a se avaliar mais depois. Tenho expectativa de que isto avance.

* Publicado originalmente no Observatório do Direito à Comunicação e retirado do site Outras Palavras.