Estranha “democracia” onde povo não decide

Em Portugal, cresce amarga sensação de que sonho europeu vai desfazer-se e “modernidade” revelou-se ficção tolhida pelas finanças.

LISBOA (Portugal) – Quando a Associação 25 de Abril, que reúne os “capitães” protagonistas da revolução de 1974 recusou-se a participar das comemorações oficiais de aniversário, usou como justificativa uma acusação contra o governo conservador do primeiro-ministro Pedro Passos Coelho: “deixou de refletir o regime democrático herdeiro do 25 de Abril e configurado na Constituição”.

Na mesma linha, políticos e analistas lançaram advertências sobre o risco democrático que estaria vivendo o país, devido à crise econômica e as suas graves consequências sociais que instauram um clima de total desconfiança popular nos políticos, nos partidos e, em certa medida, nas próprias instituições. Afinal, se o país está sendo governado do exterior, pela chamada troika (a expressão adquiriu uso geral e significa a União Européia, Banco Europeu e FMI, que determinam as medidas de austeridade em aplicação), por que respeitar os eleitos que assumem o papel de meros executores de políticas impostas?

Traduzindo este sentimento generalizado, o jornalista Ricardo Alves escreveu artigo publicado em vários blogues portugueses: “A pretexto da troika e do diktat alemão, Passos (Coelho) e (Paulo) Portas (ministro dos Negócios Estrangeiros, que acaba de visitar o Brasil) atacam no todo ou em parte progressos que estabilizavam há 38 anos o pacto social entre governantes e governados, tornando-se este governo o menos legítimo históricamentee socialmente desde (Marcelo) Caetano”. E prevê que este governo “não terminará pelas armas, mas sim com uma nova maioria que garanta à República o regresso ao rumo que mantinha desde 1974”.

De toda parte vêm alertas sobre a iminência de uma ruptura política caso o governo persista nos seus planos de ajustes que tem sido mais rigorosos até do que os desejados pela troika. Esta mostrou-se mesmo “surpresa” com os efeitos de suas medidas, já que esperava um desemprego em torno dos 13% a esta altura do ano, mas ele já superou os 15% em março – um feito do qual o ministro das Finanças Vitor Gaspar mostrou-se orgulhoso em recente palestra nos Estados Unidos, mostrando que seu governo é mais realista que o rei…

O sociólogo Elísio Estanque, em coluna no Diário de Notícias (6/4) faz coro aos reclamos gerais e traça um panorama dos efeitos da austeridade: “O sonho europeu ameaça desfazer-se no ar e a ‘modernidade’ revelou-se afinal uma ficção. Os pobres continuam pobres e os remediados empobrecem. Temos melhor educação, mas não há emprego; temos boas autoestradas, mas não podemos pagar os pedágios e o carro; vivemos mais tempo, mas com menos qualidade de vida; temos melhor sistema de saúde, mas não podemos pagá-lo; temos liberdade, mas a democracia está doente”.

Se a democracia está doente, a coisa é mais grave, já que fora dela não se encontrarão soluções. Na verdade, ninguém (talvez alguns neonazistas que andaram soltando panfletos no 25 de Abril, sem maior repercussão) pretende que Portugal saia das normas democráticas, uma conquista já enraizada na consciência do povo, mesmo dos jovens que não viveram a crueldade da ditadura salazarista que massacrou seus avós e seus pais. Na Europa unificada de hoje, não há espaço para aventuras autoritárias e muito menos totalitárias, e hipóteses como golpes de Estado ou sublevações não se colocam em debate.

A grande questão é se a democracia continua sendo um instrumento pelo qual o povo se governa, elegendo seus mandatários das diversas tendências ideológicas que formam maiorias parlamentares e devem, teoricamente, interpretar a vontade da população. Ou se a democracia está hoje refém da burocracia do sistema financeiro, que toma decisões do interesse de uns poucos, com a anuência forçada dos políticos. Vote em quem votar, o cidadão/contribuinte pressente que acabará sendo vítima das mesmas políticas recessivas, dos cortes nos gastos sociais (e até no seu salário), da entrega de bens coletivos a grupos privados (Portugal discute a privatização até dos serviços de água!) e da remessa de seus impostos aos bancos e organismos de crédito internacionais, representados pela inatingível e inquestionável troika.

A crise é um teste para as instituições democráticas que tem-se mostrado robustas o bastante para suportar tantos alguns abusos de governos como estouros de revolta popular (as depredações de carros em Paris e em Londres, o M-15 espanhol, que completa um ano, e outros movimentos de indignados). Por enquanto, de maneira geral, afora algumas arbitrariedades policiais contra manifestantes ou ocupantes de áreas públicas ou prédios (condenáveis à luz da Democracia), não se cogitou de fechar partidos, censurar a imprensa ou mudar leis eleitorais: as liberdades democráticas formais estão mantidas. Doze governos caíram ou foram derrotados na Europa nos dois últimos anos, devido à política de austeridade, sendo Sarkozy e a coligação grega as últimas vítimas. Os europeus não têm votado pela direita ou pela esquerda; têm votado contra a crise e os que julgam serem os maiores responsáveis por ela, ou seja, os governos de plantão, de qualquer tonalidade ideológica.

Portanto, trata-se mais de uma discussão sobre a consistência do regime democrático, admitida sua inevitabilidade; todos a queremos, mas nem todos a controlamos. O governo do povo, pelo povo, e para o povo tem se transformado num “governo dos mais ricos sobre o povo e contra o povo”. Retificar tal desvio é o esforço dos portugueses e seus parceiros da União Européia.

* Antonio Barbosa Filho é jornalista e escritor, autor de A Bolívia de Evo Morales e A Imprensa x Lula – golpe ou sangramento? (All Print Editora). Em viagem pela Europa, acompanha as consequências da crise financeira pós-2008 e da onda corte de direitos sociais (‘políticas de austeridade’) iniciada em 2010.

** Publicado originalmente no site Outras Palavras.