Nos livros didáticos e na vida real

Gradualmente os equívocos relacionados à tradição indígena e reproduzidos nas escolas pelos livros didáticos começam a mudar. Mais rápido do que este processo, uma aldeia tupi-guarani vem colhendo resultados de ações de aproximação e de resgate que aliam preservação e tecnologia

DSC02348Ano após ano, quando o calendário marca 19 de abril, escolas pelo Brasil afora incentivam as crianças a pintarem o rosto e desenharem índios. Assim o Dia do Índio é comemorado e os alunos continuam imaginando que índio vive na oca, faz dança da chuva ou coloca pessoas para cozinhar em um caldeirão, em uma confusão de histórias que misturam informações verdadeiras e imaginárias, transmitidas pelos desenhos animados.

O que é real nisso tudo é o desconhecimento sobre os povos indígenas. Os brasileiros, de maneira geral, sabem pouco a respeito da realidade destas comunidades, seja pela falta de incentivo da educação formal, seja pela falta de interesse, afinal “índio só mora na Amazônia e estamos muito longe deles”, equivoca-se grande parte das pessoas. Como não preservamos o que não conhecemos estamos mergulhados em um ciclo vicioso.

Se considerarmos o conteúdo dos livros didáticos distribuídos para a rede pública de ensino, ainda que lentamente, o poder público está dando um pequeno passo em direção à mudança dessa situação.

Diante das críticas dos avaliadores do Programa Nacional do Livro Didático, o Ministério da Educação realizou em 2013 um estudo com objetivo de gerar orientações técnicas para o Conselho Nacional de Educação. Ao saber quais as necessidades de reformulação, será possível ter um conteúdo sobre história e cultura indígena mais adequado para ser oferecido nas instituições de ensino superior.

Outros resultados esperados são orientações que sirvam para inserir o tema nas Diretrizes Curriculares Nacionais para formação de professores da educação básica, além de contribuir para a elaboração dos livros didáticos que serão impressos em 2015.
Uma das críticas feitas aos livros atuais é que o índio é mostrado apenas nos livros de história durante o período colonial e depois é como se deixasse de existir.

O renascer da aldeia

DSC02341Na tentativa de esclarecer tantos equívocos destes séculos de relacionamento conturbado e procurar, de uma maneira concreta e mais rápida, aproximar índios de não índios, Itá Mirim, líder tupi-guarani, da aldeia Tabaçu Rekoypy, desde 2000 vem estudando a língua e a tradição tupi-guarani com intuito de resgatar as tradições de seu povo em uma das comunidades indígenas estabelecidas na região de divisa entre Peruíbe e Itanhaém, litoral sul do Estado de São Paulo.

Formada em Pedagogia Indígena pela Universidade de São Paulo, Itá Mirim, e um grupo de cerca de 15 pessoas, formada por familiares mais próximos como esposo, filha, mãe, primos, mudou-se por cinco vezes até decidir que as aldeias atuais, que vivem na região em terras demarcadas pela Funai – Fundação Nacional do Índio, já não mais seguiam as raízes da tradição.

Desde então, o pequeno grupo formou uma aldeia menor, a Tabaçu Rekoypy e há pouco mais de um ano, Itá vem ensinando as crianças da aldeia a falarem o tupi-guarani. Outros membros, que chegaram a viver em cidades, estão resgatando e compartilhando os saberes da medicina tradicional, do plantio e da colheita e do artesanato.

A tribo se mantém com a ajuda de parceiros que colaboram com a organização da recepção de alunos e visitantes interessados em educação ambiental e em reconhecer a importância destes brasileiros como conhecedores dos remédios da mata e guardiões dos recursos naturais.

“Nossa história vem de uma luta muito grande desde a ocupação desta terra, inicialmente usada para mineração de areia e que foi objeto de disputa entre o Eike Batista e as comunidades indígenas. Fomos criticados por muitos que diziam que estávamos impedindo a instalação de uma empresa que iria gerar empregos. Graças à mobilização da população de Peruíbe, que apoiou nossa permanência na terra, estamos aqui e hoje os conflitos quase não existem”, conta a líder.

Itá se refere a uma área total de 2.795 hectares onde vivem cinco comunidades, entre elas a Tabaçu Rekoypy, que em tupi significa “renascer da grande aldeia”. A demarcação definitiva foi feita pela Funai em 2012 nesta área que protege o que restou da vegetação nativa de restinga da região.

A área sob os cuidados da aldeia, de acordo com membros do grupo, está sendo recuperada, assim como está sendo feita a proteção de nascentes.

Tecnologia e tradição

Os “curumins” que estão aprendendo a tradição tupi, desde cedo convivem com as histórias que passam de geração para geração, entre elas, a lenda do saci-pererê que, ao contrário do que pensamos, que é um pequeno menino negro de uma perna só, originalmente é uma lenda indígena que conta que é um pequeno índio que vive na mata para protegê-la e que, tendo uma perna só, quando precisa, pode se disfarçar como se fosse um tronco de uma árvore ou o que lhe parecer melhor.

“Durante o período colonial, os negros que fugiam e buscavam abrigo nas aldeias, escutavam nossas histórias, como a do saci. Com o passar do tempo e a cultura africana se tornando muito mais forte do que as tradições indígenas, o saci passou a ser um pequeno menino negro de uma perna só, mas, na verdade, nosso povo conta que o saci é um pequeno índio de uma só perna, um curumim”, explica a professora.

O trabalho de resgate e de aproximação é grande. A aldeia conta com o apoio de uma empresa de ecoturismo para organizar as visitas, chamadas de Vivências na Aldeia. Os índios contam que depois de problemas em parcerias anteriores, agora estão mais tranquilos e o esforço está sendo positivo, o que pode ser observado com o aumento do interesse das escolas e de turistas.
As vivências são atividades que promovem integração por meio de cantos, danças, rituais de pintura e ensinamentos sobre as plantas e as técnicas de construção natural. Os grupos podem passar o dia ou parte dele na aldeia.

“A tecnologia não é ruim, nós usamos a internet para nos comunicar com a empresa, para organizar visitas, entre outras facilidades. Estamos aqui para provar que é possível esta convivência pacífica entre o uso benéfico deste recurso e a vida de acordo com as nossas tradições, queremos estabelecer um novo paradigma de relacionamento que construa um elo entre nós e a sociedade”, conta Itá Mirim, enquanto imprime algumas palavras do tupi em uma folha que oferece à reportagem.

É curioso pensar que depois de ter sua terra usurpada, a população dizimada, saberes perdidos por rejeição do “homem branco” e a cultura rotulada como “de menor importância”, os índios ainda tenham que lutar para preservar recursos naturais vitais como a água. Para isso, estão aceitando o uso da internet, mesmo arriscando-se a ser sufocados pelo modo de vida predominante.

A infraestrutura também é um desafio constante. No último mês, após 10 dias de chuvas intensas na aldeia, houve muita perda material e alguns índios adoeceram, provocando o cancelamento da Vivência que estava agendada.

Vamos caminhando até o lago de água cor de chá mate, onde crianças brincam na companhia da anciã da aldeia, Kunhã Dju, Morubixaba, (vice-cacique), mãe de Itá.

Elas se aproximam para brincar e começam a trazer punhados de lama do fundo do lago, dizendo: “Toma, isto aqui é bolinho da mandioca, este é de fubá”. Uma delas também quer participar e diz: “Este aqui é de iogurte, que eu adoro”.

É preciso um trabalho cuidadoso de reaproximação com a sociedade para que esta convivência seja equilibrada e para que a cultura indígena não seja engolida mais uma vez pela ignorância ou pela crença de que só é importante a vida fora da aldeia.

Aqui se fala tupi

O tupi é considerado o primeiro idioma que os portugueses ouviram quando chegaram no Brasil. Ainda hoje, usamos muitas palavras que se originam dele, como abacaxi, pipoca e Ipiranga (rio vermelho).

Conheça outras expressões:

Porá Eté – Muito obrigado

Rekó Porã – Tudo bem

Txe apy ain – Eu estou aqui

Nhanderu omée mbaé kwaa – Nosso Pai nos dá sabedoria

Nhanderu Eté – Nosso Pai Verdadeiro